sábado, 30 de junho de 2012

Citações, traduções - excertos e fragmentos. Os gregos: citações (β)


A propósito de citações:


Estrangeiro:
Aquele que julga conhecer bem aquilo que não sabe arrisca-se a, por causa disso, vir a cair em erro em todos os pensamentos que tiver.

Platão, Sofista 229c
Ξένος
τὸ μὴ κατειδότα τι δοκεῖν εἰδέναι: δι᾽ οὗ κινδυνεύει πάντα ὅσα διανοίᾳ σφαλλόμεθα γίγνεσθαι πᾶσιν.


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Deste modo, então, a combinação dos nomes vem a ser o logos.

Platão, Teeteto 202b
οὕτω καὶ τὰ ὀνόματα αὐτῶν συμπλακέντα λόγον γεγονέναι:

Desligar cada coisa de todas as coisas é uma completa destruição de todo o logos: pois é através da combinação das formas entre si que o logos vem a ser em nós.

Platão, Sofista 259e
τελεωτάτη πάντων λόγων ἐστὶν ἀφάνισις τὸ διαλύειν ἕκαστον ἀπὸ πάντων: διὰ γὰρ τὴν ἀλλήλων τῶν εἰδῶν συμπλοκὴν ὁ λόγος γέγονεν ἡμῖν.

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Parménides, frag. 6 Diels
Χρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι· ἔστι γὰρ εἶναι,
μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν· τά σ΄ ἐγὼ φράζεσθαι ἄνωγα.
Πρώτης γάρ σ΄ ἀφ΄ ὁδοῦ ταύτης διζήσιος <εἴργω>,
αὐτὰρ ἔπειτ΄ ἀπὸ τῆς, ἣν δὴ βροτοὶ εἰδότες οὐδέν
πλάττονται, δίκρανοι· ἀμηχανίη γὰρ ἐν αὐτῶν                                              [5]
στήθεσιν ἰθύνει πλακτὸν νόον· οἱ δὲ φοροῦνται.
κωφοὶ ὁμῶς τυφλοί τε, τεθηπότες, ἄκριτα φῦλα,
οἷς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ εἶναι ταὐτὸν νενόμισται
κοὐ ταὐτόν, πάντων δὲ παλίντροπός ἐστι κέλευθος.


Dizer e pensar têm de ser “o que-é”. Pois o ser é,
Mas o nada não é. Eu te mando considerar isto.
Pois deste primeiro caminho de investigação [te previno],
Logo, também daquele onde vagueiam os mortais que nada
Sabem, gente de pensamento duplo. Pois a falta de expedientes no seu
Peito dirige o errático pensamento. E são levados.
Igualmente surdos e cegos, espantados, multidão confusa,
Julgando que ser e não-ser é o mesmo
E não o mesmo, e que a via que todos seguem é reversível.



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Sócrates: "Então, não parece falta de vergonha, sem sabermos o que é o conhecimento, declarar como é conhecer?"

Teeteto, 196d
Σωκράτης
ἔπειτ᾽ οὐκ ἀναιδὲς δοκεῖ μὴ εἰδότας ἐπιστήμην ἀποφαίνεσθαι τὸ ἐπίστασθαι οἷόν ἐστιν;

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Dos muitos mortais muitas são as desgraças, assumindo variadas formas: apenas um pouco de fortuna a custo se descobre na vida dos humanos.

Eurípedes, Íon, 381-3
πολλαί γε πολλοῖς εἰσι συμφοραὶ βροτῶν,
μορφαὶ δὲ διαφέρουσιν: ἓν δ᾽ ἂν εὐτυχὲς
μόλις ποτ᾽ ἐξεύροι τις ἀνθρώπων βίῳ.

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Mas, se te quiseres exercitar mais completamente, é preciso que relativamente a isso faças isto: não só colocar a hipótese de que cada coisa é e investigar o que se segue dessa hipótese, mas também colocar a hipótese de que isso mesmo não é.

