sexta-feira, 26 de abril de 2013

Esquadrão 731

A propósito de mal extremo...





Médicos e cientistas retiravam os órgãos que desejavam de pessoas vivas, atadas a camas. Tiravam um pulmão, um rim, cortavam membros, ligavam e desligavam canais, uniam o esófago directamente aos intestinos, congelavam e descongelavam membros, e tudo isto sem anestesia, introduziam o bisturi na garganta e abriam até ao estômago, autopsiavam as pessoas vivas ou decapitavam-nas para testar as espadas. Estas atrocidades eram executadas por jovens que tinham estudado em universidades, seguido o curso de médicos para tratar doentes, e que sabiam que aquilo que faziam era completamente oposto a tais princípios. Depois da guerra, grande parte dos médicos e cientistas alemães foram condenados à morte, mas os médicos e cientistas japoneses foram protegidos explicitamente pelos EUA, impedindo a China de os executar, porque, conforme reconheciam os cientistas americanos, os conhecimentos e as informações conseguidas pelos cientistas japoneses eram de um valor incalculável, uma vez que nunca poderiam ser obtidas nos Estados Unidos, devido aos escrúpulos em efectuar experiências com seres humanos. Douglas MacArthur propôs que se fizesse saber aos japoneses que poderiam falar abertamente sobre as suas experiências científicas pois os seus testemunhos não seriam usados como prova de crimes de guerra.




Veja também o filme... se não for muito sensível...


quarta-feira, 24 de abril de 2013

Corpo e alma - uma religião para ateus...

A propósito de Alain de Botton - Uma Religião para Ateus


Acho muito interessante a ideia de uma religião para ateus. Simplesmente, parece-me que o ponto de partida dele é muito redutor, assume demasiado, tem um pano de fundo conceptual que assume já saber qual é o problema, sem analisar convenientemente aquilo para que as religiões apontam. Digo isto, obviamente, como ateu. Partir do ponto de vista que considera a descrição científica e utilitária como suficiente dificilmente pode levar-nos a compreender o que está de facto em falta. Ele próprio aponta para este problema, mas ignora-o. A própria forma como ele apresenta a questão, o ir à religião buscar o que nos pode ser útil, trai o pressuposto de que estamos em condições de saber o que nos faz falta no sentido mais profundo de "falta".

Um dos preconceitos que assola a maioria das teorizações ateias é o de que a descrição científica é a única. Isso implica, então, que a única forma de descrever o humano é como conjunto de células e de processos electro-químicos... Há, no entanto, vários cientistas que se apercebem que quando falamos de rãs ou de cães falamos de algo que nunca poderia ser encontrado no mundo se o nosso acesso a ele fosse primeiramente por via das células: por mais que se analise um conjunto de células ou de químicos, jamais se encontrará uma rã ou um cão. 

Paradoxalmente, são os filósofos que têm mais dificuldade em assimilar as deficiências descritivas da ciência: talvez porque o filósofo esteja sempre com medo de ser considerado um feiticeiro ou um padre. Assim, tem-se a ideia que quando se diz que o humano não pode ser descrito simplesmente como conjunto de células se está a dizer que tem de haver qualquer "coisa" como uma coisa-alma, uma substância-alma, uma coisa-em-si-alma, em tudo semelhante a qualquer outra coisa salvo nas determinações-coisais. 

Pensa-se que quando se diz que o humano não é só corpo se está a dizer que, além da coisa-corpo, o humano deve ter uma coisa-alma, e que esta coisa-alma é qualquer coisa como uma coisa-pura, uma coisa purificada das suas determinações materiais (coisais)... E com este tipo de pensamento - que é mais dos filósofos do que dos cientistas que se dedicam a pensar sobre o assunto, os quais não têm medo de serem considerados feiticeiros nem padres - pensa-se estar a destruir a metafísica tradicional, quando se está apenas a reafirmá-la: se o humano é uma alma esta é uma substância... Não lhes passa pela cabeça algo que muitos cientistas não têm pejo em admitir: o ponto está na compreensão... 

Compreender o humano como conjunto de células é claramente patológico. E admitir isto sem com isto querer dizer que há uma alma-em-si, um espírito, um céu e um inferno, uma "realidade-outra", etc., isto deve ser um desafio para quem reconhece a "necessidade" de uma religião para ateus... Não é que não se possa decompor o humano em x% de água, y% de carbono, etc... é que esse "facto", essa descrição, essa decomposição, não dá conta do humano como humano.

terça-feira, 23 de abril de 2013

O copo meio

A propósito de compreensão e sentido...


