A propósito de deus, que se fez homem...
A ideia de que deus ter vindo à terra pobre é decisivo é um desentendimento - independentemente de ele ter vindo ou não. Se deus se fez homem, então aí está o decisivo, mas que ele tenha nascido num estábulo entre bosta ou num palheiro entre palha, tenha vivido como um servo ou como um escravo, ou que tivesse vindo como César, Imperador ou Generalíssimo - esta distinção é vazia e insignificante se deus de facto se fez homem. Porque se essa distinção - entre Imperador e escravo - tem alguma importância, não a tem, com certeza, perante o deus que se fez homem - se ele se fez homem - ou então ser imperador seria para deus mais do que ser escravo, e ao fazer-se escravo estaria, talvez, a sacrificar-se e com isso, de facto, deus não seria deus e seria irrelevante o fazer-se homem ou pedra - mas se deus se fez homem, então que ele tenha sido escravo ou imperador apenas pode saltar à vista dos homens que avaliam esteticamente as circunstâncias e as distinções. Se deus se fez homem, então o decisivo nesse homem é ter sido deus feito homem, e o decisivo de deus é ter-se feito homem - e não o ter sido pobre, como se ser pobre fosse uma distinção perante deus, como se perante deus - e justamente porque se fez homem - não tivesse o imperador e o escravo, cada um por si, de estar simplesmente como homem.
segunda-feira, 30 de dezembro de 2013
o natal, as imagens e os doces, o natal, a ofensa e a loucura
A propósito de concepções do Cristianismo...
Quando se conta a uma criança sobre o Cristianismo e ela não é violentada num sentido figurativo, a criança apropria tudo o que é simpático, infantil, agradável e celestial. Irá viver juntamente com o pequeno menino Jesus e com os anjos e os três reis magos; vê a estrela na noite escura, viaja ao longo do caminho, e agora está no estábulo, maravilha das maravilhas, e vê sempre o céu aberto; com toda a intimidade da imaginação, a criança suspira por estas imagens - e agora não nos esqueçamos dos doces nem de todas as outras coisas esplêndidas que se fazem nesta ocasião. Acima de tudo, não sejamos velhos patifes mentindo sobre a infância, afectando o seu entusiasmo exagerado e traindo a infância da sua realidade. Ter-se-ia de ser alguém que não servisse para nada para não se ser capaz de achar a infância tocante, encantadora e abençoada. [...] Mas, por outro lado, certamente que é um guia cego quem de alguma maneira, qualquer que ela seja, pretenda que esta é a concepção decisiva do Cristianismo que é uma ofensa para os Judeus e uma loucura para os Gregos.
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 521
Quando se conta a uma criança sobre o Cristianismo e ela não é violentada num sentido figurativo, a criança apropria tudo o que é simpático, infantil, agradável e celestial. Irá viver juntamente com o pequeno menino Jesus e com os anjos e os três reis magos; vê a estrela na noite escura, viaja ao longo do caminho, e agora está no estábulo, maravilha das maravilhas, e vê sempre o céu aberto; com toda a intimidade da imaginação, a criança suspira por estas imagens - e agora não nos esqueçamos dos doces nem de todas as outras coisas esplêndidas que se fazem nesta ocasião. Acima de tudo, não sejamos velhos patifes mentindo sobre a infância, afectando o seu entusiasmo exagerado e traindo a infância da sua realidade. Ter-se-ia de ser alguém que não servisse para nada para não se ser capaz de achar a infância tocante, encantadora e abençoada. [...] Mas, por outro lado, certamente que é um guia cego quem de alguma maneira, qualquer que ela seja, pretenda que esta é a concepção decisiva do Cristianismo que é uma ofensa para os Judeus e uma loucura para os Gregos.
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 521
O "como" e o "que"
A propósito de opiniões...
"Porque as pessoas no nosso tempo e na Cristandade do nosso tempo não parecem estar adequadamente cientes da dialéctica do aprofundamento íntimo ou cientes de que o "como" do indivíduo é uma expressão igualmente exacta e mais decisiva para o que ele tem do que o "que" para o qual ele apela, surgem por estes dias as mais estranhas e, se estamos para aí virados e temos tempo para isso, as mais ridículas confusões [...]."
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 533
"Porque as pessoas no nosso tempo e na Cristandade do nosso tempo não parecem estar adequadamente cientes da dialéctica do aprofundamento íntimo ou cientes de que o "como" do indivíduo é uma expressão igualmente exacta e mais decisiva para o que ele tem do que o "que" para o qual ele apela, surgem por estes dias as mais estranhas e, se estamos para aí virados e temos tempo para isso, as mais ridículas confusões [...]."
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 533
Quando é que sabemos que somos humanos?
A propósito de humanos...
"Hoje em dia tornamo-nos […] um ser humano imitando outros. Que alguém é humano é conhecido não a partir do seu próprio caso mas por inferência: alguém é como os outros, logo é um humano. […] Deus sabe se algum de nós é humano!"
Kierkegaard, Journals, X, 1 A 666
"Hoje em dia tornamo-nos […] um ser humano imitando outros. Que alguém é humano é conhecido não a partir do seu próprio caso mas por inferência: alguém é como os outros, logo é um humano. […] Deus sabe se algum de nós é humano!"
Kierkegaard, Journals, X, 1 A 666
O que é ter uma opinião?
A propósito de opiniões que se têm - ou que cada um acredita que tem...
O que é ter uma opinião? Se há coisa que toda a gente parece ter é opinião. É o artigo mais barato do mercado. E, simultaneamente, o que há mais são opiniões pré-fabricadas.
"Um homem declara alto e a bom som e com solenidade: Esta é a minha opinião. [...] o bom homem concentrou-se em berrá-la para fora em vez de a ter interiormente. O honorável cavalheiro pode estar certo quanto ao ter esta opinião na medida em que ele se faz acreditar a si mesmo, com todo o seu poder e energia, que a tem. Ele pode fazer de tudo pela sua opinião no seu papel como um moço de recados; pode arriscar a sua vida por ela; em tempos verdadeiramente confusos pode até ir tão longe ao ponto de perder a sua vida pela sua opinião* - agora estou alegremente bem seguro de que o homem tem de ter tido a opinião."
Nota de Kierkegaard: "Em tempos tumultuosos, quando o Governo tem de defender a sua sobrevivência por meio da sentença de morte, não seria inconcebível que um homem pudesse ser executado por uma opinião que ele presumivelmente tinha no sentido legal e civil, mas não no sentido intelectual."
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 535-6
O que é ter uma opinião? Se há coisa que toda a gente parece ter é opinião. É o artigo mais barato do mercado. E, simultaneamente, o que há mais são opiniões pré-fabricadas.
"Um homem declara alto e a bom som e com solenidade: Esta é a minha opinião. [...] o bom homem concentrou-se em berrá-la para fora em vez de a ter interiormente. O honorável cavalheiro pode estar certo quanto ao ter esta opinião na medida em que ele se faz acreditar a si mesmo, com todo o seu poder e energia, que a tem. Ele pode fazer de tudo pela sua opinião no seu papel como um moço de recados; pode arriscar a sua vida por ela; em tempos verdadeiramente confusos pode até ir tão longe ao ponto de perder a sua vida pela sua opinião* - agora estou alegremente bem seguro de que o homem tem de ter tido a opinião."
Nota de Kierkegaard: "Em tempos tumultuosos, quando o Governo tem de defender a sua sobrevivência por meio da sentença de morte, não seria inconcebível que um homem pudesse ser executado por uma opinião que ele presumivelmente tinha no sentido legal e civil, mas não no sentido intelectual."
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 535-6
sábado, 28 de dezembro de 2013
A igualdade perante o paradoxo...
A propósito de paradoxo...
Um desentendimento comum é o de que um paradoxo é um caso para pessoas inteligentes. Mas é justamente o contrário: perante um paradoxo o mais inteligente dos homens está ao mesmo nível que o menos inteligente. Porque compreender um paradoxo não é reduzí-lo a uma forma abstracta, lógica e linear de tal modo que se converta num não-paradoxo: isto seria exactamente o contrário de compreender o paradoxo porque o resultado da compreensão não reteria aquilo que, precisamente, se pretendia compreender, a saber, o paradoxo. Se o paradoxo é explicado de tal modo que se tem um não-paradoxo, então ou não se tratava senão de um paradoxo aparente, ou a compreensão não é senão aparente - mas se o paradoxo ou a compreensão são aparentes, então não há compreensão do paradoxo a notar. Portanto, o muito inteligente e o pouco inteligente estão precisamente no mesmo ponto no que toca ao paradoxal, a não ser que o mais inteligente se encontre de facto em maiores dificuldades na medida em que o seu afã de compreender produza a ocasião para ceder à tentação de converter o paradoxal numa explicação linear e assim se afaste definitivamente da possibilidade de compreender o paradoxo enquanto paradoxal.
Um desentendimento comum é o de que um paradoxo é um caso para pessoas inteligentes. Mas é justamente o contrário: perante um paradoxo o mais inteligente dos homens está ao mesmo nível que o menos inteligente. Porque compreender um paradoxo não é reduzí-lo a uma forma abstracta, lógica e linear de tal modo que se converta num não-paradoxo: isto seria exactamente o contrário de compreender o paradoxo porque o resultado da compreensão não reteria aquilo que, precisamente, se pretendia compreender, a saber, o paradoxo. Se o paradoxo é explicado de tal modo que se tem um não-paradoxo, então ou não se tratava senão de um paradoxo aparente, ou a compreensão não é senão aparente - mas se o paradoxo ou a compreensão são aparentes, então não há compreensão do paradoxo a notar. Portanto, o muito inteligente e o pouco inteligente estão precisamente no mesmo ponto no que toca ao paradoxal, a não ser que o mais inteligente se encontre de facto em maiores dificuldades na medida em que o seu afã de compreender produza a ocasião para ceder à tentação de converter o paradoxal numa explicação linear e assim se afaste definitivamente da possibilidade de compreender o paradoxo enquanto paradoxal.
Pode cada indivíduo salvar-se a si mesmo - ou está dependente de outra coisa?
O ponto é que cada ser humano deve ser igualmente capaz de ser si mesmo, consciente de si e existir autenticamente. Eticamente, tal habilidade é pressuposta - embora não possa ser qualquer coisa de que a pessoa ética se ocupa, pois o ético não precisa de aceitação ou confirmação externa para fazer o que a sua consciência dita. Religiosamente, o mais alto é comum a todos os humanos e cada indivíduo está sujeito ao mesmo rigor não sendo um favorecido em relação a outro, nem por qualquer acidente externo nem por qualquer talento. Se identificamos dificuldades acrescidas devido a aspectos circunstanciais, resultantes do contexto ou das capacidades do indivíduo, isso apenas significa que não se percebeu ainda qual é, de facto, a tarefa.
O problema, portanto, não surge na ética, nem na religiosidade - o problema surge no Cristianismo - enquanto pertencente à esfera do religioso, mas enquanto esfera própria da fé e do paradoxo. Embora o Cristianismo - não enquanto doutrina, mas sim enquanto "modo" em que se vive - se caracterize por apresentar-se, justamente, como o mais alto que a todos é comum - e que exige a todos o mesmo rigor, de tal modo que nem o rico, nem o mais inteligente estão em vantagem perante o pobre ou o menos inteligente, nem mesmo um homem que nasceu num país cristão e foi baptizado é mais facilmente cristão do que alguém que nasceu pagão e veio a encontrar o Cristianismo - embora a dificuldade seja igualmente árdua para cada indivíduo, na verdade surge como toda uma nova esfera, diferente mesmo do religioso não cristão, que é a imposição da condição pelo deus que veio a ser no tempo. E esta nova esfera - que se caracteriza por esta doação da condição pelo deus - cria, de facto, uma clivagem circunstancial - que não se verifica na religiosidade anterior, nem na ética... e assim, este problema não pode deixar de interessar ao filósofo - embora o cristão propriamente dito não lhe possa prestar qualquer atenção (e se lha presta já revela que não é um cristão - tal como o filósofo que a discute já mostra assim que não é cristão) e o problema é, pois, este:
"A felicidade vinculada a uma condição histórica exclui todos os que estão fora da condição, e entre estes está a quantidade imensa de todos aqueles que estão excluídos através, não de uma falta própria, mas pela circunstância acidental de o Cristianismo não lhes ter sido ainda proclamado.”
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 508
“Uma vez que a relação com esse evento histórico (o deus no tempo) condiciona a consciência do pecado [a consciência mais viva de si], não poderia ter existido consciência do pecado durante todo o tempo anterior a esse evento histórico [o que implica que não poderia ter existido a forma mais definida e especificadora de consciência de si mesmo].”
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 509
sexta-feira, 27 de dezembro de 2013
A compreensão do paradoxo...
A propósito de Paradoxo...
Um desentendimento comum é o de que um paradoxo é um caso para pessoas inteligentes. Mas é justamente o contrário: perante um paradoxo o mais inteligente dos homens está ao mesmo nível que o menos inteligente. Porque compreender um paradoxo não é reduzí-lo a uma forma abstracta, lógica e linear de tal modo que se converta num não-paradoxo: isto seria exactamente o contrário de compreender o paradoxo porque o resultado da compreensão não reteria aquilo que, precisamente, se pretendia compreender, a saber, o paradoxo. Se o paradoxo é explicado de tal modo que se tem um não-paradoxo, então ou não se tratava senão de um paradoxo aparente, ou a compreensão não é senão aparente - mas se o paradoxo ou a compreensão são aparentes, então não há compreensão do paradoxo a notar. Portanto, o muito inteligente e o pouco inteligente estão precisamente no mesmo ponto no que toca ao paradoxal, a não ser que o mais inteligente se encontre de facto em maiores dificuldades na medida em que o seu afã de compreender produza a ocasião para ceder à tentação de converter o paradoxal numa explicação linear e assim se afaste definitivamente da possibilidade de compreender o paradoxo enquanto paradoxal.
sexta-feira, 20 de dezembro de 2013
Sofrimento existencial
A propósito de sofrimento...
O humano está na temporalidade e na temporalidade não pode levar uma vida eterna. Na terra não pode viver uma felicidade eterna. A existência é sofrimento, mas não dor ou ausência de prazer: o sofrimento existencial não tem que ver com a dor, mas permanece mesmo que todas as dores estejam ausentes. A existência é sofrimento - se a vida do humano está na temporalidade ela está fragmentada, ela tem de estar misturada com a diversão e, na diversão, ele está distraído - está ausente, tão mais ausente quanto mais diversão estiver presente na sua vida. É na diversão - e não na dificuldade da vida - que se manifesta a inautenticidade. O homem feliz é, portanto, uma forma de inconsciência. Na existência, na medida em que há felicidade, aí há inautenticidade à mistura - a vida é sofrimento, e não sofrer é o reflexo da distracção.
(Cfr. Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 427)
O humano está na temporalidade e na temporalidade não pode levar uma vida eterna. Na terra não pode viver uma felicidade eterna. A existência é sofrimento, mas não dor ou ausência de prazer: o sofrimento existencial não tem que ver com a dor, mas permanece mesmo que todas as dores estejam ausentes. A existência é sofrimento - se a vida do humano está na temporalidade ela está fragmentada, ela tem de estar misturada com a diversão e, na diversão, ele está distraído - está ausente, tão mais ausente quanto mais diversão estiver presente na sua vida. É na diversão - e não na dificuldade da vida - que se manifesta a inautenticidade. O homem feliz é, portanto, uma forma de inconsciência. Na existência, na medida em que há felicidade, aí há inautenticidade à mistura - a vida é sofrimento, e não sofrer é o reflexo da distracção.
(Cfr. Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 427)
Para que serve a ética em tempos de crise?
A propósito de «Para que serve a ética em tempos de crise?»
CONCURSO DE ENSAIO «PARA QUE SERVE A ÉTICA EM TEMPOS DE CRISE?»
Vencedor: Luís Filipe Fernandes Mendes
Cita-se a seguir o anúncio formal:
«
Anúncio formal do resultado do Concurso de Ensaio «Para que serve a ética em tempos de crise?»
por Filosofia na Católica
Ao abrigo do n.º1 do Artigo 5º do Regulamento do Concurso de Ensaio «Para que serve a ética em tempos de crise?», o Júri atribui o Prémio, por unanimidade, ao ensaio apresentado por
Luís Filipe Fernandes Mendes.
Luís Filipe Fernandes Mendes.
Atribuem-se ainda, também por unanimidade, menções honrosas aos ensaios apresentados por:
Nuno Miguel Gonçalves Ribeiro
Paulo Pereira de Carvalho
Laura Ravéra
David Santos
José António Rodrigues do Carmo
Luísa Borges
Nuno Miguel Gonçalves Ribeiro
Paulo Pereira de Carvalho
Laura Ravéra
David Santos
José António Rodrigues do Carmo
Luísa Borges
O prémio é entregue no início do ano lectivo de 2013-2014, no Campus de Lisboa da UCP, em data a anunciar.
O Júri
Mafalda Afonso
Mendo Henriques
Américo Pereira
Cecília Tomás
Mafalda Afonso
Mendo Henriques
Américo Pereira
Cecília Tomás
»
quinta-feira, 19 de dezembro de 2013
O sofrimento continua enquanto se vive
A propósito da ilusão da felicidade e do fim do sofrimento
Procurar a Deus para sair do sofrimento é um desentendimento. O desentendimento é o seguinte: supor que o sofrimento é acidental, que, por isso, pode estar ou pode acabar, que agora nos oprime mas que, com a ajuda de Deus, seremos libertados dele pouco a pouco ou talvez abruptamente, por um qualquer milagre, seremos lançados na felicidade.
Mas o sujeito que assim pretende tornar-se feliz torna-se feliz como? Será que se torna feliz pela relação que tem com Deus? Mas, então, permanece no sofrimento. Ou será que quer dizer que quando recebe uma rica herança, quando a doença passar, quando o filho se curar ou as dores forem apaziguadas - numa palavra - será que quando o seu sofrimento for eliminado o sujeito se torna feliz porque o sofrimento foi aliviado? Porque se o sujeito se torna feliz porque o sofrimento foi aliviado então não foi na relação com Deus que o sujeito se tornou feliz e toda a sua gratitude é uma expressão estética. Religiosamente - quando o religioso é plenamente compreendido - tudo o que é exterior é, qualitativamente, o acaso, a sorte ou o azar, o que ética-religiosamente é nada. Religiosamente, sabe só Deus se uma doença é um castigo ou uma benesse, se a riqueza é um castigo ou uma benesse, se a saúde é um castigo ou uma benesse - poderia mesmo acontecer que um sujeito ofendesse a Deus e Deus o castigasse - para que a sua perdição fosse maior - justamente com aquilo que, do ponto de vista do mundo, é grande e apreciado: riquezas, carros, mulheres, uma carreira e muitos filhos. E então seria verdadeiramente essa a sua perdição se ele, mergulhado na sua felicidade, julgasse por intermédio dela beneficiar da graça divina quando era a sua perdição que estava a ser derramada sobre ele.