Platão, Parménides 135e-136a
χρὴ δὲ καὶ τόδε ἔτι πρὸς τούτῳ ποιεῖν, μὴ μόνον εἰ ἔστιν ἕκαστον ὑποτιθέμενον σκοπεῖν τὰ [136α] συμβαίνοντα ἐκ τῆς ὑποθέσεως, ἀλλὰ καὶ εἰ μὴ ἔστι τὸ αὐτὸ τοῦτο ὑποτίθεσθαι, εἰ βούλει μᾶλλον γυμνασθῆναι.


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Pois, isso que estás a atravessar, a estupefacção, é mais de um filósofo: não há realmente outro princípio da filosofia além desse,…

Platão, Teeteto 155d
μάλα γὰρ φιλοσόφου τοῦτο τὸ πάθος, τὸ θαυμάζειν: οὐ γὰρ ἄλλη ἀρχὴ φιλοσοφίας ἢ αὕτη,

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Platão, Alcibíades 130d
ὅτι πρῶτον σκεπτέον εἴη αὐτὸ τὸ αὐτό: νῦν δὲ ἀντὶ τοῦ αὐτοῦ αὐτὸ ἕκαστον ἐσκέμμεθα ὅτι ἐστί. καὶ ἴσως ἐξαρκέσει: οὐ γάρ που κυριώτερόν γε οὐδὲν ἂν ἡμῶν αὐτῶν φήσαιμεν ἢ τὴν ψυχήν.

… que o primeiro a ser considerado deveria ser o que seja o si mesmo: mas agora em vez do mesmo considerámos o que cada um é em si. E será igualmente suficiente: pois nós não podemos afirmar que alguma coisa nos senhoreie mais do que a alma.  


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Dizei-me agora, oh Musas que em Olímpia tendes morada,
– pois vós sois deusas, e sois e sabeis todas as coisas,
mas nós ouvimos apenas o rumor e nada sabemos –

Homero, Ilíada, II, 484-486:
ἔσπετε νῦν μοι Μοῦσαι Ὀλύμπια δώματ᾽ ἔχουσαι:
ὑμεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα,
ἡμεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούομεν οὐδέ τι ἴδμεν:

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Platão, Apologia de Sócrates 28d
Qualquer que seja a posição onde qualquer um se encontre colocado na frente de batalha acreditando ser o melhor ou sendo ordenado por um chefe, aí é necessário, assim me parece, que resista correndo perigos, jamais dando crédito nem à morte, nem a nada mais senão ao que é vergonhoso.

οὗ ἄν τις ἑαυτὸν τάξῃ ἡγησάμενος βέλτιστον εἶναι ἢ ὑπ᾽ ἄρχοντος ταχθῇ, ἐνταῦθα δεῖ, ὡς ἐμοὶ δοκεῖ, μένοντα κινδυνεύειν, μηδὲν ὑπολογιζόμενον μήτε θάνατον μήτε ἄλλο μηδὲν πρὸ τοῦ αἰσχροῦ.

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Platão, Alcibíades:
Σωκράτης
φέρε δή, τί ἐστιν τὸ ἑαυτοῦ ἐπιμελεῖσθαι—μὴ πολλάκις [128α] λάθωμεν οὐχ ἡμῶν αὐτῶν ἐπιμελούμενοι, οἰόμενοι δέ —καὶ πότ᾽ ἄρα αὐτὸ ποιεῖ ἅνθρωπος; ἆρ᾽ ὅταν τῶν αὑτοῦ ἐπιμελῆται, τότε καὶ αὑτοῦ;

Trad.: Então responde: que é “cuidar de si mesmo” – pois talvez muitas vezes nos escape que não cuidamos de nós mesmos, mas supomo-lo – e quando é que o humano o faz? Será que cuida de si mesmo, ao mesmo tempo que cuida do que é seu?


Todas as traduções são de Luís Mendes

quarta-feira, 27 de junho de 2012

O estado de "Rausch" no fundo do humano

A propósito de futebol...

Um esboço muito pequeno...