Para uns o copo está meio cheio, para outros meio vazio. Uns dizem que ainda há água, e que isso é bom. Outros, que a água se vai, e que isso é mau. Mas nestas perspectivas há uma visão de conjunto, uma visão da vida mais profunda, e que é de tal modo anterior que engloba todas as compreensões subsidiárias daquilo que aparece. No caso em apreço está pressuposto que a água é boa... mas será que não poderia acontecer que ter o copo vazio ou o copo cheio não alterasse nada de fundamental? E isso não quer dizer que não se precise de água para viver.

Há, de facto, uma compreensão profunda, que vem de há milénios, e que hoje parece estar perdida: viver não é um fim em si mesmo, não vale tudo para viver, ou, o que é o mesmo, se tudo o que vale só vale na medida em que nos permite continuar a viver, então viver não vale de nada, porque o ponto não é o que nos permite viver, mas o que nos faz viver: para que é que vale a pena viver?

Parece, no entanto, que enquanto se está ocupado a de cada vez garantir a sobrevivência não emerge tão facilmente a pergunta sobre para quê sobreviver - e isso significa que já há uma resposta em funcionamento.

Cada momento da vida é uma certa, explícita ou implícita decisão relativamente à possibilidade extrema que de cada vez acompanha cada possibilidade. Cada momento de viva é um momento em que ainda não se morreu, mas também e sobretudo um momento em que o sujeito ainda não se suicidou. Cada momento da vida é antes de mais nada uma escolha, explícita ou inexplícita. E essa escolha ninguém a pode fazer por ninguém, ninguém se pode retirar dela. A única coisa que não se pode deixar de fazer é estar perante um OU/OU...

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Mito e Logos

A propósito de Filosofia e Mito...

Hoje parece-nos estranha a associação entre mito e filosofia. Mas "mito" vem do grego antigo, "mythos" e significava qualquer coisa como "palavra, discurso, narrativa". De algum modo, através do mito, procurava-se dar conta daquilo que rodeava o ser o humano. Os mitos eram narrativas de como aquilo que o humano via tinha vindo a ser tal como era.

A filosofia, logo desde a origem, deu muita importância ao "lógos", palavra grega muito difícil de traduzir, mas que também parece assumir diversos sentidos, como "palavra, discurso, explanação". O verbo era "légô" e significava "contar" - tal como no português: contar um conto, uma estória, e contar o dinheiro que se tem, somar, juntar,... Por isso, a semelhança estava estabelecida no grego.

A filosofia também apresentava uma narrativa. De certa maneira, as palavras "lógos" e "mythos" poderiam quase considerar-se sinónimas, mas na verdade a filosofia distanciava-se imenso da narrativa que a antecedia. 

O Mito relatava relações entre deuses e deusas e outras figuras mais ou menos divinas, procurando explicar as coisas através das acções desses seres. Isso não quer dizer que o mito fosse um conto sem sentido: pelo contrário, o mito dava sentido, explicava as relações humanas e a própria natureza. De muitas formas, o mito tem uma verdade profunda acerca da natureza humana e podemos ver nele uma compreensão originária do humano acerca do mundo que o rodeia e acerca de si próprio...

Contudo, a filosofia, ao procurar outro tipo de narrativa, distancia-se do mito. Em vez de seres divinos, a filosofia procura explicar as coisas recorrendo a conceitos. No início, houve mesmo a tentação de ver nos conceitos "seres divinos". Platão falava das "formas" ou das "ideias" (que, para dizer basicamente, eram como que conceitos) de uma maneira que faria lembrar um mundo divino, por oposição ao mundo visível. Outros antes dele, como Heráclito, ou Parménides, também já tinham feito Filosofia de uma maneira que em muito se aproximava dos mitos, ou da linguagem religiosa que se exprimia por mitos. Mas a filosofia procurava justificar aquilo que afirmava, a sua narrativa procedia em sentido inverso: escavava, procurava as raízes, buscava fundamentos - ao contrário dos mitos que apresentavam narrativas mais ou menos fixadas, que não se poderiam, propriamente, investigar. Se podermos dizer que os mitos fazem crescer a "árvore", a filosofia preocupa-se, antes demais, em escavar as raízes para ver como é que elas estão, se são saudáveis ou não. E os primeiros filósofos não se importavam de cortar essas raízes caso percebessem que estavam doentes. Claro que a filosofia também quis, desde o primeiro momento, conhecer, aumentar o conhecimento. Mas a preocupação fundamental é que esse conhecimento seja sustentável, seja seguro. Se não for, deve deitar-se fora.

Progressivamente, a filosofia vai-se afastando do mito, mas este afastamento, que nós hoje chamamos "racional", não foi sempre tão evidente, nem linear. Por diversas vezes o discurso filosófico se voltou a aproximar do discurso mitológico (Plotino é só um exemplo, talvez mais conhecido, entre muitos). A filosofia, de resto, desde o início que fez uso dos mitos. Platão usava-os como "parábolas", que em grego quer dizer qualquer coisa como "comparações".