Procurar a Deus para sair do sofrimento é um desentendimento. O desentendimento é o seguinte: supor que o sofrimento é acidental, que, por isso, pode estar ou pode acabar, que agora nos oprime mas que, com a ajuda de Deus, seremos libertados dele pouco a pouco ou talvez abruptamente, por um qualquer milagre, seremos lançados na felicidade.
Mas o sujeito que assim pretende tornar-se feliz torna-se feliz como? Será que se torna feliz pela relação que tem com Deus? Mas, então, permanece no sofrimento. Ou será que quer dizer que quando recebe uma rica herança, quando a doença passar, quando o filho se curar ou as dores forem apaziguadas - numa palavra - será que quando o seu sofrimento for eliminado o sujeito se torna feliz porque o sofrimento foi aliviado? Porque se o sujeito se torna feliz porque o sofrimento foi aliviado então não foi na relação com Deus que o sujeito se tornou feliz e toda a sua gratitude é uma expressão estética. Religiosamente - quando o religioso é plenamente compreendido - tudo o que é exterior é, qualitativamente, o acaso, a sorte ou o azar, o que ética-religiosamente é nada. Religiosamente, sabe só Deus se uma doença é um castigo ou uma benesse, se a riqueza é um castigo ou uma benesse, se a saúde é um castigo ou uma benesse - poderia mesmo acontecer que um sujeito ofendesse a Deus e Deus o castigasse - para que a sua perdição fosse maior - justamente com aquilo que, do ponto de vista do mundo, é grande e apreciado: riquezas, carros, mulheres, uma carreira e muitos filhos. E então seria verdadeiramente essa a sua perdição se ele, mergulhado na sua felicidade, julgasse por intermédio dela beneficiar da graça divina quando era a sua perdição que estava a ser derramada sobre ele.
As esferas do ético e do religioso - Kierkegaard
A propósito de ético e religioso em Kierkegaard...
Eticamente, o homem sabe que nada mais lhe pode ser pedido além da sua decisão - pedir mais ou pedir menos não é humano nem preservará o humano. Porque o homem, se queremos que seja humano, não pode ser impedido de escolher o mal ou forçado a escolher o bem - o que seria pedir de mais - nem pode deixar de lhe ser exigido que escolha o bem ou que resista ao mal - o que seria pedir de menos. Eticamente, a decisão é tudo - e esteticamente é tão só nada, e é este nada que é, justamente, o mais difícil precisamente porque é nada esteticamente. Mas este mais difícil é o decisivo e nada mais pode ser exigido à consciência ética e nada mais pode ser exigido ao humano senão que ele se decida.
Religiosamente, nunca o homem pode dizer que há suficiência, religiosamente nunca há um basta, e o religioso que diz que faz quanto pode ou que já suporta tudo quanto pode ou que não tem mais forças para mais - não só não expressa o religioso como tenta a Deus, porque só Deus pode saber o que é exigido (se exige alguma coisa), e o homem não sabe melhor aquilo que é capaz de suportar ou de fazer do que sabe quantos cabelos tem na cabeça (se os tem). E assim o religioso supera o ético, mas supera-o preservando-o, supera-o elevando-o - e, no entanto, o religioso não é uma variação do ético, nem o ético uma introdução ao religioso, mas o religioso é toda uma nova esfera.
Eticamente, o homem sabe que nada mais lhe pode ser pedido além da sua decisão - pedir mais ou pedir menos não é humano nem preservará o humano. Porque o homem, se queremos que seja humano, não pode ser impedido de escolher o mal ou forçado a escolher o bem - o que seria pedir de mais - nem pode deixar de lhe ser exigido que escolha o bem ou que resista ao mal - o que seria pedir de menos. Eticamente, a decisão é tudo - e esteticamente é tão só nada, e é este nada que é, justamente, o mais difícil precisamente porque é nada esteticamente. Mas este mais difícil é o decisivo e nada mais pode ser exigido à consciência ética e nada mais pode ser exigido ao humano senão que ele se decida.
Religiosamente, nunca o homem pode dizer que há suficiência, religiosamente nunca há um basta, e o religioso que diz que faz quanto pode ou que já suporta tudo quanto pode ou que não tem mais forças para mais - não só não expressa o religioso como tenta a Deus, porque só Deus pode saber o que é exigido (se exige alguma coisa), e o homem não sabe melhor aquilo que é capaz de suportar ou de fazer do que sabe quantos cabelos tem na cabeça (se os tem). E assim o religioso supera o ético, mas supera-o preservando-o, supera-o elevando-o - e, no entanto, o religioso não é uma variação do ético, nem o ético uma introdução ao religioso, mas o religioso é toda uma nova esfera.
O religioso em Kierkegaard e a ironia em Sócrates
A propósito de religioso - e ironia...
O discurso religioso retrocede para o estético sempre que agradece a Deus a fortuna que o mundo lhe dá. Dizer-se que se está com Deus e que isso tem dado frutos é uma expressão estética: que se esteja bem casado ou que a carreira floresça são determinações estéticas e, religiosamente, é indiferente. Agradecer a Deus a riqueza ou a saúde - e nisto é indiferente querer tanto que não passar fome seja pouco, ou querer tão pouco que baste a saúde - é uma expressão estética que ilude se pretende ser religiosa. Porque se se agradece a riqueza ou a saúde por que se agradece a Deus? Será porque só Deus sabe se é para nós um bem a saúde ou a riqueza, ou porque sabemos nós o que para nós é um bem? Será que agradecemos a Deus porque só Deus nos interessa ou agradecemos-lhe porque nos foi útil ao dar-nos saúde ou riqueza? Será que realmente estamos na relação com Deus e no resto por acidente, ou será que estamos essencialmente no mundo e queremos de Deus o que dá jeito no mundo?
Na Grécia Antiga havia uns senhores que andavam de ilha em ilha levando pessoas e uma vez uma jovem foi buscar junto ao mar pelo seu futuro esposo. Encontrou lá a Sócrates a quem perguntou por ele. Sócrates, como só ele o poderia fazer seriamente, disse então que o navegador não sabia realmente o que fazia. A jovem, admirada, perguntou por que dizia ele isso - ao que Sócrates respondeu, como só ele o poderia fazer ironicamente, que o navegador não sabia o que fazia porque não sabia, quando levava homens de ilha em ilha e os descarregava em terra e lhes pedia as moedas, se não teria sido melhor deixá-los morrer em mar, pois que, na verdade, não podia o navegador saber se pior destino não os acolheria a nova ilha ou a cidade que os esperava... A jovem, na sua ingenuidade, ou talvez porque a fama de Sócrates precedesse a Sócrates, riu. Pois, que deveria ela fazer se não rir singelamente da ironia de Sócrates: dizendo a verdade como se fosse uma piada!
O discurso religioso retrocede para o estético sempre que agradece a Deus a fortuna que o mundo lhe dá. Dizer-se que se está com Deus e que isso tem dado frutos é uma expressão estética: que se esteja bem casado ou que a carreira floresça são determinações estéticas e, religiosamente, é indiferente. Agradecer a Deus a riqueza ou a saúde - e nisto é indiferente querer tanto que não passar fome seja pouco, ou querer tão pouco que baste a saúde - é uma expressão estética que ilude se pretende ser religiosa. Porque se se agradece a riqueza ou a saúde por que se agradece a Deus? Será porque só Deus sabe se é para nós um bem a saúde ou a riqueza, ou porque sabemos nós o que para nós é um bem? Será que agradecemos a Deus porque só Deus nos interessa ou agradecemos-lhe porque nos foi útil ao dar-nos saúde ou riqueza? Será que realmente estamos na relação com Deus e no resto por acidente, ou será que estamos essencialmente no mundo e queremos de Deus o que dá jeito no mundo?
Na Grécia Antiga havia uns senhores que andavam de ilha em ilha levando pessoas e uma vez uma jovem foi buscar junto ao mar pelo seu futuro esposo. Encontrou lá a Sócrates a quem perguntou por ele. Sócrates, como só ele o poderia fazer seriamente, disse então que o navegador não sabia realmente o que fazia. A jovem, admirada, perguntou por que dizia ele isso - ao que Sócrates respondeu, como só ele o poderia fazer ironicamente, que o navegador não sabia o que fazia porque não sabia, quando levava homens de ilha em ilha e os descarregava em terra e lhes pedia as moedas, se não teria sido melhor deixá-los morrer em mar, pois que, na verdade, não podia o navegador saber se pior destino não os acolheria a nova ilha ou a cidade que os esperava... A jovem, na sua ingenuidade, ou talvez porque a fama de Sócrates precedesse a Sócrates, riu. Pois, que deveria ela fazer se não rir singelamente da ironia de Sócrates: dizendo a verdade como se fosse uma piada!
terça-feira, 17 de dezembro de 2013
Ética e religião nos dias de hoje...
A propósito de,
Kierkegaard considerava que a Igreja do seu tempo se tinha transformado numa espécie de teatro ou de hotel que fazia os possíveis para atrair clientes. Ora, de facto esta mentalidade permanece ainda hoje - de tal modo que já quase ninguém tem escrúpulos de dizer que a Igreja (qualquer uma delas) deve adaptar-se aos tempos, ir ao encontro das pessoas... Este afã de atrair clientes tem feito autênticas operações plásticas à ideia de salvação e ao caminho da salvação... É verdade que o evangelho diz que a porta da salvação é estreita e o caminho que leva lá difícil - mas quase já ninguém se lembra de tais incómodas palavras! Hoje o discurso religioso - não só dos padres, mas também de qualquer crente bem intencionado que nos pretenda chamar para a luz - embeleza de tal forma o caminho da salvação, o discurso das virtudes da fé que, a páginas tantas, uma pessoa já não sabe bem qual dos caminhos oferece maior tentação: se o caminho recto, se o caminho incorrecto... A fé e a virtude são de tal modo adornadas que parece impossível que o Diabo consiga arranjar coisa mais bela e doce, e parece quase impossível que alguém chegue alguma vez a pecar se o caminho da verdade é tão tentador!
O mesmo acontece com a ética, segundo Kierkegaard... o discurso que hoje se apresenta como ético reveste-se de uma sagacidade cuja máxima é: ne quid nimis. "Nada em excesso" em ordem a poder ainda obter mais... A isto chama Johannes Climacus: a doutrina da prudência - segundo a qual o eudemonista se torna estúpido, não porque - como a antiga ética estupidamente supunha - prefira o caminho do prazer em vez do caminho da virtude, mas porque não escolhe o caminho que, prudentemente, lhe traria mais prazer...
(cf. Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 403-404)
Kierkegaard considerava que a Igreja do seu tempo se tinha transformado numa espécie de teatro ou de hotel que fazia os possíveis para atrair clientes. Ora, de facto esta mentalidade permanece ainda hoje - de tal modo que já quase ninguém tem escrúpulos de dizer que a Igreja (qualquer uma delas) deve adaptar-se aos tempos, ir ao encontro das pessoas... Este afã de atrair clientes tem feito autênticas operações plásticas à ideia de salvação e ao caminho da salvação... É verdade que o evangelho diz que a porta da salvação é estreita e o caminho que leva lá difícil - mas quase já ninguém se lembra de tais incómodas palavras! Hoje o discurso religioso - não só dos padres, mas também de qualquer crente bem intencionado que nos pretenda chamar para a luz - embeleza de tal forma o caminho da salvação, o discurso das virtudes da fé que, a páginas tantas, uma pessoa já não sabe bem qual dos caminhos oferece maior tentação: se o caminho recto, se o caminho incorrecto... A fé e a virtude são de tal modo adornadas que parece impossível que o Diabo consiga arranjar coisa mais bela e doce, e parece quase impossível que alguém chegue alguma vez a pecar se o caminho da verdade é tão tentador!
(cf. Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 403-404)
sábado, 14 de dezembro de 2013
Ética e psicopatas formais
A propósito de psicopatas...
Agora o exercício deve ser o inverso. Imagine-se um sujeito
cuja vida é a expressão de uma decisão. Uma decisão que depois toma novamente
de cada vez, de tal modo que a sua vida é sucessivamente escolhida - e, deste
modo, não é um desenvolvimento automático da sua essência. Este indivíduo não é
o desenvolvimento automático da sua própria essência. A sua vida é expressão da
sua decisão.
Se imaginarmos um indivíduo destes cuja decisão seja, por
exemplo, dedicar-se a ajudar os outros, que diferença existe entre este indivíduo
e o psicopata que faz justamente o mesmo enquanto expressão do desenvolvimento
da sua essência, que é o desejo totalitário de ajudar os outros? Qual é a
diferença entre o indivíduo-decisão e o psicopata? Bem, as suas essências podem
ser a mesma, podem ambos ter o mesmo desejo totalitário – mas, ainda assim,
ambos são formalmente diferentes. O decisivo aqui é justamente que, enquanto
exteriormente podem corresponder ao mesmo, interiormente a diferença é
fundamental – e a diferença é tão fundamental que, perante ela, o psicopata e o
diletante são o mesmo: ambos são uma variante do desenvolvimento de uma
essência. Quer dizer: formalmente, o psicopata e o diletante são reduzidos ao
mesmo substracto quando comparados com o indivíduo-decisão.
Psicopatas formais e ética
A propósito de psicopatas...
Tomemos a seguinte definição de psicopata: alguém que sabe o que o faz feliz e que se preocupa apenas com a obtenção disso (isto envolve, conforme os diferentes níveis de consciência disso, o esforço para obter isso, o esforço para a manutenção disso, o esforço para obter isso sem destruir as possibilidades de continuar a obter, etc, etc, etc - os níveis são progressivamente prudentes).
Dentro desta definição podemos pensar e observar no mundo pessoas que são psicopatas - e outras que o não são. Essas que o não são, chamemos-lhe esquizofrénicas existenciais, porque tendem a ter muitos fins, várias ocupações, e a embrenharem-se em existências mais ou menos diletantes, mas sendo sempre variações diletantes. Deixemos os esquizofrénicos existenciais e foquemo-nos nos psicopatas.
Os psicopatas existenciais podem ser muito diferentes, e cada época histórica parece favorecer mais uns ou outros, de tal modo que o psicopata que no século XII era um herói, hoje poderia ser um assassino, e aquele que hoje é um herói, não teria ficado na história no século X - e o inverso também é verdade: um herói do século IV a.C., hoje seria um sem-abrigo. É deliberadamente que não me estou a ocupar de dar exemplo concretos - mas qualquer um com o secundário feito pode muito bem encontrá-los na sua memória ou nos manuais. O decisivo aqui é que os psicopatas são aplaudidos, encarcerados ou ignorados conforme o tempo em que vivem - não conforme à sua psicopatia.
Então, há também psicopatas que têm um desejo totalitário de ajudar os outros. Se este desejo é considerado mórbido ou virtuoso, isso deve ser deixado aos psiquiatras ou aos padres - por agora preocupemo-nos com este facto decisivo: não há nenhuma diferença formal entre o psicopata que mata por prazer e aquele que dá abrigo aos pobres por prazer. Não há nenhuma diferença forma - repita-se porque isto é difícil de apreender.
Depois há um tipo formalmente estranho de psicopatia - aquele que tem o desejo totalitário de ser ignorado, isolado, só. Este psicopata é formalmente o mesmo que os outros: sim, é o mesmo. Mas não deixa de ser estranho - porque, formalmente, só pode ser o que é se, e apenas se, não acontecer com ele que o seu tempo lhe dê fama. Assim, se acontecer que um momento histórico ache por bem aplaudir o eremita, o eremita será transformado num fenómeno, e a essencialidade do ser fenómeno está no aparecer, enquanto a essência do eremita está no não aparecer. Mas, formalmente, o psicopata eremita é um psicopata, e o ser eremita é o que no ser-se psicopata é acidental - embora, para o sujeito, seja o ser eremita que é essencial. Mas o psicopata eremita é tão psicopata como os psicopatas que podem manter a sua essência mesmo quando se tornam fenómenos públicos - não há nenhuma diferença formal, há apenas uma curiosidade formal, mas esta curiosidade está essencialmente ligada à essência do sujeito, e não à forma psicopata: o que essencialmente distingue o psicopata assassino do psicopata eremita é que um é assassino e o outro eremita - mas ambos são psicopatas - e, por isso, o facto de o assassino poder ser aplaudido numa época não muda nada formalmente, embora o eremita, ao ser aplaudido, seja contraditado na sua essência - o que significa apenas que o eremita não vai gostar de ser aplaudido, vai rejeitar o aplauso, vai ser arrogante, vai fugir dos jornalistas, e pode até acontecer que estes movimentos o tornem ainda mais famoso e ainda mais heróico aos olhos dos seus contemporâneos...
O decisivo aqui é apenas uma coisa: temos uma forma apenas, a forma psicopata, o resto não é decisivo quanto à forma. Para apontar uma diferença formal precisamos de, por exemplo, descrever outra forma, por exemplo, a forma diletante. Assim, a diferença entre aquele psicopata que está preso e aquele que está nos tops da publicidade é uma diferença acidentalmente histórica, tal como a diferença entre o psicopata assassino e o psicopata bem-feitor é apenas uma diferença acidentalmente subjectiva. Na medida em que ambos desenvolvem apenas a sua vinculação a si mesmos, devemos dizer que, eticamente, nenhum deles põe nada de valor - enquanto ambos desenvolvem um talento, a única coisa a debater aqui é se estamos perante uma a-moralidade ou uma i-moralidade...
O problema, então, é o seguinte: a que forma corresponde o ético??? (Nota bene: nenhuma das anteriores)
Tomemos a seguinte definição de psicopata: alguém que sabe o que o faz feliz e que se preocupa apenas com a obtenção disso (isto envolve, conforme os diferentes níveis de consciência disso, o esforço para obter isso, o esforço para a manutenção disso, o esforço para obter isso sem destruir as possibilidades de continuar a obter, etc, etc, etc - os níveis são progressivamente prudentes).
Dentro desta definição podemos pensar e observar no mundo pessoas que são psicopatas - e outras que o não são. Essas que o não são, chamemos-lhe esquizofrénicas existenciais, porque tendem a ter muitos fins, várias ocupações, e a embrenharem-se em existências mais ou menos diletantes, mas sendo sempre variações diletantes. Deixemos os esquizofrénicos existenciais e foquemo-nos nos psicopatas.
Os psicopatas existenciais podem ser muito diferentes, e cada época histórica parece favorecer mais uns ou outros, de tal modo que o psicopata que no século XII era um herói, hoje poderia ser um assassino, e aquele que hoje é um herói, não teria ficado na história no século X - e o inverso também é verdade: um herói do século IV a.C., hoje seria um sem-abrigo. É deliberadamente que não me estou a ocupar de dar exemplo concretos - mas qualquer um com o secundário feito pode muito bem encontrá-los na sua memória ou nos manuais. O decisivo aqui é que os psicopatas são aplaudidos, encarcerados ou ignorados conforme o tempo em que vivem - não conforme à sua psicopatia.