O espírito dionisíaco e o futebol: o estado de "Rausch" no fundo do humano -
o sentimento de perda da individualidade (Nietzsche)


Noutros tempos, a exortação à guerra era voz dos chefes, dos senhores da guerra e dos campeões do exército... a guerra concentrava os homens no exercício da violência, por vezes com respeito, por vezes com ódio... unia os guerreiros sob um signo, um nome, um espírito, uma bandeira. Na frente como na nação, a guerra fortalecia o espírito comum mediante o êxtase!

Hoje, em torno de um jogo de futebol vemos o mesmo tipo de fulgor, de ardor e de ódio que de outros tempos temos notícia. Nações em uníssono sentem a paixão do combate, a expectativa dos grandes momentos decisivos, e também o ódio, embora momentâneo, centrado no opositor, no inimigo, no adversário. O êxtase futebolístico anima os corações, mas sobretudo, graças à união das audiências num êxtase comum, liberta o indivíduo do peso de ser ele mesmo, e, simplesmente, permite-lhe libertar a ânsia de sair de si!

Os jogos de futebol são as batalhas, o campo de guerra dos nossos tempos e das nossas sociedades, que encontraram um modo de viver o estertor bélico sem a iminência em que os guerreiros se encontravam de serem trespassados. Como a democracia hoje é representativa, também no futebol um pequeno grupo dá a face ao embate, e o resto assiste da bancada, ao jogo, para catarse das paixões humanas em efervescência. O espectador está protegido pelo distanciamento. Mas o coração sofre. Sai de si. Há algo de místico numa multidão apaixonada: a embriaguez - um sentimento de perda da individualidade, e de mistura com o todo é sofrido pelos espectadores de futebol como o era pelos da tragédia grega...


Sangue é violência, nas veias do humano corre a paixão da violência.


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Sobre o assunto, ver TANNER, Michael. O Pensamento de Nietzsche, cap. 2 - Tragédia: Nascimento, Morte e Renascimento

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Life and suffering: vida e sofrimento, and the meaning of that: e o sentido disso





1.
Are we doomed to suffer or is extended happiness possible? Why?

Estamos condenados a sofrer, ou será possível viver na felicidade? Porquê?




2.
If we are doomed to suffer, does that mean we have no reasons to live in this world? Why?

Se estivermos condenados a sofrer, será que isto significa que não temos razões para viver neste mundo? Porquê?



3.
If extended happiness is possible, does that mean we have good reasons to live and enjoy the life in this world? Why?

Se for possível viver na felicidade, será que isto significa que temos boas razões para viver e gozar a vida neste mundo? Porquê?

quinta-feira, 14 de junho de 2012

O castigo do mundo e o temor a Deus

A propósito de: LXX, Ecclesiastes 8:10-13


10 καὶ τότε εἶδον ἀσεβεῖς εἰς τάφους εἰσαχθέντας, καὶ ἐκ τόπου ἁγίου ἐπορεύθησαν καὶ ἐπῃνέθησαν ἐν τῇ πόλει, ὅτι οὕτως ἐποίησαν. καί γε τοῦτο ματαιότης. 11 ὅτι οὐκ ἔστιν γινομένη ἀντίρρησις ἀπὸ τῶν ποιούντων τὸ πονηρὸν ταχύ: διὰ τοῦτο ἐπληροφορήθη καρδία υἱῶν τοῦ ἀνθρώπου ἐν αὐτοῖς τοῦ ποιῆσαι τὸ πονηρόν. 12 ὃς ἥμαρτεν, ἐποίησεν τὸ πονηρὸν ἀπὸ τότε καὶ ἀπὸ μακρότητος αὐτῷ: ὅτι καί γε γινώσκω ἐγὼ ὅτι ἔσται ἀγαθὸν τοῖς φοβουμένοις τὸν θεόν, ὅπως φοβῶνται ἀπὸ προσώπου αὐτοῦ: 13 καὶ ἀγαθὸν οὐκ ἔσται τῷ ἀσεβεῖ, καὶ οὐ μακρυνεῖ ἡμέρας ἐν σκιᾷ ὃς οὐκ ἔστιν φοβούμενος ἀπὸ προσώπου τοῦ θεοῦ.