Então, há também psicopatas que têm um desejo totalitário de ajudar os outros. Se este desejo é considerado mórbido ou virtuoso, isso deve ser deixado aos psiquiatras ou aos padres - por agora preocupemo-nos com este facto decisivo: não há nenhuma diferença formal entre o psicopata que mata por prazer e aquele que dá abrigo aos pobres por prazer. Não há nenhuma diferença forma - repita-se porque isto é difícil de apreender.
Depois há um tipo formalmente estranho de psicopatia - aquele que tem o desejo totalitário de ser ignorado, isolado, só. Este psicopata é formalmente o mesmo que os outros: sim, é o mesmo. Mas não deixa de ser estranho - porque, formalmente, só pode ser o que é se, e apenas se, não acontecer com ele que o seu tempo lhe dê fama. Assim, se acontecer que um momento histórico ache por bem aplaudir o eremita, o eremita será transformado num fenómeno, e a essencialidade do ser fenómeno está no aparecer, enquanto a essência do eremita está no não aparecer. Mas, formalmente, o psicopata eremita é um psicopata, e o ser eremita é o que no ser-se psicopata é acidental - embora, para o sujeito, seja o ser eremita que é essencial. Mas o psicopata eremita é tão psicopata como os psicopatas que podem manter a sua essência mesmo quando se tornam fenómenos públicos - não há nenhuma diferença formal, há apenas uma curiosidade formal, mas esta curiosidade está essencialmente ligada à essência do sujeito, e não à forma psicopata: o que essencialmente distingue o psicopata assassino do psicopata eremita é que um é assassino e o outro eremita - mas ambos são psicopatas - e, por isso, o facto de o assassino poder ser aplaudido numa época não muda nada formalmente, embora o eremita, ao ser aplaudido, seja contraditado na sua essência - o que significa apenas que o eremita não vai gostar de ser aplaudido, vai rejeitar o aplauso, vai ser arrogante, vai fugir dos jornalistas, e pode até acontecer que estes movimentos o tornem ainda mais famoso e ainda mais heróico aos olhos dos seus contemporâneos...
O decisivo aqui é apenas uma coisa: temos uma forma apenas, a forma psicopata, o resto não é decisivo quanto à forma. Para apontar uma diferença formal precisamos de, por exemplo, descrever outra forma, por exemplo, a forma diletante. Assim, a diferença entre aquele psicopata que está preso e aquele que está nos tops da publicidade é uma diferença acidentalmente histórica, tal como a diferença entre o psicopata assassino e o psicopata bem-feitor é apenas uma diferença acidentalmente subjectiva. Na medida em que ambos desenvolvem apenas a sua vinculação a si mesmos, devemos dizer que, eticamente, nenhum deles põe nada de valor - enquanto ambos desenvolvem um talento, a única coisa a debater aqui é se estamos perante uma a-moralidade ou uma i-moralidade...
O problema, então, é o seguinte: a que forma corresponde o ético??? (Nota bene: nenhuma das anteriores)
Mandela é uma possibilidade humana - para cada humano
A propósito de admiração
O espectáculo a que se tem votado a morte de Mandela é uma aparência. É uma ilusão.
Tem-se realçado severamente a excepcionalidade de Mandela, e isso é admiração e a admiração é imaginação. As pessoas imaginam que entenderam Mandela que existiu e fez isto ou aquilo, cumpriu este ou aquele feito espectacular, se comportou desta ou daquela maneira excepcional, e é aqui que reside a ilusão: no imaginar que tudo isso são factos históricos que caracterizaram um grande homem que nos suscita admiração - e esta admiração é que é ilusão. A pessoa de Mandela é transformada numa excepção que se admira por ter sido um grande homem, e que aquilo que ele fez o fez porque era excepcional, um homem como os outros não são: um homem como Eu não posso ser - e é aqui que reside a ilusão. A admiração é a ilusão pela qual Eu me isento de ser como ele foi, porque o "como" dele já foi petrificado na realidade dele como marca da distância dele a mim: eu não faria o mesmo, mas está tudo bem porque, afinal, ele era um grande homem e eu sou insignificante. Que Mandela é um homem excepcional, que portanto ser um homem excepcional não está ao alcance de todos, que seguir a própria consciência está reservado apenas a uns seres humanos que volta e meia surgem no Planeta, eis a ilusão, eis a aparência, eis a auto-ilusão, a desculpa que dou a mim mesmo para não ser nada como ele.
Na admiração de Mandela cada um isenta-se, cada um aplaude - mas não concebe realmente a realidade ética de Mandela como uma possibilidade sua. A consciência de Mandela deveria ser excepcional, ele deveria ser um ente diferente dos demais, qualquer coisa que não era deste mundo - e ouvimos de facto as pessoas dizerem coisas como estas... Tal como o procurador que acusou Mandela lhe disse que se sentia mal com o seu trabalho por ter de o acusar: mas Mandela, para fazer o que fez, teve que arriscar tudo - o procurador admirava aquele ser que estava à sua frente, à sua mercê, esse ser excepcional que arriscara a vida, que estava em risco de perder a vida por ser capaz de seguir a sua consciência, e o procurador sentia admiração por esse ser tão excepcional com o qual, evidentemente, não se poderia comparar... arriscar como Mandela arriscara não era, para o procurador, evidentemente, uma possibilidade...
A admiração que podemos ter por Mandela, por Sócrates, por Jesus - esta admiração é justamente a ilusão, porque enquanto admiramos pessoas que viveram e existiram nas suas possibilidades, mas as admiramos justamente enquanto pessoas reais, não concebemos que a realidade dessas pessoas seja uma possibilidade nossa, precisamente porque as consideramos excepcionais. As vidas reais das pessoas reais que admiramos enquanto tendo sido sujeitos históricos dignos de admiração não são concebidas como possibilidades nossas, porque não temos a seriedade necessária para levar a sério as suas vidas na medida em que são pessoas históricas e reais. Mas só quando as suas vidas são concebidas como possibilidades nossas, isto é, só quando não deixamos adormecer a nossa consciência na ilusão de que a realidade dessas pessoas se deveu a qualquer coisa de excepcional nelas, a algum talento, a alguma diferença, talvez uma alma mais robusta, um espírito mais musculado - só quando se desfaz a ilusão de que connosco não se trata de seguir a nossa consciência tal como eles seguiram - só então entendemos que essas vivas não são factos, mas sim possibilidades existenciais, possibilidades autênticas que também nós - essencialmente nós temos disponíveis. Cada um está apto a ser ético - o ponto decisivo não está nas diferenças. Transformar o sujeito ético num facto histórico e seguir explicando as suas acções psicológica, biológica, biograficamente - é uma ilusão...
Outra ilusão - embora de tipo diferente - é a de tomar o sucesso de Mandela como prova de sua grandiosidade moral. O seu sucesso não prova nada - e não tivesse ele alcançado sucesso, tivesse ele morrido antes de ser reconhecido, tivesse ele sido esquecido, isto seria indiferente, isto seria acaso. É uma imoralidade julgar que a história julga eticamente ou que a moralidade será sancionada historicamente.
Outra ilusão é julgar que o talento de Mandela para conquistar as pessoas é prova de alguma coisa... já deveríamos saber que as pessoas com talento para conquistar outras são da mais diversa espécie. Mesmo que toda uma geração, toda uma época se renda a uma personalidade, ainda assim nada é posto eticamente - e o inverso mantém-se válido, a saber, que mesmo que uma pessoa não convença ninguém pode estar certa, pode ser justamente a única que age eticamente. Ignorar este facto é imoral e com certeza não é ético.
O espectáculo a que se tem votado a morte de Mandela é uma aparência. É uma ilusão.
Tem-se realçado severamente a excepcionalidade de Mandela, e isso é admiração e a admiração é imaginação. As pessoas imaginam que entenderam Mandela que existiu e fez isto ou aquilo, cumpriu este ou aquele feito espectacular, se comportou desta ou daquela maneira excepcional, e é aqui que reside a ilusão: no imaginar que tudo isso são factos históricos que caracterizaram um grande homem que nos suscita admiração - e esta admiração é que é ilusão. A pessoa de Mandela é transformada numa excepção que se admira por ter sido um grande homem, e que aquilo que ele fez o fez porque era excepcional, um homem como os outros não são: um homem como Eu não posso ser - e é aqui que reside a ilusão. A admiração é a ilusão pela qual Eu me isento de ser como ele foi, porque o "como" dele já foi petrificado na realidade dele como marca da distância dele a mim: eu não faria o mesmo, mas está tudo bem porque, afinal, ele era um grande homem e eu sou insignificante. Que Mandela é um homem excepcional, que portanto ser um homem excepcional não está ao alcance de todos, que seguir a própria consciência está reservado apenas a uns seres humanos que volta e meia surgem no Planeta, eis a ilusão, eis a aparência, eis a auto-ilusão, a desculpa que dou a mim mesmo para não ser nada como ele.
Na admiração de Mandela cada um isenta-se, cada um aplaude - mas não concebe realmente a realidade ética de Mandela como uma possibilidade sua. A consciência de Mandela deveria ser excepcional, ele deveria ser um ente diferente dos demais, qualquer coisa que não era deste mundo - e ouvimos de facto as pessoas dizerem coisas como estas... Tal como o procurador que acusou Mandela lhe disse que se sentia mal com o seu trabalho por ter de o acusar: mas Mandela, para fazer o que fez, teve que arriscar tudo - o procurador admirava aquele ser que estava à sua frente, à sua mercê, esse ser excepcional que arriscara a vida, que estava em risco de perder a vida por ser capaz de seguir a sua consciência, e o procurador sentia admiração por esse ser tão excepcional com o qual, evidentemente, não se poderia comparar... arriscar como Mandela arriscara não era, para o procurador, evidentemente, uma possibilidade...
A admiração que podemos ter por Mandela, por Sócrates, por Jesus - esta admiração é justamente a ilusão, porque enquanto admiramos pessoas que viveram e existiram nas suas possibilidades, mas as admiramos justamente enquanto pessoas reais, não concebemos que a realidade dessas pessoas seja uma possibilidade nossa, precisamente porque as consideramos excepcionais. As vidas reais das pessoas reais que admiramos enquanto tendo sido sujeitos históricos dignos de admiração não são concebidas como possibilidades nossas, porque não temos a seriedade necessária para levar a sério as suas vidas na medida em que são pessoas históricas e reais. Mas só quando as suas vidas são concebidas como possibilidades nossas, isto é, só quando não deixamos adormecer a nossa consciência na ilusão de que a realidade dessas pessoas se deveu a qualquer coisa de excepcional nelas, a algum talento, a alguma diferença, talvez uma alma mais robusta, um espírito mais musculado - só quando se desfaz a ilusão de que connosco não se trata de seguir a nossa consciência tal como eles seguiram - só então entendemos que essas vivas não são factos, mas sim possibilidades existenciais, possibilidades autênticas que também nós - essencialmente nós temos disponíveis. Cada um está apto a ser ético - o ponto decisivo não está nas diferenças. Transformar o sujeito ético num facto histórico e seguir explicando as suas acções psicológica, biológica, biograficamente - é uma ilusão...
Outra ilusão - embora de tipo diferente - é a de tomar o sucesso de Mandela como prova de sua grandiosidade moral. O seu sucesso não prova nada - e não tivesse ele alcançado sucesso, tivesse ele morrido antes de ser reconhecido, tivesse ele sido esquecido, isto seria indiferente, isto seria acaso. É uma imoralidade julgar que a história julga eticamente ou que a moralidade será sancionada historicamente.
Outra ilusão é julgar que o talento de Mandela para conquistar as pessoas é prova de alguma coisa... já deveríamos saber que as pessoas com talento para conquistar outras são da mais diversa espécie. Mesmo que toda uma geração, toda uma época se renda a uma personalidade, ainda assim nada é posto eticamente - e o inverso mantém-se válido, a saber, que mesmo que uma pessoa não convença ninguém pode estar certa, pode ser justamente a única que age eticamente. Ignorar este facto é imoral e com certeza não é ético.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2013
Sofrimento e consciência de si em Kierkegaard
A propósito de sofrimento...
Para Kierkegaard o sofrimento é próprio da consciência de si. O sofrimento não é próprio da autenticidade como qualquer coisa que deve ser vencida e superada - mas pela sua continuidade perpétua. A autenticidade é sofrimento contínuo e que tem, para ser realmente autenticidade, de ser escolhido. Aquilo que é considerado o mais natural, o mais simples e, por isso, uma perda de tempo, é justamente o mais difícil, aquilo acerca do qual cada um mais se engana a si mesmo: a saber, o ser autenticamente um humano. Para se ter a ideia do que isto significa tem que se colocar uma mão sobre uma placa ardente, sentir a dor e, depois, não tirar a mão - não pensar noutra coisa, não recorrer aos treinos psicológicos que permitem que certos tropas especiais suportem as dores, não. O sofrimento deve aqui ser entendido como aquilo que o sujeito deve querer manter, não porque ele se tenha tornado qualquer coisa agradável, não porque se tem um gosto por sofrer - o que ainda é um engano, uma ilusão, um ainda não ter percebido o que é o sofrimento. E depois é preciso ainda perceber que não se está, de facto, a falar de sofrimento físico, mas do sofrimento da interioridade. Então temos aí uma pequena ideia de que, de facto, não é fácil ser-se um humano na plena consciência de si como sujeito individual existente.
(Cf. Johannes Climacus, Anti-Climacus e discursos edificantes)
Dizia Johannes Climacus no Postscriptum que, se devesse ficar famoso por alguma coisa, que o ficasse por não compreender as exigências do seu tempo. No seu tempo as pessoas queriam tornar tudo mais fácil e cómodo, ou ter tudo comodamente facilitado. No seu tempo era assim.
Para Kierkegaard o sofrimento é próprio da consciência de si. O sofrimento não é próprio da autenticidade como qualquer coisa que deve ser vencida e superada - mas pela sua continuidade perpétua. A autenticidade é sofrimento contínuo e que tem, para ser realmente autenticidade, de ser escolhido. Aquilo que é considerado o mais natural, o mais simples e, por isso, uma perda de tempo, é justamente o mais difícil, aquilo acerca do qual cada um mais se engana a si mesmo: a saber, o ser autenticamente um humano. Para se ter a ideia do que isto significa tem que se colocar uma mão sobre uma placa ardente, sentir a dor e, depois, não tirar a mão - não pensar noutra coisa, não recorrer aos treinos psicológicos que permitem que certos tropas especiais suportem as dores, não. O sofrimento deve aqui ser entendido como aquilo que o sujeito deve querer manter, não porque ele se tenha tornado qualquer coisa agradável, não porque se tem um gosto por sofrer - o que ainda é um engano, uma ilusão, um ainda não ter percebido o que é o sofrimento. E depois é preciso ainda perceber que não se está, de facto, a falar de sofrimento físico, mas do sofrimento da interioridade. Então temos aí uma pequena ideia de que, de facto, não é fácil ser-se um humano na plena consciência de si como sujeito individual existente.
(Cf. Johannes Climacus, Anti-Climacus e discursos edificantes)
Dizia Johannes Climacus no Postscriptum que, se devesse ficar famoso por alguma coisa, que o ficasse por não compreender as exigências do seu tempo. No seu tempo as pessoas queriam tornar tudo mais fácil e cómodo, ou ter tudo comodamente facilitado. No seu tempo era assim.
domingo, 8 de dezembro de 2013
O indivíduo e a manada - Uma sugestão compreensiva
A propósito da equivocidade da História e da Relatividade dos padrões culturais...
O estudo das culturas humanas transmite uma ideia ilusória do que significa ser humano. Primeiro observam-se diferentes povos para registar diferentes culturas. Depois, supõe-se que o humano é exclusivamente isso, essencialmente a cultura em que habita. A ilusão está na ideia que o homem vem a ser humano, que ser humano tem que ver com o processo de integração cultural no qual os indivíduos interiorizam padrões culturais e se tornam membros de uma comunidade, pensando de forma semelhante, pelo menos estatisticamente unificados. Assim, diz-se que o homem tem de tornar-se humano, como se tratasse de tratar os homens em manada, uma manada de cabras, uma manada de ovelhas, uma manada de vacas - e assim cada povo seria uma manada diferente, mas cada uma seria uma manada. A ilusão está em que, de facto, o homem deve tornar-se humano, ser humano não está, de modo algum, adquirido à partida. Que o homem deve tornar-se humano é uma constatação excelente que, no entanto, aqui desvia completamente o olhar, não porque ela esteja errada, mas justamente porque ela está certa. Ao observarem-se os povos para identificar as diferentes "formas de vida" aquilo que justamente fica ignorado, esquecido, é o aspecto individual da pessoa humana, e pode acontecer que seja precisamente na existência da pessoa individual que resida a essência do humano. Então, se já se esqueceu o indivíduo, de facto pode-se estudar este povo que sacrificava crianças aos milhares, aquele que consumia homens, outro ainda que matava os idosos - e em todos estes registos o que fica por registar ou, de qualquer forma, por receber atenção, é aquele indivíduo isolado, sofredor, corajoso que, a despeito daquilo que se passa ao lado de si, daquilo que todos à sua volta comemoravam, recusava, justamente, isso que os estudiosos dizem ser aquilo que faz um humano, a cultura que em manada tanto mata recém-nascidos como louva os direitos humanos. Se numa nota de rodapé um antropólogo faz notar os intrincados modos de uma cultura para castigar aqueles que recusavam participar nos procedimentos de massa desse povo - imediatamente a seguir esquece que esses procedimentos comprovam que havia quem recusava o ritual quando pretende desculpar as pessoas desse povo absolvendo o povo como um todo. Que interessante seria a investigação cuidada e demorada daqueles indivíduos que, em cada cultura, recusaram esses padrões, esses comportamentos aceites em manada! Que interessante seria registar não só o padrão, mas também o indivíduo que apesar da tendência para interiorizar padrões culturais, julgou pela sua consciência... aquele indivíduo que recusou o sacrifício de crianças a Tlaloc, ou aquele que poupou a vida de um inimigo em vez de o cozinhar... Não será também interessante que alguns que por nascerem num povo canibal seriam referidos como canibais também tenham sido capazes de recusarem ser canibais - e que alguns que tendo nascido numa época de caça às bruxas acabaram por ser caçados justamente porque defenderam as "bruxas"? Não será também interessante reparar que em todos esses tempos e povos houve aqueles indivíduos que não participaram ou até se rebelaram contra aquilo que se considera ser o "essencial" desses povos ou desses tempos? E em todos esses tempos e povos houve uma imensa maioria que se comporta como onda, de facto escurecendo e esbatendo, não esta ou aquela minoria com que o historiador também tanto gosta de se ocupar - mas este ou aquele indivíduo que, isolado, provavelmente com medo, talvez indeciso, foi ele mesmo, só, sem manada!