Tradução: 

10 E então observei os ímpios sendo levados nos funerais, e do lugar santo serem carregados e eram louvados na cidade, porque assim fizeram[1]. E também isto é vacuidade. 11 Porque não vem a acontecer alguma objecção aos que fazem o que é mau prontamente[2]: assim, por isso, o coração dos filhos do humano está[3] comprometido em si mesmo a fazer o que é mau. 12 Assim, o que cometeu faltas, fez o que é mau desde então e durante muito tempo o fez. Portanto, assim eu sei que será bem com[4] aquele que teme a deus, uma vez que temam em frente dele. 13 E com o ímpio nada será bem[5], nem alongará os dias na sombra, pois que não é temente perante deus[6].



Discussão na LXX:

O temer daquele que teme "na frente" de deus não é o mesmo que temer uma qualquer ocorrência intramundana. Na verdade, diz o Pregador, a experiência mostra que habitualmente a justiça do mundo tarda. O adiamento da oposição ao fazer errado do ímpio cria um ilusão de impunidade e mantém os ímpios na perpetração do errado. E de facto, por toda a parte os bons são tratados como maus, e os maus como os bons. Os pobres são oprimidos e os injustos adquirem poder. Os ímpios são, pois, encorajados a fazer o mal tendo em vista a satisfação do desejo de abundância.

Mas aquele que teme a deus faz o bem, das suas mãos eclode o que é recto, sadio. Não porque tema o castigo que vem do mundo ou da cidade, mas porque treme na face de deus.

O que corre bem aos que temem a deus não é ao modo do mundo: no mundo, há bons que sofrem e maus que têm sorte. Ninguém sabe quando morre, e ninguém foge à morte. A morte vem sempre a todos e não se pode evitar. O justo também morre, o bom também sofre injustiças. Não é o fazer o bem que faz com que as coisas corram bem. O temor a deus é de outra ordem, e de outra ordem é também o correr bem daquilo que corre bem com os tementes a deus. Também sofrem injustiças e vivem as dores do mundo, na sombra que é o tempo de vida. Também vivem na vacuidade. E tudo isto é vacuidade, porque não é isto que é relevante, não é nisto que o temente a deus põe a vista. Segundo a ordem do mundo tudo indica que aquilo que vale a pena é tão só viver na diversão, comer, beber e festejar. Mas não é comer, nem beber, nem festejar, nem viver na diversão, nem os resultados das acções humanas que é bom para o humano (2:24). O modo do mundo não é mais que vacuidade. Na verdade é ilusão. Tudo isto é vacuidade, tudo isto cria ilusão: o facto de que o justo sofre, de que o injusto ganha, de que o bom é oprimido, de que todos morrem, os benefícios das nossas acções... Tudo isto é vacuidade, e tudo isto é vazio.

Mas é errado dizer que há aqui a crença numa ordem justa do mundo. O mundo não é justo. Precisamente tudo o que é do mundo é vacuidade. Nenhum facto, nenhum acontecimento, nada formula correctamente uma resposta para a vida humana, e isto indica que a maioria das pessoas coloca equivocamente o problema da vida humana, do seu sentido e do seu destino.

E estas palavras são sábias e profundas - quer se seja ou não crente.

Cf. Eccl. 2:24: Οὐκ ἔστιν ἀγαθὸν ἐν ἀνθρώπῳ: ὃ φάγεται καὶπίεται. Em 8:15 diz-se: ὅτι οὐκ ἔστιν ἀγαθὸν τῷ ἀνθρώπῳ … ὅτι εἰ μὴ τοῦ φαγεῖν καὶ τοῦ πιεῖν

Ver Jamieson-Fausset-Brown Bible Commentary: … “The Hebrew, literally is, "It is not good for man that he should eat," &c., "and should make his soul see good" (or "show his soul, that is, himself, happy"), &c. [Weiss]. According to Holden and Weiss, Ec 3:12, 22 differ from this verse in the text and meaning; here he means, "It is not good that a man should feast himself, and falsely make as though his soul were happy"; he thus refers to a false pretending of happiness acquired by and for one's self; in Ec 3:12, 22; 5:18, 19, to real seeing, or finding pleasure when God gives it. There it is said to be good for a man to enjoy with satisfaction and thankfulness the blessings which God gives; here it is said not to be good to take an unreal pleasure to one's self by feasting, &c.” 

Cf. Young's Literal Translation, 2:24: “There is nothing good in a man who eateth, and hath drunk, and hath shewn his soul good in his labour. This also I have seen that it is from the hand of God.” 8:15: “There is nothing good in a man who eateth, and hath drunk, and hath shewn his soul good in his labour. This also I have seen that it is from the hand of God.” 

Ver correcções que os manuscritos apresentam a 2:24 em S (Codex Sinaiticus): 
  - até um quarto dos minúsculos apresentam a correcção πλην (excepto);
  - e de metade a três quartos dos minúsculos ει μη (se não).




[1] Ou: em que assim fizeram – traduzindo ὅτι por em que.
[2] O termo ταχύς, aqui como advérbio, ταχύ, pode referir-se à objecção a acontecer e não ao praticar o mal, ficando assim: “Porque não vem a acontecer rapidamente alguma objecção aos que fazem o que é mau”. I.e., os que fazem o mal não são prontamente castigados.
[3] Literalmente: estava ou era.
[4] Leitura possível: acontecerá o bem.
[5] Leitura possível: o bem não acontecerá.
[6] Note-se que não parece fazer sentido que se apregoe a injustiça que graça na falta de castigo rápido aos que fazem o que é mau, e depois se diga que o bem acontece aos que são tementes a deus. Parece existir aqui uma contradição. Esta contradição já não ocorre se se ler o texto da seguinte forma: “Portanto, assim eu sei que aquele que teme a deus será bom, uma vez que temam em frente dele. E o ímpio não será bom”. I.e.: a aprendizagem empírica ensina o humano a fazer o que pode pela sua própria ganância, cometendo entretanto injustiças na prossecução dos seus fins enquanto possa passar incólume e sem castigo. No entanto, diria o Pregador nesta hipótese de leitura, o bom é aquele que, contra a lei empírica, contra as espectativas criadas por essa ordem natural, se comporta diferentemente. Não seria, então, o temor do castigo do mundo, o qual se atrasa ou não chega de todo a vir, a fazer os homens bons, mas sim o temor a deus, o qual é independentemente de qualquer reacção mundana às acções dos humanos. Ainda que os maus nunca cheguem a ser castigados pela justiça dos homens ou do mundo, o que teme a deus perdura no bom caminho.
A propósito de um senhor esquecido, Schopenhauer:





"Pode ainda considerar-se a nossa vida como um episódio que perturba inutilmente a beatitude e o repouso do nada."





"Trabalho, tormento, desgosto e miséria, tal é sem dúvida durante a vida inteira o quinhão de quase todos os homens. Mas se todos os desejos, apenas formados, fossem imediatamente realizados, com que se preencheria a vida humana, em que se empregaria o tempo? Coloque-se esta raça num país de fadas, onde tudo cresceria espontaneamente, onde as calhandras voariam já assadas ao alcance de todas as bocas, onde todos encontrariam sem dificuldade a sua amada e a obteriam o mais facilmente possível — ver-se-ia então os homens morrerem de tédio, ou enforcarem-se, outros disputarem, matarem-se, e causarem-se mutuamente mais sofrimentos do que a natureza agora lhes impõe. — Assim para semelhante raça nenhum outro teatro, nenhuma outra existência conviriam."

Schopenhauer, Parerga et Paralipomena




segunda-feira, 4 de junho de 2012

Ninguém é justo por sua vontade

A propósito do anel de Giges

O episódio do anel de Giges é relatado por Platão na República, 359c - 360d.