Cfr. Kierkegaard's Concluding Unscientific Postscript to Philosophical Fragments, ed. & transl. Hong & Hong, pp. 214-215:
"Será que o ser humano se tornou agora qualquer coisa diferente do que era antigamente, não é a condição a mesma: ser um ser individual existente, e não é o existir o essencial enquanto se é na existência?"
Não é mais fácil para o indivíduo existente actualmente ser autenticamente si mesmo do que era para o asteca, o grego, o homem da idade média - e se nesse tempo "o terror era sofrer ofensas físicas, o terror nos nossos dias é que não há terror", tudo parece tão fácil, e porque parece tão fácil ser-se indivíduo, ninguém perde realmente tempo a ocupar-se disso.
O estudo das culturas humanas transmite uma ideia ilusória do que significa ser humano. Primeiro observam-se diferentes povos para registar diferentes culturas. Depois, supõe-se que o humano é exclusivamente isso, essencialmente a cultura em que habita. A ilusão está na ideia que o homem vem a ser humano, que ser humano tem que ver com o processo de integração cultural no qual os indivíduos interiorizam padrões culturais e se tornam membros de uma comunidade, pensando de forma semelhante, pelo menos estatisticamente unificados. Assim, diz-se que o homem tem de tornar-se humano, como se tratasse de tratar os homens em manada, uma manada de cabras, uma manada de ovelhas, uma manada de vacas - e assim cada povo seria uma manada diferente, mas cada uma seria uma manada. A ilusão está em que, de facto, o homem deve tornar-se humano, ser humano não está, de modo algum, adquirido à partida. Que o homem deve tornar-se humano é uma constatação excelente que, no entanto, aqui desvia completamente o olhar, não porque ela esteja errada, mas justamente porque ela está certa. Ao observarem-se os povos para identificar as diferentes "formas de vida" aquilo que justamente fica ignorado, esquecido, é o aspecto individual da pessoa humana, e pode acontecer que seja precisamente na existência da pessoa individual que resida a essência do humano. Então, se já se esqueceu o indivíduo, de facto pode-se estudar este povo que sacrificava crianças aos milhares, aquele que consumia homens, outro ainda que matava os idosos - e em todos estes registos o que fica por registar ou, de qualquer forma, por receber atenção, é aquele indivíduo isolado, sofredor, corajoso que, a despeito daquilo que se passa ao lado de si, daquilo que todos à sua volta comemoravam, recusava, justamente, isso que os estudiosos dizem ser aquilo que faz um humano, a cultura que em manada tanto mata recém-nascidos como louva os direitos humanos. Se numa nota de rodapé um antropólogo faz notar os intrincados modos de uma cultura para castigar aqueles que recusavam participar nos procedimentos de massa desse povo - imediatamente a seguir esquece que esses procedimentos comprovam que havia quem recusava o ritual quando pretende desculpar as pessoas desse povo absolvendo o povo como um todo. Que interessante seria a investigação cuidada e demorada daqueles indivíduos que, em cada cultura, recusaram esses padrões, esses comportamentos aceites em manada! Que interessante seria registar não só o padrão, mas também o indivíduo que apesar da tendência para interiorizar padrões culturais, julgou pela sua consciência... aquele indivíduo que recusou o sacrifício de crianças a Tlaloc, ou aquele que poupou a vida de um inimigo em vez de o cozinhar... Não será também interessante que alguns que por nascerem num povo canibal seriam referidos como canibais também tenham sido capazes de recusarem ser canibais - e que alguns que tendo nascido numa época de caça às bruxas acabaram por ser caçados justamente porque defenderam as "bruxas"? Não será também interessante reparar que em todos esses tempos e povos houve aqueles indivíduos que não participaram ou até se rebelaram contra aquilo que se considera ser o "essencial" desses povos ou desses tempos? E em todos esses tempos e povos houve uma imensa maioria que se comporta como onda, de facto escurecendo e esbatendo, não esta ou aquela minoria com que o historiador também tanto gosta de se ocupar - mas este ou aquele indivíduo que, isolado, provavelmente com medo, talvez indeciso, foi ele mesmo, só, sem manada!
Cfr. Kierkegaard's Concluding Unscientific Postscript to Philosophical Fragments, ed. & transl. Hong & Hong, pp. 214-215:
"Será que o ser humano se tornou agora qualquer coisa diferente do que era antigamente, não é a condição a mesma: ser um ser individual existente, e não é o existir o essencial enquanto se é na existência?"
Não é mais fácil para o indivíduo existente actualmente ser autenticamente si mesmo do que era para o asteca, o grego, o homem da idade média - e se nesse tempo "o terror era sofrer ofensas físicas, o terror nos nossos dias é que não há terror", tudo parece tão fácil, e porque parece tão fácil ser-se indivíduo, ninguém perde realmente tempo a ocupar-se disso.
sábado, 7 de dezembro de 2013
Mandela v/s Cavaco, dignidade e indignidade humana
A propósito das condolências de Cavaco em relação à morte de Mandela... ou quando um homem deveria saber ficar calado por ser tão estúpido que qualquer coisa que diga só pode soar a asneira...
Já é uma completa falta de respeito para com Mandela que os nossos governantes se pronunciem sobre ele e sobre a sua actuação ao longo da vida. E é uma falta de respeito porque os nossos governantes representam o oposto de Mandela, isto é, representam não a ditadura de direito e de facto, mas sim representam aquela postura muito mais ignominiosa de quem sempre está do lado dos interesses do momento e que, portanto, tanto é indiferente à dignidade humana como colabora com as piores atrocidades: são assim os nossos governantes.
Já é uma completa falta de respeito para com Mandela que os nossos governantes se pronunciem sobre ele e sobre a sua actuação ao longo da vida. E é uma falta de respeito porque os nossos governantes representam o oposto de Mandela, isto é, representam não a ditadura de direito e de facto, mas sim representam aquela postura muito mais ignominiosa de quem sempre está do lado dos interesses do momento e que, portanto, tanto é indiferente à dignidade humana como colabora com as piores atrocidades: são assim os nossos governantes.
Mas pior é Cavaco Silva. Este senhor que hoje, para prova de que a factualidade histórica dá visibilidade e sucesso segundo o acaso de forma absolutamente indiferente, este senhor que hoje é o Presidente de Portugal para prova de que os portugueses sabem esquecer mesmo as coisas que são mais importantes, este senhor que hoje envia mensagem de condolências pela morte de Mandela, para prova de que não tem esqueleto moral, foi justamente aquele que, no momento em que a maioria da diplomacia mundial se alinhava do lado de Mandela quando ele precisava e era altura de lhe dar apoio, esteve do outro lado, do lado dos fracos, sem coragem, sempre com um olho nos interesses do momento e nos interesses de amanhã, e que não têm escrúpulos em mostrar com as suas acções que não têm uma consciência, ou que, se a têm, a mantêm domada. Este senhor, Cavaco Silva, que por um acaso obtuso ocupa a presidência, este senhor é muito pior e da sua boca sair um murmúrio bajulador da memória de Mandela é um muito maior insulto àquilo que Mandela representa. Porque quando Cavaco permaneceu do outro lado quando Mandela mais precisava, já o mundo estava a perceber que Mandela representava o lado de onde mandava a consciência que se estivesse - e ainda assim Cavaco foi casmurro, apegado aos interesses, os seus ou os de Portugal, os desse momento, ou os do futuro desse momento - não interessa: em nome de interesses, Cavaco preferiu estar do outro lado, objectivamente contra Mandela e contra as crianças vítimas daquele regime indigno do apartheid. Resistiu na sua persistente teimosia a favor dos interesses, dos benefícios, das vantagens - tal como hoje continua desse lado, e esse lado é decididamente o outro lado, o lado que ao longo da História sempre esteve presente para esmagar, aprisionar, torturar e matar homens como Mandela...
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
Kierkegaard, citações
[...]
* [...] o que está a discutir-se aqui é a verdade essencial, ou, a verdade que está relacionada essencialmente com a existência [...]
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 165-167
Kierkegaard, citações
o que é desenvolvido nestas páginas não representa qualquer interesse para aqueles que têm mentes simples, e que, sentindo o fardo da vida de outra forma, Deus quer preservar na sua louvável simplicidade, a simplicidade que não sente necessidade de outro tipo de compreensão, ou, na medida em que essa necessidade é sentida, tende a tornar-se apenas um suspiro sobre a miséria da vida, o suspiro que encontra conforto no pensamento de que a felicidade da vida não consiste em ser uma pessoa de conhecimento. Por outro lado, de facto interessa àquele que pensa que tem o talento e a oportunidade para investigações mais profundas, e pertence-lhe de tal maneira que o impede de virar as mãos sem pensar para a História do Mundo antes de ter em mente que ser um ser humano existente é uma tarefa tão extenuante e, ainda assim, tão natural para cada ser humano que uma pessoa naturalmente a escolhe primeiro e, provavelmente, nela encontra o suficiente com que se ocupar durante uma vida.
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 141
Kierkegaard, citações
A dificuldade de uma questão manifesta-se precisamente quando é posta na sua simplicidade, [...].
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 143
Kierkegaard, citações
A verdade objectiva não é suficiente para determinar se aquele que a diz é são, pelo contrário, ela pode justamente mostrar que ele é louco embora aquilo que ele diz seja inteiramente verdadeiro e, em particular, objectivamente verdadeiro.
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 162
Kierkegaard, citações
quando tudo se conjuga para tornar tudo mais fácil de todas as maneiras resta apenas um perigo, nomeadamente, o perigo de que a facilidade se torne tão grande que tudo se torne demasiado fácil.
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 155
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
Leituras de Kierkegaard
A propósito de consciência...
A consciência ética protesta contra toda a objectivação - ela apela ao sujeito, na sua interioridade mais própria, reclamando que cuide de si mesmo com a maior seriedade. A consciência ética intima o indivíduo na sua mais profunda intimidade, e é nesta profundidade que se encontra o direito mais radical do indivíduo de acolher-se a si mesmo - a consciência é uma intimação da subjectividade: objectivamente, ela é nada de nada. Mas mesmo que esteja presente num único humano de entre todos os espécimes de Homo Sapiens Sapiens, então ela está apenas nele, como sempre esteve apenas no indivíduo, e é nessa consciência única, irredutível e sem abstracção possível que a humanidade se conserva acima de toda a história mundial, de toda a explicação sistemática, e de toda a interiorização dos costumes.
terça-feira, 26 de novembro de 2013
A mais baixa forma de ofensa
A propósito de neutralidade ética...
A mais baixa forma de ofensa ética é ser neutro. Deixar-se estar indeciso, não se pronunciar sobre as implicações, presumir-se demasiado miserável para decidir, declarar-se incompetente para julgar - porque ter consciência significa que se trata de julgar, de dever julgar, o sujeito que nega à sua consciência o direito de exigir uma decisão pratica uma injustiça. A consciência ética demanda um "deves" pessoal e íntimo: "tu deves ter uma opinião". O homem que escuta mas não cumpre este imperativo interior não chega a vir a ser humano particular, apenas parece ser um - ou, inversamente, torna-se apenas um homem particular. Não assume a sua humanidade justamente porque não assume responsabilidades na actualidade - ou não se desvincula da actualidade e apenas busca sucesso individual.
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
a mais nobre das possibilidades
A propósito da excelência e da autenticidade...
A maior e mais nobre de todas as possibilidades não se pode receber de ninguém nem aprender com ninguém, mas está constituída desde a nascença e permanece junto de alguém enquanto viver...
Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1114b8-13
A maior e mais nobre de todas as possibilidades não se pode receber de ninguém nem aprender com ninguém, mas está constituída desde a nascença e permanece junto de alguém enquanto viver...
Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1114b8-13
terça-feira, 19 de novembro de 2013
A perda de si mesmo
A propósito de consciência de si.
"Mas, tornar-se uma pessoa fantástica desta maneira, e assim estar no desespero, não significa, ainda que por vezes seja óbvio, que uma pessoa não pode muito bem seguir com a sua vida, parecer ser alguém, estar ocupada com assuntos temporais, casar, ter filhos, ser honrada e estimada - e não se detectará que, num sentido mais profundo, lhe falta um si-mesmo. Coisas destas [a falta de um si-mesmo] não agitam o mundo, pois um si-mesmo é a última coisa que interessa ao mundo, e a coisa mais perigosa de todas para uma pessoa mostrar sinais de a ter. O maior perigo de todos, perder o si-mesmo, pode passar completamente despercebido no mundo, como se não fosse nada. Nenhuma outra perda pode ocorrer tão pacificamente; qualquer outra perda - um braço, uma perna, cinco euros, uma mulher, etc. - certamente será notada."
Kierkegaard, A doença até à morte, XI, 146
"Mas, tornar-se uma pessoa fantástica desta maneira, e assim estar no desespero, não significa, ainda que por vezes seja óbvio, que uma pessoa não pode muito bem seguir com a sua vida, parecer ser alguém, estar ocupada com assuntos temporais, casar, ter filhos, ser honrada e estimada - e não se detectará que, num sentido mais profundo, lhe falta um si-mesmo. Coisas destas [a falta de um si-mesmo] não agitam o mundo, pois um si-mesmo é a última coisa que interessa ao mundo, e a coisa mais perigosa de todas para uma pessoa mostrar sinais de a ter. O maior perigo de todos, perder o si-mesmo, pode passar completamente despercebido no mundo, como se não fosse nada. Nenhuma outra perda pode ocorrer tão pacificamente; qualquer outra perda - um braço, uma perna, cinco euros, uma mulher, etc. - certamente será notada."
Kierkegaard, A doença até à morte, XI, 146
Ser alguém no mundo
A propósito da consciência de si.
A tragédia não é que um eu não venha a ser nada no mundo, a tragédia é que ele não venha a tornar-se consciente de si mesmo, consciente de que o si-mesmo que ele é, é qualquer coisa bem definida e, portanto, o necessário.
Kierkegaard, A doença até à morte, XI, 149
A tragédia não é que um eu não venha a ser nada no mundo, a tragédia é que ele não venha a tornar-se consciente de si mesmo, consciente de que o si-mesmo que ele é, é qualquer coisa bem definida e, portanto, o necessário.
Kierkegaard, A doença até à morte, XI, 149
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
Aprender a morrer
A propósito de morte
"quem pode morrer, não pode ser coagido"
(qui potest mori, non potest cogi)
ou
"quem pode ser coagido, não sabe morrer"
(cogi qui potest nescit mori)
sexta-feira, 1 de novembro de 2013
Morte e angústia
A propósito de morte...
A angústia é o reconhecimento de uma possibilidade como "minha" possibilidade - a morte é a negação de todas as possibilidades...
Consequentemente, a angústia perante a morte é: o reconhecimento da possibilidade da impossibilidade de todas as possibilidades como uma possibilidade "minha".
A morte não é uma impossibilidade. Pelo contrário, é o paradigma da possibilidade. Não há um só momento da minha vida em que a morte não seja possível. Só ela é possível a cada vez, em cada momento, desde que se nasce até que se morre. A angústia perante a morte é o reconhecimento disso: que há uma urgência que me acompanha. É urgente ser.
A angústia é o reconhecimento de uma possibilidade como "minha" possibilidade - a morte é a negação de todas as possibilidades...
Consequentemente, a angústia perante a morte é: o reconhecimento da possibilidade da impossibilidade de todas as possibilidades como uma possibilidade "minha".
A morte não é uma impossibilidade. Pelo contrário, é o paradigma da possibilidade. Não há um só momento da minha vida em que a morte não seja possível. Só ela é possível a cada vez, em cada momento, desde que se nasce até que se morre. A angústia perante a morte é o reconhecimento disso: que há uma urgência que me acompanha. É urgente ser.
quarta-feira, 30 de outubro de 2013
Ética aplicada - problemas
A propósito de dilemas éticos...
Dois casos:
A. Um grupo de terroristas capturou um bebé e um adulto e irá executar ambos:
- a polícia tem dois planos de intervenção aprovados, só falta decidir qual deve ser posto em prática;
- o primeiro plano apresenta 99% de probabilidades de salvar o bebé, mas 100% de que o adulto seja morto no processo;
- o segundo plano apresenta 49% de probabilidades de salvar o bebé e 49% de salvar o adulto.
Q1: qual dos planos é eticamente recomendado?
Q2: qual dos planos recomendaria se fosse o responsável pela decisão?
Q3: se a sua resposta à Q1 diferiu da Q2, justifique essa diferença.
B. Uma grávida teve um acidente e corre perigo de vida:
- se a gravidez for levada até ao fim, a criança tem 100% de hipóteses de sobrevivência sem sequelas, mas a mãe terá apenas 5% de hipóteses de recuperar;
- se a gravidez for interrompida, o feto não tem hipóteses de sobreviver, mas a mãe terá 50% de recuperar, embora fique para sempre com sequelas graves.
Q1: qual dos planos é eticamente recomendado?
Q2: qual dos planos recomendaria se fosse o responsável pela decisão?
Q3: se a sua resposta à Q1 diferiu da Q2, justifique essa diferença.
Dois casos:
A. Um grupo de terroristas capturou um bebé e um adulto e irá executar ambos:
- a polícia tem dois planos de intervenção aprovados, só falta decidir qual deve ser posto em prática;
- o primeiro plano apresenta 99% de probabilidades de salvar o bebé, mas 100% de que o adulto seja morto no processo;
- o segundo plano apresenta 49% de probabilidades de salvar o bebé e 49% de salvar o adulto.
Q1: qual dos planos é eticamente recomendado?
Q2: qual dos planos recomendaria se fosse o responsável pela decisão?
Q3: se a sua resposta à Q1 diferiu da Q2, justifique essa diferença.
B. Uma grávida teve um acidente e corre perigo de vida:
- se a gravidez for levada até ao fim, a criança tem 100% de hipóteses de sobrevivência sem sequelas, mas a mãe terá apenas 5% de hipóteses de recuperar;
- se a gravidez for interrompida, o feto não tem hipóteses de sobreviver, mas a mãe terá 50% de recuperar, embora fique para sempre com sequelas graves.
Q1: qual dos planos é eticamente recomendado?
Q2: qual dos planos recomendaria se fosse o responsável pela decisão?
Q3: se a sua resposta à Q1 diferiu da Q2, justifique essa diferença.
quarta-feira, 23 de outubro de 2013
Anotação para uma "Ética por Quasimodo"
A propósito de ética e amor...
A ideia de que a relação paternal é o arquétipo da ética porque os pais tudo dão aos filhos sem nada pedirem em troca é absurda. O que acontece é que a maioria dos pais só está disposto a cuidar dos filhos porque os ama - ora, a ética é cuidar mesmo quando não se ama.
A ideia de que a relação paternal é o arquétipo da ética porque os pais tudo dão aos filhos sem nada pedirem em troca é absurda. O que acontece é que a maioria dos pais só está disposto a cuidar dos filhos porque os ama - ora, a ética é cuidar mesmo quando não se ama.
A ética é respeitar e cuidar mesmo dos "quasimodos", por quem se sente repulsa física, de quem se deseja distância...
Cuidar e respeitar não só dos belos e bons, daqueles que desejamos ou amamos, mas sobretudo daqueles por quem ninguém se interessa, que estão ao abandono.
Pois, como dizia Jesus: que há de mais em cuidar dos amigos - o decisivo é cuidar dos inimigos!
terça-feira, 22 de outubro de 2013
História da eticidade
A propósito de amar os inimigos...
Da história do amor para com os inimigos:
Lex talionis
"Olho por olho, dente por dente" - no Código de Hamurabi
(a ideia subjacente seria evitar os excessos da vingança e regular a retaliação)
Taoismo
"À hostilidade deve responder-se com benevolência" - Lao-Tsé
Buda
"Mesmo que ladrões e salteadores despedacem alguém membro a mebro, com uma serra com dentes duplos, se o espírito dessa pessoa se encontrar cheio de raiva, não será um seguidor da minha doutrina da salvação. Numa situação destas, também tereis de vos guardar e dizer: o nosso espírito não se perturbará, [...] queremos permanecer amistosos e compassivos, com bons sentimentos, sem ódio interior" - Majjhima-nikaya, 21
Judaísmo
"Se teu inimigo cai, não te alegres com isso" - Prv 24:17
"Se o teu inimigo tem fome, dá-lhe de que comer" - Prv 25:21
Judaísmo helénico
"não é adequado para um homem que adora a deus pagar o mal com o mal" - JosAse 23:9
"não é adequado para um homem que adora a deus ferir alguém de alguma maneira" - Jos Ase 23:12
Cristianismo
"Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, elogiai os que vos amaldiçoam, fazei bem aos que vos odeiam" - Mt 5:44
Estoicismo
"É próprio do humano amar também os que o fizeram tombar. [...] porque não fez com que a tua capacidade de intervenção ficasse pior do que era antes." - Marco Aurélio, Τὰ εἰς ἑαυτόν, VII,22
Da história do amor para com os inimigos:
Lex talionis
"Olho por olho, dente por dente" - no Código de Hamurabi
(a ideia subjacente seria evitar os excessos da vingança e regular a retaliação)
Taoismo
"À hostilidade deve responder-se com benevolência" - Lao-Tsé
Buda
"Mesmo que ladrões e salteadores despedacem alguém membro a mebro, com uma serra com dentes duplos, se o espírito dessa pessoa se encontrar cheio de raiva, não será um seguidor da minha doutrina da salvação. Numa situação destas, também tereis de vos guardar e dizer: o nosso espírito não se perturbará, [...] queremos permanecer amistosos e compassivos, com bons sentimentos, sem ódio interior" - Majjhima-nikaya, 21
Judaísmo
"Se teu inimigo cai, não te alegres com isso" - Prv 24:17
"Se o teu inimigo tem fome, dá-lhe de que comer" - Prv 25:21
Judaísmo helénico
"não é adequado para um homem que adora a deus pagar o mal com o mal" - JosAse 23:9
"não é adequado para um homem que adora a deus ferir alguém de alguma maneira" - Jos Ase 23:12
Cristianismo
"Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, elogiai os que vos amaldiçoam, fazei bem aos que vos odeiam" - Mt 5:44
Estoicismo
"É próprio do humano amar também os que o fizeram tombar. [...] porque não fez com que a tua capacidade de intervenção ficasse pior do que era antes." - Marco Aurélio, Τὰ εἰς ἑαυτόν, VII,22
sábado, 19 de outubro de 2013
Estado e Sociedade - um exercício de compreensão
A propósito de política, Estado e Sociedade - um exercício de compreensão
O Estado não deve representar os interesses da sociedade tal como ela é. O princípio que rege a acção do Estado não é igual, nem coincide com o que rege a sociedade. Sempre que o Estado segue a sociedade o regime torna-se ditatorial - porque a sociedade como ela é consiste na pluralidade, mas o Estado só pode legislar univocamente. Ao seguir a sociedade, porque só o pode fazer impondo um sentir comum ou uma voz maioritária, o Estado torna-se necessariamente ditatorial, pois irrompe na esfera privada tiranizando o cidadão e submetendo o indivíduo à esfera social. Para não destruir a riqueza da sociedade é no interesse desta que o Estado não segue a sociedade. Mas se a sociedade não tem legitimidade para legislar, também o Estado, legislador, não deve impor o seu princípio à sociedade, porque então destrói o seu próprio princípio. O princípio do Estado é a igualdade - perante a lei e as instituições; o princípio da sociedade é a diversidade; o princípio da cidadania é a liberdade. A igualdade não pode impor-se à diversidade sem se perverter a si mesma, pois numa diversidade em que o diverso não é permitido a igualdade foi cancelada - de modo que o Estado que se impõe à sociedade só pode ser Totalitário e unipessoal, o que equivale a ter um Estado total e, simultaneamente, nenhum Estado legítimo.
Assim, senão por uma coincidência extremamente improvável, não pode haver sociedade em que a igualdade exista senão violando a legitimidade - nem pode haver Estado que expresse literalmente a sociedade. Quanto mais semelhante ao Estado for a sociedade, menos há liberdade; quanto mais semelhante à sociedade for o Estado, menos há justiça. Contudo, quanto mais forte o Estado, mais forte a sociedade e mais fraco o indivíduo: no limite, o indivíduo é atomizado e a sociedade é una com o Estado. Porém, quanto mais forte se torna a sociedade menos cresce a força do Estado, até que inevitavelmente a sociedade supera o Estado: no limite, uma minoria governa o Estado. Portanto, o crescimento do Estado não é sustentável indefinidamente pois provocará, com o seu crescimento, a sua própria subordinação aos poderes mais importantes de entre a diversidade social: no limite, um regime totalitário igualitarista que cresça desmesuradamente em poder deverá resultar numa oligarquia.
O Estado não deve representar os interesses da sociedade tal como ela é. O princípio que rege a acção do Estado não é igual, nem coincide com o que rege a sociedade. Sempre que o Estado segue a sociedade o regime torna-se ditatorial - porque a sociedade como ela é consiste na pluralidade, mas o Estado só pode legislar univocamente. Ao seguir a sociedade, porque só o pode fazer impondo um sentir comum ou uma voz maioritária, o Estado torna-se necessariamente ditatorial, pois irrompe na esfera privada tiranizando o cidadão e submetendo o indivíduo à esfera social. Para não destruir a riqueza da sociedade é no interesse desta que o Estado não segue a sociedade. Mas se a sociedade não tem legitimidade para legislar, também o Estado, legislador, não deve impor o seu princípio à sociedade, porque então destrói o seu próprio princípio. O princípio do Estado é a igualdade - perante a lei e as instituições; o princípio da sociedade é a diversidade; o princípio da cidadania é a liberdade. A igualdade não pode impor-se à diversidade sem se perverter a si mesma, pois numa diversidade em que o diverso não é permitido a igualdade foi cancelada - de modo que o Estado que se impõe à sociedade só pode ser Totalitário e unipessoal, o que equivale a ter um Estado total e, simultaneamente, nenhum Estado legítimo.
Assim, senão por uma coincidência extremamente improvável, não pode haver sociedade em que a igualdade exista senão violando a legitimidade - nem pode haver Estado que expresse literalmente a sociedade. Quanto mais semelhante ao Estado for a sociedade, menos há liberdade; quanto mais semelhante à sociedade for o Estado, menos há justiça. Contudo, quanto mais forte o Estado, mais forte a sociedade e mais fraco o indivíduo: no limite, o indivíduo é atomizado e a sociedade é una com o Estado. Porém, quanto mais forte se torna a sociedade menos cresce a força do Estado, até que inevitavelmente a sociedade supera o Estado: no limite, uma minoria governa o Estado. Portanto, o crescimento do Estado não é sustentável indefinidamente pois provocará, com o seu crescimento, a sua própria subordinação aos poderes mais importantes de entre a diversidade social: no limite, um regime totalitário igualitarista que cresça desmesuradamente em poder deverá resultar numa oligarquia.
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
Malala Yousafzai
A propósito de Malala Yousafzai...
Esta jovem tem algo de concreto para ensinar a todos nós que vivemos agora neste mundo. E isso é que ainda há seres humanos que são privados de educação, que a educação é um aspecto fundamental da humanidade, e que algumas pessoas precisam de ter muita coragem para conseguirem aquilo a que deveriam ter direito.
Mas esta jovem ensina-nos algo ainda mais relevante, que não é só deste mundo actual, da nossa geração, ou do nosso sistema globalizado. Esta jovem ensina-nos algo que diz respeito a todas as gerações, a toda a humanidade, a cada humano em particular e que diz intimamente respeito a isso de ser humano. Esse ensinamento é o dever de não se calar, de não condescender, mesmo que esteja em risco a sobrevivência do sujeito físico, mesmo ou sobretudo quando é preciso arriscar a vida, não para simplesmente sobreviver, mas por aquilo que é condição para a dignidade, aquilo que dá dignidade ao humano. Nos momentos limites há humanos que recusam abdicar daquilo em que repousa a dignidade humana e fazem-no mesmo quando isso implica correr o risco de ter de abdicar da própria vida. Esta jovem foi um desses humanos.
Esta jovem tem algo de concreto para ensinar a todos nós que vivemos agora neste mundo. E isso é que ainda há seres humanos que são privados de educação, que a educação é um aspecto fundamental da humanidade, e que algumas pessoas precisam de ter muita coragem para conseguirem aquilo a que deveriam ter direito.
Mas esta jovem ensina-nos algo ainda mais relevante, que não é só deste mundo actual, da nossa geração, ou do nosso sistema globalizado. Esta jovem ensina-nos algo que diz respeito a todas as gerações, a toda a humanidade, a cada humano em particular e que diz intimamente respeito a isso de ser humano. Esse ensinamento é o dever de não se calar, de não condescender, mesmo que esteja em risco a sobrevivência do sujeito físico, mesmo ou sobretudo quando é preciso arriscar a vida, não para simplesmente sobreviver, mas por aquilo que é condição para a dignidade, aquilo que dá dignidade ao humano. Nos momentos limites há humanos que recusam abdicar daquilo em que repousa a dignidade humana e fazem-no mesmo quando isso implica correr o risco de ter de abdicar da própria vida. Esta jovem foi um desses humanos.
Hannah Arendt
A propósito de um filme... Hannah Arendt
Um filme muito interessante sobre um dos momentos mais marcantes da vida de um dos maiores pensadores do século XX.
Estava com medo que o filme tentasse ser sensacionalista, ou então que fosse um completo vazio. Muitas vezes, quando fazem filmes sobre grandes pensadores, ou querem mostrar que, afinal, quase eram quase tudo menos pensadores, ou querem mostrar que eram tão pensadores que não eram mais nada.
Mas não. O filme parece-me muito bom.
Um filme muito interessante sobre um dos momentos mais marcantes da vida de um dos maiores pensadores do século XX.
Estava com medo que o filme tentasse ser sensacionalista, ou então que fosse um completo vazio. Muitas vezes, quando fazem filmes sobre grandes pensadores, ou querem mostrar que, afinal, quase eram quase tudo menos pensadores, ou querem mostrar que eram tão pensadores que não eram mais nada.
Mas não. O filme parece-me muito bom.
Pode ver o filme completo aqui.
quarta-feira, 16 de outubro de 2013
Hitler e as potencialidades da crise
A propósito da potencialidade da crise: a guerra como tempo útil
Segundo Hitler, a guerra é um tempo muito útil para se porem em marcha políticas que, em circunstâncias normais, a população não aceitaria. Hitler chegou a esta conclusão quando os alemães se revoltaram com os primeiros gaseamentos. Pondo imediatamente em funcionamento um programa de “educação em matéria de eutanásia”, com o objectivo de actualizar as populações que “ainda não tinham alcançado uma visão puramente «objectiva» da essência da medicina e da missão dos médicos", esperou pelo momento em que a guerra acelerasse o processo de esclarecimento das consciências alemãs.
Assim, as pessoas que fossem consideradas "inúteis" deveriam ser sujeitas ao programa de "morte misericordiosa" em “fundações de caridade para os cuidados médicos” - nome pomposo que servia para designar edifícios como o Castelo Hartheim, mas a que outros, menos dados a nomes pomposos, chamam câmaras de gás para designar uma das "coisas" que nelas entrava, o gás. Esta expressão é ainda um eufemismo.
Bebés, crianças, adultos e idosos, deficientes, foram tratados com a misericórdia e a caridade nazis: Cerca de 200.000 deficientes em apenas cinco anos.
Fenómenos como este devem manter-nos alerta sempre que alguém nos pretende convencer das potencialidades da crise, ou das necessidades que a crise impõe - seja a crise uma guerra ou uma depressão económica...
Segundo Hitler, a guerra é um tempo muito útil para se porem em marcha políticas que, em circunstâncias normais, a população não aceitaria. Hitler chegou a esta conclusão quando os alemães se revoltaram com os primeiros gaseamentos. Pondo imediatamente em funcionamento um programa de “educação em matéria de eutanásia”, com o objectivo de actualizar as populações que “ainda não tinham alcançado uma visão puramente «objectiva» da essência da medicina e da missão dos médicos", esperou pelo momento em que a guerra acelerasse o processo de esclarecimento das consciências alemãs.
Assim, as pessoas que fossem consideradas "inúteis" deveriam ser sujeitas ao programa de "morte misericordiosa" em “fundações de caridade para os cuidados médicos” - nome pomposo que servia para designar edifícios como o Castelo Hartheim, mas a que outros, menos dados a nomes pomposos, chamam câmaras de gás para designar uma das "coisas" que nelas entrava, o gás. Esta expressão é ainda um eufemismo.
Bebés, crianças, adultos e idosos, deficientes, foram tratados com a misericórdia e a caridade nazis: Cerca de 200.000 deficientes em apenas cinco anos.
Fenómenos como este devem manter-nos alerta sempre que alguém nos pretende convencer das potencialidades da crise, ou das necessidades que a crise impõe - seja a crise uma guerra ou uma depressão económica...
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
Fundamento moral
A propósito da impossibilidade de fundar a moral...
Encontrar um fundamento para a moral ou para a ética é tão impossível como encontrar o fundo do infinito. "Ah, então e a regra não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti?" Bem, com certeza toda a gente tem coisas que não gosta, mas não é evidente que aquilo que cada um não gosta que lhe façam a si seja o mesmo que não deva ser feito aos outros, tal como não é evidente que não haja coisas que não se devem fazer aos outros, mas que se gosta que nos façam.
Mas mesmo que todos gostássemos do mesmo, ainda assim o problema é outro, e é este: eu posso sempre perguntar por que raio não deveria fazer aos outros o que não gosto que me façam a mim. Pode ser evidente que não gosto que me façam algumas coisas, e que por isso evito que mas façam. Ou seja, há coisas que eu gosto de manter afastavas, gosto de evitar, mas isso não significa que não goste também, justamente, de as fazer aos outros. Ora, se o princípio da legitimidade está no que eu gosto ou não gosto, então é perfeitamente legítimo eu fazer aos outros o que eu gosto de lhes fazer, independentemente de gostar que me façam isso ou não!
Encontrar um fundamento para a moral ou para a ética é tão impossível como encontrar o fundo do infinito. "Ah, então e a regra não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti?" Bem, com certeza toda a gente tem coisas que não gosta, mas não é evidente que aquilo que cada um não gosta que lhe façam a si seja o mesmo que não deva ser feito aos outros, tal como não é evidente que não haja coisas que não se devem fazer aos outros, mas que se gosta que nos façam.
Mas mesmo que todos gostássemos do mesmo, ainda assim o problema é outro, e é este: eu posso sempre perguntar por que raio não deveria fazer aos outros o que não gosto que me façam a mim. Pode ser evidente que não gosto que me façam algumas coisas, e que por isso evito que mas façam. Ou seja, há coisas que eu gosto de manter afastavas, gosto de evitar, mas isso não significa que não goste também, justamente, de as fazer aos outros. Ora, se o princípio da legitimidade está no que eu gosto ou não gosto, então é perfeitamente legítimo eu fazer aos outros o que eu gosto de lhes fazer, independentemente de gostar que me façam isso ou não!
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
Um problema de ética: a extinção da humanidade...
A propósito do imperativo moral de que existam homens no futuro...
Imagine a seguinte situação:
1. A humanidade foi conquistada por uma espécie alienígena bastante inteligente;
2. Essa espécie precisa de grandes quantidades de energia e por isso toma controlo de todas as que existem na Terra. Além disso, tem um regime alimentar muito restrito, o que lhes torna muito difícil encontrar fontes de alimento. Contudo, os seus líderes ficam extasiados quando compreendem que o corpo humano é uma iguaria.
3. Os seres humanos são transformados num tipo particular de servos: têm de prestar servidão, a trabalhar em minas e centrais eléctricas, entre os 5 e os 18 anos, altura em que se convertem em "happy meals".
4. Pouco depois de os alienígenas terem tomado controlo, uma resistência humana ainda consegue operar, mas os seus líderes sabem que não têm muito tempo: no máximo, resta-lhes uma semana até que os conquistadores consigam rastrear toda a crosta terrestre, identificando, no processo, todas as bolsas de resistência.
5. Os líderes da resistência decidem reunir-se para decidir o que fazer. VOCÊ é um dos líderes.
6. Um ex-cientista excêntrico revela, na reunião, que possui um gás altamente mortal, muito eficaz, em quantidade suficiente para matar, de forma indolor, todos os humanos que existem. Existe também um plano para dissipar esse gás pelo Planeta, a partir das bolsas de resistência ainda activas.
7. A votação decorre líder a líder e você é o último a pronunciar-se. Quando chega a sua vez, a votação está empatada. Metade pensa que se deve extinguir a humanidade do que viver de forma tão indigna - alguns referiram-se a filósofos importantes, como Sócrates, para defenderem que nem todas as formas de viver são humanamente aceitáveis. Outra metade pensa que não se deve extinguir a humanidade, mesmo nesta situação limite - também houve quem referisse filósofos muito importantes, como Hans Jonas, para defender que é um imperativo que continue a haver homens no futuro, sobretudo porque não se pode saber o que o futuro reserva.
8. Você tem de votar. O seu voto será decisivo: extingue-se ou não a humanidade? Seja como for, para que os outros aceitem o seu voto, terá de lhes apresentar uma boa justificação. (Nota: lembre-se que não decidir significa deixar que a situação descrita em 3. ocorra - por isso, não decidir será, também, por força das circunstância, uma decisão.)