Trata-se de um anel capaz de tornar invisível quem o possui. Com a estória do anel, Gláucon, a personagem que a relata, pretende mostrar que, se dermos o poder de fazerem o que quiserem a duas pessoas, uma justa e uma injusta, como se fossem iguais aos deuses, ambas farão o caminho da ambição. Com isto, Gláucon defende que ninguém é justo por vontade própria, mas por constrangimento.

Esta questão é moral. O que se pergunta é se há pessoas justas e injustas, ou se são todas igualmente ambiciosas. Ou seja, se se der a alguém a possibilidade de agir sem sofrer consequências, será que essa pessoa agiria justa ou injustamente conforme fosse de natureza justa ou injusta, ou será que, fosse quem fosse, uma vez na posse desse poder, agiria sempre em proveito próprio, sem se importar com o que é justo?

A questão parece simples, mas não o é. A sua complexidade, no entanto, começa na confusão dos conceitos. O que se quer dizer por "justo", ou "justiça", e por "injusto" ou "injustiça"?

Esta pergunta é moralmente fundamental, pois está em causa saber se há pessoas justas e pessoas injustas, independentemente de saber o que fez ou faz delas justas ou injustas, ou se todas as pessoas são naturalmente injustas.

Esta questão levar-nos-ia a muitas outras. Por exemplo: mesmo que haja pessoas que são justas e pessoas que são injustas, o que fez delas justas ou injustas? Tornaram-se justas ou injustas pela experiência, ou são assim por natureza? Quer sejam assim por natureza, quer sejam assim pela experiência, se as pessoas agem injustamente por serem injustas deverão ser consideradas moralmente culpadas pelos seus actos? Se a pessoa justa não poderia agir de outra forma senão de acordo consigo mesma, isto é, justamente, deverá ser louvada por agir assim?


Post-scriptum:
Ora, a questão que está em causa na estória do anel de Giges é diferente da seguinte: será que não poderão dar-se circunstâncias capazes de fazer vacilar e cair até o mais intrépido dos justos?

Gláucon afirma que, dadas iguais oportunidades ao que é tido por justo e ao que é tido por injusto, ambos agirão por ambição. Mas ainda podemos perguntar: mesmo que existam pessoas justas que, podendo fazer o mal sem serem apanhadas, escolhessem fazer o bem, não poderão acontecer-lhes coisas na vida tão catastróficas que as levem a agir injustamente? (ver Simónides PMG 542)

1ª questão:
Haverá alguém que, podendo fazer o que quiser, como se fosse um deus, agiria bem e justamente?

2ª questão:
Haverá alguém que possa evitar ser mau quando as circunstâncias são extremamente más?

Note-se que a noção de "extremamente más" é indistinta e confusa. Será que perder um membro é extremamente mau? E perder um filho? Parece depender de pessoa para pessoa. De resto, seja o que for que alguém suporte pode sempre imaginar-se algo pior.



Pequeno comentário ao "Cosmopolis"

A propósito de "abundância"...

O título reflecte a junção de duas noções gregas: κόσμος e πόλις. O termo κόσμος [kósmos] significa ordem, e o termo πόλις [pólis] significa cidade-estado, cidade, conjunto de cidadãos, comunidade. O termo pólis pode ser hoje lido como Estado, apesar do anacronismo. Ou sociedade. E o termo kósmos indica-nos a ideia de Universo.
Cosmopolis significa, então, a ordem da nossa sociedade, ou sociedade de [uma determinada] ordem.

O filme Cosmopolis, de Cronenberg, pode ser analisado a partir de diversas perspectivas.

A primeira coisa a dizer é que não se trata de um filme para as massas, o que quer que isso seja. Tive o privilégio de ver o filme numa sala com mais sete pessoas e no final éramos quatro. Não se trata de um filme atractivo para quem procura acção e efeitos especiais estapafurdicamente caros!

Numa segunda leitura interessa dizer que há muito que pensar sobre o filme. Podemos ver o filme e dialogar com ele. É filme para nos fazer colocar certas perguntas.