Imagine a seguinte situação:
1. A humanidade foi conquistada por uma espécie alienígena bastante inteligente;
2. Essa espécie precisa de grandes quantidades de energia e por isso toma controlo de todas as que existem na Terra. Além disso, tem um regime alimentar muito restrito, o que lhes torna muito difícil encontrar fontes de alimento. Contudo, os seus líderes ficam extasiados quando compreendem que o corpo humano é uma iguaria.
3. Os seres humanos são transformados num tipo particular de servos: têm de prestar servidão, a trabalhar em minas e centrais eléctricas, entre os 5 e os 18 anos, altura em que se convertem em "happy meals".
4. Pouco depois de os alienígenas terem tomado controlo, uma resistência humana ainda consegue operar, mas os seus líderes sabem que não têm muito tempo: no máximo, resta-lhes uma semana até que os conquistadores consigam rastrear toda a crosta terrestre, identificando, no processo, todas as bolsas de resistência.
5. Os líderes da resistência decidem reunir-se para decidir o que fazer. VOCÊ é um dos líderes.
6. Um ex-cientista excêntrico revela, na reunião, que possui um gás altamente mortal, muito eficaz, em quantidade suficiente para matar, de forma indolor, todos os humanos que existem. Existe também um plano para dissipar esse gás pelo Planeta, a partir das bolsas de resistência ainda activas.
7. A votação decorre líder a líder e você é o último a pronunciar-se. Quando chega a sua vez, a votação está empatada. Metade pensa que se deve extinguir a humanidade do que viver de forma tão indigna - alguns referiram-se a filósofos importantes, como Sócrates, para defenderem que nem todas as formas de viver são humanamente aceitáveis. Outra metade pensa que não se deve extinguir a humanidade, mesmo nesta situação limite - também houve quem referisse filósofos muito importantes, como Hans Jonas, para defender que é um imperativo que continue a haver homens no futuro, sobretudo porque não se pode saber o que o futuro reserva.
8. Você tem de votar. O seu voto será decisivo: extingue-se ou não a humanidade? Seja como for, para que os outros aceitem o seu voto, terá de lhes apresentar uma boa justificação. (Nota: lembre-se que não decidir significa deixar que a situação descrita em 3. ocorra - por isso, não decidir será, também, por força das circunstância, uma decisão.)
sábado, 5 de outubro de 2013
"Nómada", as almas e a reprodução...
A propósito de reprodução e amor...
No "Nómada", de Stephenie Meyer, fala-se de uma espécie alienígena, cujos membros se chamam "almas". As almas são virtualmente imortais. Isto quer dizer que, a não ser que decidam suicidar-se, ou que alguém as mate violentamente, elas não morrem.
Curiosamente, reproduzem-se de uma forma muito particular. Não copulam, não fazem sexo. A natureza não as alicia com qualquer tipo de prazer para uma actividade da qual, provavelmente, nascerão mais membros da espécie. As almas reproduzem-se se decidirem fazê-lo - e reproduzem-se sozinhas. O processo é muito simples: a alma decide dar a vida para que nasçam os seus filhos.
As almas não se podem reproduzir porque, na busca de um prazer intenso, aconteceu um "acidente". Elas têm de decidir que querem ter filhos sabendo que isso significa que no momento em que nascerão, elas morrem. As novas almas não precisam de pais para nada.
A pergunta é: quantos seres humanos procriariam se com eles se passasse o mesmo? Não houvesse sexo. Soubessem que não criariam os seus filhos. Soubessem que morreriam para os seus filhos nascessem. A verdade é que a natureza se deu a um grande trabalho a aliciar os seres humanos a reproduzir-se. Precisaria a natureza de aliciar os seres humanos com o prazer se, de facto, na paternidade em geral estivesse envolvido o amor? É curioso que nos animais que não têm de fazer necessariamente o que os instintos lhe mandam, a natureza teve que envolver na equação um elevado nível de prazer.
Os peixes, por seu lado, também não precisam de "sexo". Algumas arranhas deixam-se comer pelos filhos.
No "Nómada", de Stephenie Meyer, fala-se de uma espécie alienígena, cujos membros se chamam "almas". As almas são virtualmente imortais. Isto quer dizer que, a não ser que decidam suicidar-se, ou que alguém as mate violentamente, elas não morrem.
Curiosamente, reproduzem-se de uma forma muito particular. Não copulam, não fazem sexo. A natureza não as alicia com qualquer tipo de prazer para uma actividade da qual, provavelmente, nascerão mais membros da espécie. As almas reproduzem-se se decidirem fazê-lo - e reproduzem-se sozinhas. O processo é muito simples: a alma decide dar a vida para que nasçam os seus filhos.
As almas não se podem reproduzir porque, na busca de um prazer intenso, aconteceu um "acidente". Elas têm de decidir que querem ter filhos sabendo que isso significa que no momento em que nascerão, elas morrem. As novas almas não precisam de pais para nada.
A pergunta é: quantos seres humanos procriariam se com eles se passasse o mesmo? Não houvesse sexo. Soubessem que não criariam os seus filhos. Soubessem que morreriam para os seus filhos nascessem. A verdade é que a natureza se deu a um grande trabalho a aliciar os seres humanos a reproduzir-se. Precisaria a natureza de aliciar os seres humanos com o prazer se, de facto, na paternidade em geral estivesse envolvido o amor? É curioso que nos animais que não têm de fazer necessariamente o que os instintos lhe mandam, a natureza teve que envolver na equação um elevado nível de prazer.
Os peixes, por seu lado, também não precisam de "sexo". Algumas arranhas deixam-se comer pelos filhos.
Duas ideias muito perigosas...
A propósito de preconceitos democráticos...
Duas ideias que me parecem muito perigosas na contemporaneidade.
1ª, e a mais perigosa: na Ética, na Moral, na Axiologia, etc. - a ideia de que uma coisa é boa PORQUE se a deseja;
2ª: na Política - a ideia de que quando um povo vota está sempre certo ou que NAS ELEIÇÕES o povo nunca erra.
Duas ideias que me parecem muito perigosas na contemporaneidade.
1ª, e a mais perigosa: na Ética, na Moral, na Axiologia, etc. - a ideia de que uma coisa é boa PORQUE se a deseja;
2ª: na Política - a ideia de que quando um povo vota está sempre certo ou que NAS ELEIÇÕES o povo nunca erra.
quinta-feira, 3 de outubro de 2013
quarta-feira, 2 de outubro de 2013
Vermes, autor de Ele Está De Volta
A propósito de Ele Está De Volta
"Basicamente, a questão é sempre a mesma: como foi possível? E o mais incrível: como foi possível que toda a gente o tenha seguido? Porque é que os alemães o seguiram, aos milhões? E seguiram, caso contrário nada daquilo teria sido possível. Esse é o fascínio. Só parece normal hoje porque já ouvimos esta história centenas de milhares de vezes ao longo de mais de 60 anos e não conhecemos a história de outra maneira. Mas não é normal."
"Encontrei uma resposta, este homem provavelmente não era um monstro. Era atractivo e todas aquelas pessoas o ajudaram com o seu livre arbítrio, o que faz com que sejam elas o monstro e não ele. Sozinho não teria feito nada. Foram as pessoas. Como foi possível, por exemplo, alguém ter trabalhado num campo de concentração?"
"Podemos habituar-nos a muitas coisas malignas. No início, muitos dos soldados matavam as pessoas "à mão", até que se aperceberam de que era um trabalho bastante duro, psicologicamente também, e tiveram que procurar outra maneira de fazê-lo. Foi assim que chegaram às câmaras de gás. Assim se percebe como, aos poucos, se consegue piorar e piorar. E as pessoas que se habituam a um mau passo dão mais um mau passo, conseguem habituar-se a isso."
"Hitler está morto [risos]. Mas a democracia tem as suas fraquezas e sentimos falta de algo, alguém melhor. E se alguém vier e não fizer grandes asneiras, será popular. A que ponto estamos seguros na nossa democracia? Não é difícil ser democrata se estiveres bem, com saúde, se tiveres aquecimento, comida, televisão e um terrível reality show para te entreter. É no meio de uma crise que descobrimos se somos democratas ou não. Tudo é possível."
Timur Vermes, autor de Ele Está de Volta
http://www.ionline.pt/artigos/mais/ele-esta-volta-entrevista-ao-escritor-esta-chocar-alemanha
"Basicamente, a questão é sempre a mesma: como foi possível? E o mais incrível: como foi possível que toda a gente o tenha seguido? Porque é que os alemães o seguiram, aos milhões? E seguiram, caso contrário nada daquilo teria sido possível. Esse é o fascínio. Só parece normal hoje porque já ouvimos esta história centenas de milhares de vezes ao longo de mais de 60 anos e não conhecemos a história de outra maneira. Mas não é normal."
"Encontrei uma resposta, este homem provavelmente não era um monstro. Era atractivo e todas aquelas pessoas o ajudaram com o seu livre arbítrio, o que faz com que sejam elas o monstro e não ele. Sozinho não teria feito nada. Foram as pessoas. Como foi possível, por exemplo, alguém ter trabalhado num campo de concentração?"
"Podemos habituar-nos a muitas coisas malignas. No início, muitos dos soldados matavam as pessoas "à mão", até que se aperceberam de que era um trabalho bastante duro, psicologicamente também, e tiveram que procurar outra maneira de fazê-lo. Foi assim que chegaram às câmaras de gás. Assim se percebe como, aos poucos, se consegue piorar e piorar. E as pessoas que se habituam a um mau passo dão mais um mau passo, conseguem habituar-se a isso."
"Hitler está morto [risos]. Mas a democracia tem as suas fraquezas e sentimos falta de algo, alguém melhor. E se alguém vier e não fizer grandes asneiras, será popular. A que ponto estamos seguros na nossa democracia? Não é difícil ser democrata se estiveres bem, com saúde, se tiveres aquecimento, comida, televisão e um terrível reality show para te entreter. É no meio de uma crise que descobrimos se somos democratas ou não. Tudo é possível."
Timur Vermes, autor de Ele Está de Volta
http://www.ionline.pt/artigos/mais/ele-esta-volta-entrevista-ao-escritor-esta-chocar-alemanha
segunda-feira, 30 de setembro de 2013
Autárquicas de 2013 - crítica
A propósito de eleições, vencedores e derrotados
Vencedores e Derrotados
Tratando-se de eleições autárquicas, não penso que se devam inferir lições nacionais de casos particulares.
Dito isto, a nível nacional pode ser possível verificar tendências, generalidades que, de algum modo, podem permitir certas conclusões a nível nacional.
O PSD é a grande força autárquica em Portugal. Mas, a nível nacional, teve (até ao momento) 103 Presidentes de Câmara (PSD + coligações lideradas pelo PSD) contra 140 Presidentes de Câmara do PS (PS + coligações lideradas pelo PS).
Ora, se o PSD teve 103 câmaras contra 140 do PS é justo que se diga que o PSD é o grande derrotado.
A análise da situação do PS é mais complicada. Tem mais câmaras do que qualquer outra força política. Se considerarmos as situações em que PS e PSD concorreram sem coligações, o PS teve 36,4 % contra 16,61% do PSD, o que é um resultado bastante expressivo. Contudo, se considerarmos todas as situações em que PS e PSD lideraram a candidatura, então o PSD teve 37,55% contra 36,82% do PS. Portanto, se quisermos ser imparciais não podemos dizer sem mais que o PS teve mais votos, embora tenha sido o partido que, a concorrer sozinho, teve mais votos. Em 2009, a concorrer sozinho, o PS teve uma percentagem maior de votos (37,8%, mais de 2 milhões de votos) do que este ano (36,34%, 1,7 milhões de votos).
Ainda assim, o único vencedor é, suponho, o PS, porque teve mais candidaturas a vencer (e não porque teve mais votos, pois isso é outra discussão). As restantes forças políticas (e estou a falar a nível nacional) perderam. Quem em 300 tiver 1 câmara e passar a ter 5, enquanto outros têm 140 ou 100, não se dirá que ganhou, mas que, sendo um perdedor, melhorou.
A CDU é, dentro dos perdedores, um dos que melhorou a sua participação. É, por isso, em certo sentido, um vencedor. Teve mais votos, mais câmaras, mais vereadores do que em 2009, melhorou em toda a linha e não teve perdas a assinalar.
O CDS teve menos votos mas mais câmaras. Isto significa que melhorou, em termos de candidaturas que venceram, porque agora ganharam 5 candidaturas suas e, em 2009, ganhou só uma. Mas não deve ser esquecido que teve menos votos em absoluto e menos percentagem dos mesmos. Não ganhou estas eleições. Não é um vencedor. é vencedor apenas "em certo sentido", um sentido bem determinado: ganhou 5 câmaras em mais de 300, mas como antes só tinha uma, melhorou.
O BE é, a par do PSD, o outro partido que, de entre os perdedores, perdeu mesmo. Não há volta a dar-lhe, e com certeza que os simpatizantes do Bloco esperam (eu espero) que a liderança não se ponha a aventar desculpas, a tecer interpretações, leituras profundas e inteligentes que demonstrem que, afinal, o BE não perdeu ou até talvez tenha ganho. Porque se o BE se puser a fazer esse tipo de bailados acabará por demonstrar aos seus simpatizantes que não é diferente dos partidos alinhados. A coisa é relativamente simples: se o BE exigir, e parece que exige, ao PSD que tome lições nacionais destas eleições autárquicas, então o BE tem de reflectir internamente e tirar conclusões destas eleições autárquicas. Se o PSD deve tirar conclusões, o BE também. Se o BE assobiar para o lado e nada fizer quanto a si mesmo, perde toda a legitimidade moral para exigir ao Governo que o faça. É altura do BE mostrar que é diferente do PSD, diferente do Governo.
Passos Coelho. O Primeiro Ministro é o perdedor mais evidente. Em termos pessoal é ele o grande derrotado. Sobretudo, porque ele se envolveu. E perdeu.
O Seguro não é um vencedor claro, em termos pessoais. Não há dados objectivos que permitam confirmar uma vitória pessoal a nível nacional, nestas eleições. Nem António Costa. Mas António Costa ganhou Lisboa e isso vale muito - vale na medida em que António Costa queira. Os Lisboetas não ficariam irritados se ele saísse para Governar o país. Estas eleições autárquicas apenas confirmaram o Seguro como líder do PS na medida em que António Costa permita. Uma decisão de Costa e Seguro já era.
Alberto João Jardim. Jardim começou a perder a Madeira quando começou a perder a liberdade de gastar como quisesse e a habilidade de enviar ao Continente a conta. Mas antes de perder a Madeira perdeu o PSD-Madeira. Ganhou as eleições internas por uma unha negra. Nas eleições autárquicas de ontem ficou com 4 câmaras em 11. Foi outro derrotado - não a nível nacional, como é evidente, mas a nível regional. Vejamos até que ponto controla o seu Partido regional, os seus deputados na região e os seus deputados na Assembleia da República. Vejamos que artimanhas ele encontrará em cada uma destas plataformas para não abandonar o Poder.
Autárquicas 2013
Vencedores e Derrotados
Tratando-se de eleições autárquicas, não penso que se devam inferir lições nacionais de casos particulares.
Dito isto, a nível nacional pode ser possível verificar tendências, generalidades que, de algum modo, podem permitir certas conclusões a nível nacional.
O PSD é a grande força autárquica em Portugal. Mas, a nível nacional, teve (até ao momento) 103 Presidentes de Câmara (PSD + coligações lideradas pelo PSD) contra 140 Presidentes de Câmara do PS (PS + coligações lideradas pelo PS).
Ora, se o PSD teve 103 câmaras contra 140 do PS é justo que se diga que o PSD é o grande derrotado.
A análise da situação do PS é mais complicada. Tem mais câmaras do que qualquer outra força política. Se considerarmos as situações em que PS e PSD concorreram sem coligações, o PS teve 36,4 % contra 16,61% do PSD, o que é um resultado bastante expressivo. Contudo, se considerarmos todas as situações em que PS e PSD lideraram a candidatura, então o PSD teve 37,55% contra 36,82% do PS. Portanto, se quisermos ser imparciais não podemos dizer sem mais que o PS teve mais votos, embora tenha sido o partido que, a concorrer sozinho, teve mais votos. Em 2009, a concorrer sozinho, o PS teve uma percentagem maior de votos (37,8%, mais de 2 milhões de votos) do que este ano (36,34%, 1,7 milhões de votos).
Ainda assim, o único vencedor é, suponho, o PS, porque teve mais candidaturas a vencer (e não porque teve mais votos, pois isso é outra discussão). As restantes forças políticas (e estou a falar a nível nacional) perderam. Quem em 300 tiver 1 câmara e passar a ter 5, enquanto outros têm 140 ou 100, não se dirá que ganhou, mas que, sendo um perdedor, melhorou.
A CDU é, dentro dos perdedores, um dos que melhorou a sua participação. É, por isso, em certo sentido, um vencedor. Teve mais votos, mais câmaras, mais vereadores do que em 2009, melhorou em toda a linha e não teve perdas a assinalar.
O CDS teve menos votos mas mais câmaras. Isto significa que melhorou, em termos de candidaturas que venceram, porque agora ganharam 5 candidaturas suas e, em 2009, ganhou só uma. Mas não deve ser esquecido que teve menos votos em absoluto e menos percentagem dos mesmos. Não ganhou estas eleições. Não é um vencedor. é vencedor apenas "em certo sentido", um sentido bem determinado: ganhou 5 câmaras em mais de 300, mas como antes só tinha uma, melhorou.
O BE é, a par do PSD, o outro partido que, de entre os perdedores, perdeu mesmo. Não há volta a dar-lhe, e com certeza que os simpatizantes do Bloco esperam (eu espero) que a liderança não se ponha a aventar desculpas, a tecer interpretações, leituras profundas e inteligentes que demonstrem que, afinal, o BE não perdeu ou até talvez tenha ganho. Porque se o BE se puser a fazer esse tipo de bailados acabará por demonstrar aos seus simpatizantes que não é diferente dos partidos alinhados. A coisa é relativamente simples: se o BE exigir, e parece que exige, ao PSD que tome lições nacionais destas eleições autárquicas, então o BE tem de reflectir internamente e tirar conclusões destas eleições autárquicas. Se o PSD deve tirar conclusões, o BE também. Se o BE assobiar para o lado e nada fizer quanto a si mesmo, perde toda a legitimidade moral para exigir ao Governo que o faça. É altura do BE mostrar que é diferente do PSD, diferente do Governo.
Passos Coelho. O Primeiro Ministro é o perdedor mais evidente. Em termos pessoal é ele o grande derrotado. Sobretudo, porque ele se envolveu. E perdeu.