Por isso, é recomendável a quem desejar pensar. Sobre o quê?

Podemos ler o filme como uma crítica à nossa sociedade, ao nosso sistema capitalista, à ética financeira, aos movimentos de capitais e à soberba e fedorenta acumulação pornográfica de dinheiro.

Não é o que se faz aqui. Neste texto procuramos apontar uma outra leitura, também possível, do filme.

O filme é sobre a riqueza, mais concretamente, sobre um rico. Em questão está o significado da abundância. Por baixo de cada diálogo, de cada movimento está uma singela e antiga questão: "qual o valor da abundância?"

Por isso, o filme pode ser lido fazendo caminho a partir da natureza humana, do sentido da vida e das questões envolvidas por estes grandes temas humanos.

O que é a abundância? Ora, aparentemente, a abundância é a satisfação, é saciar apetites, resolver problemas, ter a vida servida numa bandeja. Aparentemente, o protagonista tem a vida toda à mão de semear, sem problemas de maior, livre para se lançar em campanhas absolutamente idiotas, caprichos totalmente parvos, como querer cortar o cabelo do outro lado da cidade...

"O importante é saber que a cortiça está lá." A limusina do protagonista é enorme. Quando foi feita, tornaram-na à prova de bala, e à prova de som. Foi colocada cortiça. A cortiça isola o som. Mas não consegue isolar o ruído da cidade. A cidade é demasiado ruidosa. O barulho atravessa a espessa parede da limusina. Mas o importante, diz ele, é saber que a cortiça está lá.

A abundância é apenas isto: ter à disposição o máximo de possibilidades. Mesmo as mais absurdas. Ser rico é dispor abundantemente de possibilidades abertas, exequíveis. Ter dinheiro para gastar onde e como lhe apetece. Ter seguranças, ter sexo, ter bebidas, ter mulher, etc...

Há sempre pequenas coisas que não se conseguem. Casou com a mulher que quis, mas não conseguiu salvar o casamento. Tem muitas mulheres com quem fazer sexo, mas a sua mulher nega-lho. E até mesmo aquilo que lhe parecia mais garantidamente adquirido, o saber exímio relativamente às finanças, à economia, afinal teima em ser insolente, em comportar-se fora de qualquer padrão, sem esquemas prévios, à revelia das expectativas. O yuan, a moeda chinesa, sobe, e sobe, e sobe. Era impossível subir mais. "No entanto, subiu."

Depois, sempre aquelas pequenas urgências, estúpidas. Cortar o cabelo. Aquele que está na abundância quer tudo. Quer poder satisfazer qualquer desejo, mesmo e sobretudo os mais estúpidos: aqueles que só ele poderia dar-se ao luxo de ocupar-se em satisfazer. Pois, essa é a marca do rico: pode dar-se ao luxo de carregar os mais absolutamente excêntricos caprichos.

Aquele que está na abundância rodeia-se de métodos para controlar o mundo à sua volta. A abundância exige e permite isso: evitar o imprevisível, tecer uma teia de previsibilidade. Mapear o mundo. Ter um médico à disposição. Seguranças com armas accionadas pela voz. Limusinas blindadas. Um exército de servidores a mapear, a catalogar, a estilizar. Vive-se do mapeado, com o mapeado, para o mapeado. A certa altura a abundância disponibiliza um mapa tão abundante de possibilidades mapeadas que começa a parecer-se com uma prisão.

O desejo de ter à disposição o máximo de possibilidades possível leva o rico a querer, também, a possibilidade de não viver dentro dos limites oferecidos pelo mapeamento. O rico quer provar que tem à sua disposição dormir debaixo da ponte... Pois, se assim não fosse, o que o distinguiria do sem-abrigo? O sem-abrigo pode dormir debaixo da ponte, mas não pode dormir num palácio. O rico não quer, simplesmente, dormir num palácio. Ele deseja o incremento de possibilidades: ele quer poder dormir onde e quando lhe apetecer. Mesmo debaixo da ponte.

O protagonista desfaz-se do segurança e vai ao encontro do seu assassino. Quer viver fora do horizonte mapeado. Quer gozar da gentil leveza do yuan, o qual parece comportar-se como se nenhum gráfico pudesse sequenciá-lo, compreendê-lo. O rico quer ser livre das fronteiras estabelecidas pela abundância que ele próprio criou.

Mas, afinal, o que são todas as possibilidades que se tiveram, o que é toda a abundância que se tem, o que é cada movimento inesperado que se quer poder projectar no desconhecido? Por que razão o rico se deu a um trabalho colossal para mapear o mundo inteiro e agora quer apenas poder movimentar-se fora desse mapa? Será porque percebeu que há sempre coisas que nos escapam? Como o yuan na sua subida inesperada? Como a próstata assimétrica do protagonista? Há coisas que teimam em cair fora do mapeamento. Mas isso não significa que o mapeamento não seja válido. Poderia, precisamente, significar que se deveria exercer maior esforço para mapear ainda melhor, ainda mais.

Mas não. O protagonista cai numa espiral de sem sentido.

O filme começa com um capricho: o rico quer cortar o cabelo. Para isso terá de atravessar uma cidade. É um capricho que é uma afirmação: eu posso querer coisas tão parvas como isto! Para quem não está na posse de tão avantajada riqueza, esse capricho aproxima-se do non-sense.

No final o protagonista cai num buraco onde se confronta com a sua vida: meaningless. Non-sense não é o mesmo que sem sentido. Non-sense é o impertinente face ao sentido. Quando não há sentido, também não há non-sense.

De que valeram, então, todos os feitos do rico? De que vale a abundância? Na posse da abundância o rico percebe que todas as possibilidades que estão disponíveis, que são muitas, lhe são inúteis se não souber, precisamente, qual é a possibilidade decisiva. Podem ter-se muitas possibilidades e todas elas se mostrarem incapazes de satisfazer. Podem ter-se muitas possibilidades e não se saber qual delas é a que importa colher. Podem ter-se muitas possibilidades e não se ter, precisamente, aquele que é decisiva. Não porque falte ainda esta ou aquela simples possibilidade, como se houvesse ainda a fazer um incremento quantitativo de possibilidades à-mão. Não. Ter à disposição uma quantidade absurda de possibilidades pode, precisamente, colocar em evidência que não se cumpriu a possibilidade mais própria de nós mesmos.

É errado pensar que o suicídio é um acto dos pobres, daqueles que são confrontados com a dificuldade, com o fechamento de possibilidades. Mas é assim que normalmente se pensa o suicida. Pensa-se que o suicida é aquele que ficou sem emprego, sem mulher, sem filhos. Contudo, isto oculta o que está em causa no suicídio como encontro com o nada. Aquele que dispõe abundantemente, aquele que tem tudo o que pareceria necessário à felicidade, encontra-se precisamente naquele ponto em que pode confrontar-se com a evidência da absoluta incapacidade de tudo isso para dar sentido à sua vida. Não são as possibilidades que dão sentido. Pelo contrário, as possibilidades fazem sentido de acordo com o sentido previamente aberto. Se o sentido se fecha, não há possibilidade - porque, então, todas as possibilidades que estão presentes se mostram falsas. Nenhuma é A possibilidade.

Neste sentido, aquele que vive na míngua está constantemente confrontado com urgências imediatas que o ocupam. Ocupado nisso que urge não tem tempo para pensar onde vão dar todas essas desincumbências. O rico, pelo contrário, dispondo da abundância, está mais próximo da pergunta inquietante: para que serve tudo isto?

Não é só o facto de que nunca se alcança tudo. Mas sim que, ainda que a abundância seja plena ela não colmata, não sacia. A possibilidade extrema de cada um pode, pelo contrário, apresentar-se àquele que não é rico, mas que vive por um sonho. Um sonho que ele é. Um sonho de uma sombra (Píndaro).
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