O Seguro não é um vencedor claro, em termos pessoais. Não há dados objectivos que permitam confirmar uma vitória pessoal a nível nacional, nestas eleições. Nem António Costa. Mas António Costa ganhou Lisboa e isso vale muito - vale na medida em que António Costa queira. Os Lisboetas não ficariam irritados se ele saísse para Governar o país. Estas eleições autárquicas apenas confirmaram o Seguro como líder do PS na medida em que António Costa permita. Uma decisão de Costa e Seguro já era.
Alberto João Jardim. Jardim começou a perder a Madeira quando começou a perder a liberdade de gastar como quisesse e a habilidade de enviar ao Continente a conta. Mas antes de perder a Madeira perdeu o PSD-Madeira. Ganhou as eleições internas por uma unha negra. Nas eleições autárquicas de ontem ficou com 4 câmaras em 11. Foi outro derrotado - não a nível nacional, como é evidente, mas a nível regional. Vejamos até que ponto controla o seu Partido regional, os seus deputados na região e os seus deputados na Assembleia da República. Vejamos que artimanhas ele encontrará em cada uma destas plataformas para não abandonar o Poder.
quinta-feira, 26 de setembro de 2013
Milagres... Os milagres de Vespasiano
A propósito de milagres...
Tácito deixou este relato de duas curas operadas por Vespasiano, o César, Imperador de Roma.
"Nos meses em que Vespasiano, em Alexandria, esperava os dias
dos ventos de Verão e mar estável, muitas maravilhas (miracula) aconteceram, as
quais mostraram o favor do céu e a inclinação das divindades por Vespasiano. Um
dos plebeus de Alexandria, conhecido pelo declínio dos olhos, prostrou-se de joelhos
e implorou, soluçando, por um remédio para a cegueira, a conselho do deus Serapis,
a quem o povo cultivava entregando-se-lhe com superstição mais do que a qualquer
outro; suplicou ao príncipe que se dignasse borrifar as suas bochechas e
órbitas dos olhos com cuspo. Outro, com uma mão doente, por conselho do mesmo
deus, pediu que o César lha calcasse com a planta do pé. Primeiro, Vespasiano
riu, recusou; e eles insistiam de modo que ele temeu uma fama vã, mas por outro
lado a teimosia deles e as vozes dos aduladores induziram-no em esperança. Por
fim, solicitou que os médicos estimassem se tal cegueira e debilidade estavam
acima de ajuda humana. Os médicos discutiram diversos pontos: num deles a força
da luz não fora consumida e poderia voltar se se atacasse o obstáculo; no
outro, as articulações deslocadas, se aplicada força curativa, poderiam
restaurar-se; talvez os deuses o quisessem e o divino ministério tivesse
escolhido o príncipe; por fim, o sucesso do remédio seria a glória do César,
enquanto o ridículo em caso de insucesso caíria sobre os desafortunados. Assim,
Vespasiano, acreditando que tudo era possível à sua sorte e que nada mais seria
inacreditável, com o seu semblante alegre, entre a multidão em expectativa,
acedeu aos pedidos. Imediatamente, a mão voltou ao uso, e o dia brilhou para o
cego. Os que estiveram envolvidos nisto ainda hoje o relembram quando nada
ganhariam com a mentira."
Per eos mensis quibus Vespasianus Alexandriae statos aestivis flatibus dies et certa maris opperiebatur, multa miracula evenere, quis caelestis favor et quaedam in Vespasianum inclinatio numinum ostenderetur. e plebe Alexandrina quidam oculorum tabe notus genua eius advolvitur, remedium caecitatis exposcens gemitu, monitu Serapidis dei, quem dedita superstitionibus gens ante alios colit; precabaturque principem ut genas et oculorum orbis dignaretur respergere oris excremento. alius manum aeger eodem deo auctore ut pede ac vestigio Caesaris calcaretur orabat. Vespasianus primo inridere, aspernari; atque illis instantibus modo famam vanitatis metuere, modo obsecratione ipsorum et vocibus adulantium in spem induci: postremo aestimari a medicis iubet an talis caecitas ac debilitas ope humana superabiles forent. medici varie disserere: huic non exesam vim luminis et redituram si pellerentur obstantia; illi elapsos in pravum artus, si salubris vis adhibeatur, posse integrari. id fortasse cordi deis et divino ministerio principem electum; denique patrati remedii gloriam penes Caesarem, inriti ludibrium penes miseros fore. igitur Vespasianus cuncta fortunae suae patere ratus nec quicquam ultra incredibile, laeto ipse vultu, erecta quae adstabat multitudine, iussa exequitur. statim conversa ad usum manus, ac caeco reluxit dies. utrumque qui interfuere nunc quoque memorant, postquam nullum mendacio pretium.
Tácito, Historiae, IV, 81
sábado, 21 de setembro de 2013
Origem dos nomes / etimologia - Letra C
C
Cristiano: do grego χριστιανός [khristianós], "de cristo", "cristão" - através do latim christianus.
O nome Cristiana é a forma feminina de Cristiano.
Cristina: de Cristiana, forma feminina de Cristiano.
Cristiano: do grego χριστιανός [khristianós], "de cristo", "cristão" - através do latim christianus.
O nome Cristiana é a forma feminina de Cristiano.
Cristina: de Cristiana, forma feminina de Cristiano.
Tecnoética
A propósito de tecnoética...
A tecnoética é um ramo da ética - ainda não devidamente circunscrito - que se debruça sobre os problemas éticos decorrentes da tecnologia e da investigação tecnológica, quer na aplicação de tecnologias já existentes, quer no desenvolvimento de tecnologias cujo potencial pode, previsivelmente, ter implicações éticas. Assim, teoricamente, este ramo pode ser dividido em quatro tipos de problemas.
1 - problemas éticos decorrentes da aplicação de tecnologias já existentes, cujo funcionamento está descrito e sobre as quais se conhece o suficiente para poder prever os seus efeitos. Por exemplo, a utilização de embriões humanos e de tecnologia de clonagem para produzir órgãos que possam servir em transplantes - embora a utilização dessas tecnologias já existentes seja discutível quanto ao seu teor ético e moral, não resulta dessa utilização uma nova tecnologia, também ela, sujeita a dúvidas, pelo menos tendo por base o que legitimamente se pode esperar.
2 - problemas éticos decorrentes da aplicação de tecnologias já existentes em utilizações potencialmente perversas, ou, pelo menos, de moralidade duvidosa, na investigação e no desenvolvimento de novas tecnologias, sendo que estas novas tecnologias já apresentam, por si mesmas, um potencial perverso. Por exemplo, a utilização de tecnologias de monotorização, vigilância e controlo dos cidadãos para desenvolver tecnologias que permitam prever, antecipar ou atribuir comportamentos futuros a sujeitos com base nos seus comportamentos monotorizados (isto é, tecnologias do tipo Relatório Minoritário). Não só o uso das tecnologias disponíveis é duvidoso, como também as tecnologias que se espera poderem resultar desse uso são, elas mesmas, duvidosas - sendo, por exemplo, discutível se não seria melhor não as desenvolver de todo.
3 - problemas éticos decorrentes da investigação tecnológica como tal. Por exemplo, problemas como o de saber se continua a ser legítimo investir em investigação quantidades de dinheiro que poderiam ser úteis na aplicação de tecnologias de saúde ou na erradicação da fome ou do analfabetismo. Ou se é legítimo investir dinheiro em tecnologias que se pode esperar não terem efeitos sobre a existência quotidiana, como a tecnologia de prospecção espacial (a discussão em si mesma é independente da discussão prévia, de carácter mais científico do que filosófico, de saber se essa investigação se pode dizer, de facto, não vir a ter efeitos benéficos na vida quotidiana).
4 - problemas éticos decorrentes da investigação tecnológica na medida em que se pode esperar que dela resultem efeitos ou tecnologias cuja aplicação levantem problemas éticos ou morais. Neste caso, a utilização de tecnologias actualmente existentes não constitui, por si mesma, um problema ético nem moral, mas é a própria tecnologia futura ou uso futuro dessa tecnologia que constitui o problema. Por exemplo, os estudos relacionados com as viagens no tempo são absolutamente neutras perante a ética e a moral, pois nenhuma actuação nessa investigação é condenável enquanto tal, nem perversa por si mesma - contudo, é a própria tecnologia cujo uso permitisse viajar no tempo que tem um teor ético ou moral forte, discutível e potencialmente crítico. Este tipo de problemas pode constituir um grupo particularmente importante porque apresenta, em geral, duas características que, aliadas, se tornam muito perigosas: primeira, as acções dos cientistas no percurso da sua investigação não levantam dúvidas éticas e morais, são aparentemente inócuas (acelerar partículas, fazê-las colidir, elaborar teorias matemáticas e físicas, etc, são acções que não suscitam indignação moral nem desconfiança ética), de tal modo que os cientistas podem perfazer todos os passos até chegar ao desenvolvimento da tecnologia sem fazerem qualquer acto condenável ética, moral ou juridicamente; em segundo lugar, é a tecnologia resultante que é muito perigosa, com efeitos exponenciais (do que a viagem no tempo é um bom exemplo, pois uma pequena alteração no passado longínquo pode ter efeitos absolutamente grandes e incalculáveis). O perigo deste tipo de problemas reside, justamente, no facto de o perigo não ser evidente nem mesmo quando se pondera o uso dessa tecnologia futura (fazer viagens no tempo não se mostra imediatamente perigoso, mas sobretudo não é uma ideia que cause repugnância ou aversão, como é o caso de outros problemas éticos ou morais associados a actuações imediatamente repulsivas).
sexta-feira, 20 de setembro de 2013
Origem dos nomes / etimologia - Letra L
L
Ludovico: do franco (língua germânica) hlodwig, "guerreiro glorioso"; de hlod, "glória", com wig, "combate" - através do alemão, Ludwig e do latim, Ludovicus. Ver, também, Luís.
Luís: do franco (língua germânica) hlodwig, "guerreiro glorioso"; de hlod, "glória", com wig, "combate" - através do francês, Louis. Ver, também, Ludovico.
Ludovico: do franco (língua germânica) hlodwig, "guerreiro glorioso"; de hlod, "glória", com wig, "combate" - através do alemão, Ludwig e do latim, Ludovicus. Ver, também, Luís.
Luís: do franco (língua germânica) hlodwig, "guerreiro glorioso"; de hlod, "glória", com wig, "combate" - através do francês, Louis. Ver, também, Ludovico.
Origem dos nomes / etimologia - Letra A
A
Alexandre: do grego Ἀλέξανδρος [Aléksandros], "protector do homem"; do verbo ἀλέξειν [aléksein], "proteger", "ajudar, assistir", "compensar", com o substantivo ἀνήρ [anér], "homem", no genitivo ἁνδρός [andrós], "do homem". Através do latim Alexander.
O nome Sandra deriva da forma feminina Alexandra.
Ana: do grego Ἅννα [Hanna]; do hebraico חַנָּה [Khannah ou Hannah], "Graciosa", "favorecida"; do verbo חָנַן [khanan], "mostrar-se favorável", "ser gracioso, dar graças". Através do latim Anna.
O nome Sandra deriva da forma feminina Alexandra.
Ana: do grego Ἅννα [Hanna]; do hebraico חַנָּה [Khannah ou Hannah], "Graciosa", "favorecida"; do verbo חָנַן [khanan], "mostrar-se favorável", "ser gracioso, dar graças". Através do latim Anna.
O nome Ana entra na composição de muitos outros nomes (por exemplo, Joana, Mariana).
O nada do viver bem nas nossas sociedades modernas
A propósito da sociedade moderna...
"é possível viver nas nossas sociedades modernas, e bem apesar de tudo, sem nunca levantar as questões fundamentais" (Luc Ferry) - mas se, então, esse "viver bem" desaparece, o nada sai do escondimento. Não é que de repente se tenha perdido tudo, mas sim que de repente se percebeu que nunca se teve nada.
Origem dos nomes / etimologia - Letra J
J
Joana: ver João.
João: do grego Ἰωάννης [Ioánnés]; do hebraico יוֹחָנָן [Yokhanan], o mesmo que יְהוֹחָנָן [Yehokhanan], "Deus mostrou-se favorável", "Deus é propício" ou "graça divina"; deriva do nome próprio de Deus, o tetragrama יְהֹוָה [YeHoWaH ou YaHWeH], "YHVH" (habitualmente dito, em português, "Jeová" ou "Yavé"), com o verbo חָנַן [khanan], "mostrar-se favorável", "ser gracioso, dar graças". Através do latim Iohannes.
A nível internacional, o nome João tem correspondentes vários, sendo etimologicamente o mesmo que: Giovanni, Johannes, Yohanes, Juan, Jean, Hans, entre outros.
Joana: ver João.
João: do grego Ἰωάννης [Ioánnés]; do hebraico יוֹחָנָן [Yokhanan], o mesmo que יְהוֹחָנָן [Yehokhanan], "Deus mostrou-se favorável", "Deus é propício" ou "graça divina"; deriva do nome próprio de Deus, o tetragrama יְהֹוָה [YeHoWaH ou YaHWeH], "YHVH" (habitualmente dito, em português, "Jeová" ou "Yavé"), com o verbo חָנַן [khanan], "mostrar-se favorável", "ser gracioso, dar graças". Através do latim Iohannes.
A nível internacional, o nome João tem correspondentes vários, sendo etimologicamente o mesmo que: Giovanni, Johannes, Yohanes, Juan, Jean, Hans, entre outros.
Jorge: do grego Γεώργιος [Gueórgios], de γεωργός [gueorgós], "agricultor", "que trabalha a terra"; de γῆ [guê], "terra", e ἔργον [érgon], "trabalho" - através do latim, Georgius.
O mesmo que George, nome que, de facto, está mais próximo do original grego.
A origem do nome do país do cáucaso, Geórgia, é completamente independente.
quinta-feira, 19 de setembro de 2013
Ética e moral - o estatuto dos humanos e dos animais
A propósito de animais e humanos
A. Considere o caso hipotético seguinte.
1. A humanidade evoluiu de tal modo que todas as pessoas, ou, pelo menos, a grande maioria delas, reconhece aos animais o mesmo estatuto moral que aos humanos.
2. A humanidade evoluiu de tal modo que consegue viajar no tempo, para o passado.
3. A humanidade desenvolveu, também, armas de defesa planetária de grande envergadura, de tal modo que dispõe de um sistema contra objectos extra-terrestres, o qual permitirá defender o Planeta de asteróides como aqueles que provocaram as extinções em massa anteriores.
B. Responda, fundamentando, às questões seguintes.
α. Do ponto de vista ético ou moral seria legítimo viajar para o passado com o fim de evitar a ascensão de Hitler? (note que não é possível prever as consequências desse acto uma vez que seja executado)
β. Do ponto de vista ético ou moral seria legítimo viajar para o passado com o fim de evitar a extinção em massa que ocorreu há 251 milhões de anos, na qual se extinguiram 96% das espécies marinhas e 70% das espécies terrestres? (note que, tanto quanto os cientistas lhe podem dizer, ao impedir essa extinção impediria também que alguma vez viessem a existir humanos)
A. Considere o caso hipotético seguinte.
1. A humanidade evoluiu de tal modo que todas as pessoas, ou, pelo menos, a grande maioria delas, reconhece aos animais o mesmo estatuto moral que aos humanos.
2. A humanidade evoluiu de tal modo que consegue viajar no tempo, para o passado.
3. A humanidade desenvolveu, também, armas de defesa planetária de grande envergadura, de tal modo que dispõe de um sistema contra objectos extra-terrestres, o qual permitirá defender o Planeta de asteróides como aqueles que provocaram as extinções em massa anteriores.
B. Responda, fundamentando, às questões seguintes.
α. Do ponto de vista ético ou moral seria legítimo viajar para o passado com o fim de evitar a ascensão de Hitler? (note que não é possível prever as consequências desse acto uma vez que seja executado)
β. Do ponto de vista ético ou moral seria legítimo viajar para o passado com o fim de evitar a extinção em massa que ocorreu há 251 milhões de anos, na qual se extinguiram 96% das espécies marinhas e 70% das espécies terrestres? (note que, tanto quanto os cientistas lhe podem dizer, ao impedir essa extinção impediria também que alguma vez viessem a existir humanos)
quarta-feira, 18 de setembro de 2013
Da educação das crianças, Plutarco - citando Licurgo
A propósito de Educação...
Então, quando os Lacedemónios se reuniram, disse-lhes [Licurgo]: "O mais decisivo em conceber a excelência, homens, Lacedemónios, são os hábitos e os tipos de educação e instruções e modos de vida, e eu vou fazer com que isso seja evidente de uma vez por todas". Então, acercando-se dos dois cachorros soltou-os tendo posto entre eles um prato e uma lebre mesmo à frente dos cachorros. E um correu para a lebre, o outro apressou-se para o prato. Mas como os Lacedemónios não foram capazes de juntar as peças e de captar o significado da exibição dos cães, ele disse-lhes: "Ambos da mesma geração, mas como aconteceu terem recebido diferentes criações, um tornou-se um glutão, mas o outro um caçador."
Plutarco, ΠΕΡΙ ΠΑΙΔΩΝ ΑΓΩΓΗΣ, 4Εἶτά ποτε τῶν Λακεδαιμονίων εἰς ταὐτὸ συνειλεγμένων, « Μεγάλη τοι ῥοπὴ πρὸς ἀρετῆς κύησίν ἐστιν, ἄνδρες, » ἔφησε, « Λακεδαιμόνιοι, καὶ ἔθη καὶ παιδεῖαι καὶ διδασκαλίαι καὶ βίων ἀγωγαί, καὶ ἐγὼ ταῦθ´ ὑμῖν αὐτίκα δὴ μάλα ποιήσω φανερά. » Εἶτα προσαγαγὼν τοὺς δύο σκύλακας διαφῆκε, καταθεὶς εἰς μέσον λοπάδα καὶ λαγωὸν κατευθὺ τῶν σκυλάκων. Καὶ ὁ μὲν ἐπὶ τὸν λαγωὸν ᾖξεν, ὁ δ´ ἐπὶ τὴν λοπάδα ὥρμησε. Τῶν δὲ Λακεδαιμονίων οὐδέπω συμβαλεῖν ἐχόντων τί ποτ´ αὐτῷ τοῦτο δύναται καὶ τί βουλόμενος τοὺς σκύλακας ἐπεδείκνυεν, « Οὗτοι γονέων, » ἔφη, « τῶν αὐτῶν ἀμφότεροι, διαφόρου δὲ τυχόντες ἀγωγῆς ὁ μὲν λίχνος ὁ δὲ θηρευτὴς ἀποβέβηκε. »
Jesus - uma mensagem inovadora
A propósito de Jesus
Como podereis vós acreditar, [vós] que tomais fama uns dos outros e a fama do deus único não procurais? [...] Então, aqueles humanos tendo visto o que ele fez disseram: "Este é verdadeiramente o profeta que está para vir ao mundo". Jesus, então, tendo compreendido que eles pretendiam vir e forçá-lo de modo a fazê-lo rei, retirou-se novamente para o monte sozinho.
João 5:44; 6:14-15
πῶς δύνασθε ὑμεῖς πιστεῦσαι, δόξαν παρὰ ἀλλήλων λαμβάνοντες, καὶ τὴν δόξαν τὴν παρὰ τοῦ μόνου Θεοῦ οὐ ζητεῖτε; [...] Οἱ οὖν ἄνθρωποι ἰδόντες ὃ ἐποίησεν σημεῖον ἔλεγον ὅτι Οὗτός ἐστιν ἀληθῶς ὁ προφήτης ὁ ἐρχόμενος εἰς τὸν κόσμον. Ἰησοῦς οὖν γνοὺς ὅτι μέλλουσιν ἔρχεσθαι καὶ ἁρπάζειν αὐτὸν ἵνα ποιήσωσιν βασιλέα, ἀνεχώρησεν πάλιν εἰς τὸ ὄρος αὐτὸς μόνος.
Disseram aqueles homens, depois de verem o que Jesus fez, que ele era verdadeiramente o profeta esperado. Aparentemente, acreditaram nele, porque viram, e porque viram reconhecem-no. Não o reconheceram pela sua mensagem, por aquilo que ele lhes disse. Não. Foi antes o êxtase do extraordinário, o êxtase dos milagres que os cativou.
Esperávamos, talvez, um Jesus agradecido, contente com o reconhecimento da multidão. Mas nada disso se passou. Jesus recolheu-se, sozinho, no monte. Descontente. Descontente porque percebera que fora o êxtase da multidão frente ao seu líder, o êxtase da multidão em rebelar-se contra os invasores Romanos - Jesus percebera que aqueles homens não o compreenderam - se é que algum o compreendeu.
Jesus falava-lhes de alhos e eles regozijavam-se na perspectiva dos bugalhos. Mas o Reino de Jesus não seria deste mundo e aqueles homens queriam um rei para este mundo.
Este trecho do Novo Testamento é absolutamente fundamental. A frase "Este é verdadeiramente o profeta que está para vir ao mundo" parece indicar que Jesus fora bem aceite, compreendido e louvado. Contudo, essa aparência é que constitui a ilusão aqui em causa. Não, Jesus não fora compreendido. O vinho novo continuava a ser colocado em vasilhas velhas.
Aqueles homens louvavam-no e queriam fazer dele o seu Rei - mas Jesus não estava ali para ser Rei deles, não estava ali para alimentar os seus êxtases e as suas aspirações mundanas.
Aqueles homens louvavam-no e queriam fazer dele o seu Rei - mas Jesus não estava ali para ser Rei deles, não estava ali para alimentar os seus êxtases e as suas aspirações mundanas.
terça-feira, 17 de setembro de 2013
Origem dos nomes / etimologia - Letra F
F
Filipe: do grego φίλιππος [fílippos], "amante de cavalos"; de φίλος [fílos], "amante", e ἵππος [híppos], "cavalo" - através do latim, Philippus.
Filipe II da Macedónia foi o pai de Alexandre, o Grande.
Filipe: do grego φίλιππος [fílippos], "amante de cavalos"; de φίλος [fílos], "amante", e ἵππος [híppos], "cavalo" - através do latim, Philippus.
Filipe II da Macedónia foi o pai de Alexandre, o Grande.
Origem dos nomes / etimologia - Letra M
M
Maria: do grego Μαρία [María], a mãe de Jesus (Mt 1:16), no Novo Testamento; do hebraico מִרְיָם [Miryam], irmã de Aarão (Ex 15:20).
O nome Μαρία surge no Novo Testamento, também na forma Μαρίαμ [Maríam], que é simplesmente a transliteração do aramaico, para designar várias mulheres, não só a mãe de Jesus. A forma Μαρίαμ já aparecia na Septuaginta (Ex 15:20) para verter o hebraico מִרְיָם [que se pronuncia meer-yawm']. O significado do nome Miryam é discutível, no entanto é provável que provenha de מֶ֫רִי [meri], "rebelião", "rebelde".
O nome Miryam pode também ter origem egípcia, em mry, "amada", ou assíria, em yam, "mar". Outras teorias sugerem que Miryam possa significar "desejosa por uma criança".
Resumindo, Maria deriva do hebraico, Miryam, por via do grego, María. Não se sabe ao certo o que significa, mas várias teorias apontam para os significados seguintes: "rebelde", "amada", "do mar", "mar da amargura", "desejosa por uma criança".
Finalmente, convém esclarecer que o nome Maria existia no latim como feminino de Marius, mas sem qualquer ligação ao nome "Maria" bíblico - o nome Marius, ou o seu derivado Mário, não tem a mesma origem que o nome Maria, visto que Marius é um gentílico de origem propriamente romana (gens Maria), ao contrário do nome Maria que provém do hebraico.
Finalmente, convém esclarecer que o nome Maria existia no latim como feminino de Marius, mas sem qualquer ligação ao nome "Maria" bíblico - o nome Marius, ou o seu derivado Mário, não tem a mesma origem que o nome Maria, visto que Marius é um gentílico de origem propriamente romana (gens Maria), ao contrário do nome Maria que provém do hebraico.
Mário: do latim Marius, um nome romano relativo a uma família plebeia romana, gens Maria (o gentílico Maria não tem, neste caso, qualquer relação etimológica com o nome Maria).
A origem do nome Marius está sujeita a dúvidas. Parece derivar de mas, mari, "masculino, másculo", mas pode também derivar de Mars, o deus romano da guerra, "Marte".
Nos tempos da Cristandade, o nome Mário, Marius e Maria, podem ter sido usados como sendo as formas masculina e feminina um do outro, mas na verdade têm etimologias completamente diferentes.
segunda-feira, 16 de setembro de 2013
Origem dos nomes / etimologia - Letra G
G
Gaudêncio: do latim Gaudentius, "aquele que se alegra". Do verbo latino gaudere, "alegrar-se". Ainda hoje usamos o termo "gáudio", do latim, gaudium, que significa "alegria".
O nome existe desde, pelo menos, o século IV d. C. Cf. São Gaudêncio, Bispo de Bréscia de 387 a 410, ano da sua morte; Flavius Gaudentius, que morreu em 425, pai do general romano Flavius Aetius (396-454), dux et patricius.
George: do grego Γεώργιος [Gueórguios], de γεωργός [gueorgós], "agricultor", "que trabalha a terra"; de γῆ [guê], "terra", e ἔργον [érgon], "trabalho" - através do latim, Georgius. O mesmo que Jorge.
Gaudêncio: do latim Gaudentius, "aquele que se alegra". Do verbo latino gaudere, "alegrar-se". Ainda hoje usamos o termo "gáudio", do latim, gaudium, que significa "alegria".
O nome existe desde, pelo menos, o século IV d. C. Cf. São Gaudêncio, Bispo de Bréscia de 387 a 410, ano da sua morte; Flavius Gaudentius, que morreu em 425, pai do general romano Flavius Aetius (396-454), dux et patricius.
George: do grego Γεώργιος [Gueórguios], de γεωργός [gueorgós], "agricultor", "que trabalha a terra"; de γῆ [guê], "terra", e ἔργον [érgon], "trabalho" - através do latim, Georgius. O mesmo que Jorge.
domingo, 15 de setembro de 2013
A Coreia do Sul e o "smile lipt"
A propósito de sorrisos...
Na Coreia do Sul parece que as pessoas descobriram as enormes vantagens das operações plásticas. Quando a Coreia do Norte obrigou os seus concidadãos a usar os mesmos penteados, soube-se que na Coreia do Sul as pessoas voluntariamente se sujeitavam a operações para serem todas parecidas.
Agora, a Coreia do Sul, do alto do seu rápido progresso em ordem ao desenvolvimento científico e tecnológico, voltam a surpreender-me:
- uma nova moda ameaça tornar-se viral: chama-se smile lipt, e trata-se de uma cirurgia estética concebida para pôr as pessoas a sorrir permanentemente...
Na Coreia do Sul parece que as pessoas descobriram as enormes vantagens das operações plásticas. Quando a Coreia do Norte obrigou os seus concidadãos a usar os mesmos penteados, soube-se que na Coreia do Sul as pessoas voluntariamente se sujeitavam a operações para serem todas parecidas.
Agora, a Coreia do Sul, do alto do seu rápido progresso em ordem ao desenvolvimento científico e tecnológico, voltam a surpreender-me:
- uma nova moda ameaça tornar-se viral: chama-se smile lipt, e trata-se de uma cirurgia estética concebida para pôr as pessoas a sorrir permanentemente...
Parecem-me extremamente excessivos os contornos que a obcecação com o sucesso e com a "felicidade" tem no nosso mundo...
sexta-feira, 13 de setembro de 2013
Ele está de volta, de Timur Vermes
A propósito de,
Numa cultura em que se glorifica o sucesso o que aconteceria se Hitler voltasse?
É esta a pergunta que Vermes coloca e que motiva o livro. E esta pergunta é válida. E se um Hitler aparecesse hoje?
A resposta parece ser óbvia. Tendemos a imaginar Hitler como sendo um monstro. Mas esta imagem é virtual, é, na verdade, uma fuga - uma estratégia de defesa: parece que a culpa foi exclusivamente dele. O Mal é, assim, reduzido a Hitler. Contudo, a verdade é que Hitler não precisou de matar com as suas mãos porque teve milhões a seguirem-no, a admirá-lo, a idolatrá-lo.
Um Hitler não é uma figura monstruosa - pelo menos não a é no sentido vulgar.
Vulgarmente, um monstro é uma criatura feia, que causa repulsa. Hitler não foi nada disso. Quando se fala da possibilidade de surgir um novo Hitler não se deve considerar essa possibilidade como se se tratasse de um monstro, alguém que causa repulsa. A figura de um hitler não tem nada que ver com repulsa, muito pelo contrário. Tem que ver com atracção. Um hitler é uma figura que exerce atracção sobre as pessoas, sobre os seus concidadãos, sobre a esmagadora maioria dos homens e das mulheres que o ouvem e escutam.
Isto não quer dizer que eu admiro Hitler. Pelo contrário. Hitler causa-me repulsa. Da mesma maneira, suponho que a maioria de nós não admira Hitler. Suponho que o Hitler histórico, essa figura que existiu no passado da Europa, nos causa repulsa à maioria de nós. E isso é assim porque esse Hitler se tornou, para nós, um monstro - se quisermos, porque se revelou a sua verdadeira natureza: monstruosa. Hitler foi um monstro.
Contudo, Hitler não foi um monstro para os homens do seu tempo. Foi um político com um talento fantástico. Exercia um fascínio a que poucos foram capazes de resistir. É isto que é um hitler. Uma figura fascinante, capaz de cegar todos à sua volta, capaz de tornar homens em máquinas, humanos em marionetas. É por isso que a pergunta é válida: estaríamos, hoje, em condições de resistir ao talento de um hitler?
A verdade é que vivemos numa sociedade dominada pelo sucesso. Ora, hitler é a figura do bem-sucedido por excelência.
Vermes põe uma hipótese - mas haveria tantas outras. Tantas formas de um hitler se impor.
Em geral, penso que há um perigo em banalizar a figura de Hitler. Há mesmo um grande perigo em rir de Hitler. O Hitler dos comediantes parece-me sempre monstruoso - justamente porque faz rir. Ajuda, de facto, a dar descanso às almas. Parece, de facto, que houve apenas um culpado: Hitler. Um culpado de quem agora nos rimos, como por uma espécie de castigo, ou como sinal de indiferença, ou como forma de passar à frente e perdoar - não Hitler, mas todos os outros.
Ora, uma das mais-valias deste livro é mostrar que o busílis não está em hitler - não o está exclusivamente, nem o está primordialmente. O busílis está, precisamente, na consciência de cada um, na facilidade com que ela pode ser adormecida, com que ela pode ser silenciada. O busílis está, precisamente, na indiferença, no descanso da alma, na desculpa. Porque há coisas que não têm desculpa, que não devem ser deixadas para trás e perante as quais jamais se deve permanecer indiferente sob pena de perdermos aquilo que, no sentido mais nobre, faz de nós humanos.
30 de agosto de 2011. Um velho acorda num terreno baldio de Berlim. Deitado no chão, só vê o céu azul por cima da cabeça e fica surpreendido ao ouvir o canto dos pássaros, sinal de que estamos a testemunhar pelo menos uma pausa nos combates.
O homem tem uma grande dor de cabeça e não sabe onde se encontra nem como ali chegou. Tenta lembrar-se do que fez na véspera: a amnésia não pode ser explicada pelo álcool – porque o Führer não bebe! Em vão, procura em redor o seu fiel Bormann. Hitler levanta-se com dificuldade e dirige-se para as vozes de três rapazes da Juventude Hitleriana, certamente de licença porque não estão fardados e jogam à bola. "Ei, velhote, olha p’ra isto! Quem é este velho?" "Devo estar mesmo com mau aspeto", pensa o Führer, ao registar a falta da saudação regulamentar. "Onde está o Bormann?", preocupa-se novamente. "Quem é esse?" "Bormann! Martin Bormann!" "Não conheço, tem cara de quê?" "De dirigente de topo do Reich!" Hitler olha novamente para os três rapazes. Estão de camisolas coloridas. "Jovem hitleriano Ronaldo! Onde fica a rua mais próxima?" Ninguém reage. Então, vira-se para o mais novo dos três, que aponta para um canto do terreno.
No quiosque de jornais da terra, Hitler procura o seu velho diário Völkischer Beobachter. Só vê títulos turcos... "Estranho, os turcos permaneceram fora do conflito, apesar das nossas inúmeras tentativas de o associar à nossa causa." Desmaia ao ler a data, 30 de agosto de 2011, num dos jornais que não conhece. O dono do quiosque julga estar na presença de um ator saído de uma série de televisão. Deixa Hitler ficar uns dias com ele no estabelecimento. "Olhe que o senhor imita-o bem, hã?" Hitler fica indignado. "Pareço algum criminoso?" "Parece o Hitler", diz o vendedor de jornais. "Precisamente!", responde o Führer...
Transformado em vendedor de jornais, o ditador é "descoberto" por uma empresa de conteúdos para televisão. Os produtores veem nele um "enorme potencial". Ele fica danado... O êxito do programa é impressionante. Desamparado, Hitler acordou numa sociedade onde o sucesso é medido em termos de audiências, em "gostos" no Facebook e coisas do género. Torna-se um ator cómico reconhecido... "O senhor vale ouro, meu caro! Isto é apenas o início, acredite em mim!", felicita-o o produtor.
Numa cultura em que se glorifica o sucesso o que aconteceria se Hitler voltasse?
É esta a pergunta que Vermes coloca e que motiva o livro. E esta pergunta é válida. E se um Hitler aparecesse hoje?
A resposta parece ser óbvia. Tendemos a imaginar Hitler como sendo um monstro. Mas esta imagem é virtual, é, na verdade, uma fuga - uma estratégia de defesa: parece que a culpa foi exclusivamente dele. O Mal é, assim, reduzido a Hitler. Contudo, a verdade é que Hitler não precisou de matar com as suas mãos porque teve milhões a seguirem-no, a admirá-lo, a idolatrá-lo.
Um Hitler não é uma figura monstruosa - pelo menos não a é no sentido vulgar.
Vulgarmente, um monstro é uma criatura feia, que causa repulsa. Hitler não foi nada disso. Quando se fala da possibilidade de surgir um novo Hitler não se deve considerar essa possibilidade como se se tratasse de um monstro, alguém que causa repulsa. A figura de um hitler não tem nada que ver com repulsa, muito pelo contrário. Tem que ver com atracção. Um hitler é uma figura que exerce atracção sobre as pessoas, sobre os seus concidadãos, sobre a esmagadora maioria dos homens e das mulheres que o ouvem e escutam.
Isto não quer dizer que eu admiro Hitler. Pelo contrário. Hitler causa-me repulsa. Da mesma maneira, suponho que a maioria de nós não admira Hitler. Suponho que o Hitler histórico, essa figura que existiu no passado da Europa, nos causa repulsa à maioria de nós. E isso é assim porque esse Hitler se tornou, para nós, um monstro - se quisermos, porque se revelou a sua verdadeira natureza: monstruosa. Hitler foi um monstro.
Contudo, Hitler não foi um monstro para os homens do seu tempo. Foi um político com um talento fantástico. Exercia um fascínio a que poucos foram capazes de resistir. É isto que é um hitler. Uma figura fascinante, capaz de cegar todos à sua volta, capaz de tornar homens em máquinas, humanos em marionetas. É por isso que a pergunta é válida: estaríamos, hoje, em condições de resistir ao talento de um hitler?
A verdade é que vivemos numa sociedade dominada pelo sucesso. Ora, hitler é a figura do bem-sucedido por excelência.
Vermes põe uma hipótese - mas haveria tantas outras. Tantas formas de um hitler se impor.
Em geral, penso que há um perigo em banalizar a figura de Hitler. Há mesmo um grande perigo em rir de Hitler. O Hitler dos comediantes parece-me sempre monstruoso - justamente porque faz rir. Ajuda, de facto, a dar descanso às almas. Parece, de facto, que houve apenas um culpado: Hitler. Um culpado de quem agora nos rimos, como por uma espécie de castigo, ou como sinal de indiferença, ou como forma de passar à frente e perdoar - não Hitler, mas todos os outros.
Ora, uma das mais-valias deste livro é mostrar que o busílis não está em hitler - não o está exclusivamente, nem o está primordialmente. O busílis está, precisamente, na consciência de cada um, na facilidade com que ela pode ser adormecida, com que ela pode ser silenciada. O busílis está, precisamente, na indiferença, no descanso da alma, na desculpa. Porque há coisas que não têm desculpa, que não devem ser deixadas para trás e perante as quais jamais se deve permanecer indiferente sob pena de perdermos aquilo que, no sentido mais nobre, faz de nós humanos.
“Temos em excesso um estereótipo de Hitler, sempre o mesmo: o monstro que nos deixa tranquilos. Eu próprio, durante muito tempo, aceitei essa visão de Hitler. Mas ela não basta. Hitler exercia um verdadeiro fascínio. Se tantas pessoas o ajudaram a cometer crimes, foi porque gostaram dele. As pessoas não elegem um louco. Elegem alguém que as atrai ou por quem sentem admiração. Apresentá-lo como um monstro equivale a fazer dos seus eleitores idiotas. E isso tranquiliza-nos. Pensamos que, hoje, somos mais inteligentes. Nunca elegeríamos um monstro nem um palhaço. Mas, na época, as pessoas eram tão inteligentes como nós! Isso é que custa... Muitas vezes, diz-se que, se um novo Hitler surgisse, seria fácil de contrariar. Tentei mostrar, pelo contrário, que ainda hoje, Hitler teria boas hipóteses de ser bem-sucedido. Só que de outra forma."
Timur Vermes
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