O mito tendia, no entanto, a assumir uma forma mais fixa. Era uma narrativa que vinha da tradição, transmitida e confiada a pessoas de autoridade. Muitas vezes, o mito estava escrito, na Ilíada, na Odisseia, de Homero, na Teogonia, de Hesíodo. Essas narrativas, orais e escritas, tendiam a ser aceites e transmitidas. Raramente questionadas. 

A Filosofia, por seu lado, questionava tudo para ver se aquilo que se julgava saber resistia ao teste, ou se era apenas uma miragem. Sócrates, por exemplo, questionava tudo e todos, e isso levou-o à morte - entre outras coisas, porque, de certa forma, estava também a pôr em causa os mitos que sustentavam o modo como as pessoas viam o mundo, se viam umas às outras, e se viam a si mesmas. 

Apesar das muitas semelhanças entre mito e filosofia, há também muitas diferenças entre si.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Sou-Aquele-que-É

A propósito de ordem e fogo... e ser...


(Esta) ordem, a mesma para todos, nem algum deus, nem algum humano a fez, mas era sempre e é e será fogo sempre-vivo, incendiando com medida e extinguindo-se com medida.

Heraclito, frg. 30
κόσμον (τόνδε), τὸν αὐτὸν ἁπάντων, οὔτε τις θεῶν, οὔτε ἀνθρώπων ἐποίησεν, ἀλλʹ ἦν ἀεὶ καὶ ἔστιν καὶ ἔσται πῦρ ἀειζωον,
ἁπτόμενον μέτρα καὶ ἀποσβεννύμενον μέτρα.


Cfr. Êxodo 3:1-14:
[...] ὤφθη δὲ αὐτῷ ἄγγελος κυρίου ἐν φλογὶ πυρὸς ἐκ τοῦ βάτου καὶ ὁρᾷ ὅτι ὁ βάτος καίεται πυρί ὁ δὲ βάτος οὐ κατεκαίετο [Mas apareceu-lhe o anjo do senhor numa labareda de fogo num arbusto e percebeu que o arbusto ardia no fogo mas o arbusto não se consumia].

[...] καὶ εἶπεν ὁ θεὸς πρὸς μωυσῆν ἐγώ εἰμι ὁ ὤν καὶ εἶπεν οὕτως ἐρεῖς τοῖς υἱοῖς ισραηλ ὁ ὢν ἀπέσταλκέν με πρὸς ὑμᾶς [e disse o deus para Moisés: "Eu sou aquele que é"; e disse: "Assim dirás aos filhos de Israel: «Aquele que é enviou-me até vós»"].

Sem título

A propósito da vida - desconjuntado...


Submerge-nos, por vezes, a intuição de que não se nasceu para isto, de que este mundo não é a nossa casa, de que não se está bem onde quer que se esteja. E sabe-se que isso só pode designar uma grave desadequação de mim-a-mim. E corre o mundo, e esgota-se o tempo, aproxima-se avidamente o momento das contas a acertar.

Uma profunda desadequação, ser-se inábil e não se saber ser hábil, ser-se um inadaptado

um vazio

um poço sem fundo

não saber o que fazer e saber que não há nada a fazer. Que tudo é nada e que mesmo assim há falta de qualquer coisa... o reconhecimento de que o nada do mundo não sacia, de que não dá paz saber que nada há aí para mim. Querer o mundo todo e não saber lidar com a própria roupa; querer o mundo todo e o mundo todo não bastar.

Não há grito, não há riso, não há felicidade nem infelicidade, não há um só alguma coisa que se possa dizer: sim, isso é um sentimento que vale! Não, não há.

E, no entanto, aqui estamos... E sentimos, e queremos, queremos ser, escrevemos para os outros com consciência de que de nada vale escrever para os outros e de que nada vale aquilo que escrevemos!

Vida e divertimento: o regabofe

A propósito de divertimento...


Os antigos sabiam que o divertimento era necessário à vida, mas daí retiravam o indício de que a vida não deveria executar-se em função do divertimento (cfr. Aristóteles, Ét. Nic., 1176β28-1177α1).

Mas hoje a vida é considerada por todos como uma mercadoria que cada um troca por qualquer brincadeira, desde que distraia. E nesse suposto "optimismo" cego esconde-se o mais angustiante nihilismo: o de que, na verdade, a vida nada vale senão a pudermos levar a dormir.

sábado, 13 de abril de 2013

O sentido, λόγος e a lógica

A propósito de Sentido...


O termo λόγος é importantíssimo para percebermos que: a lógica originariamente é um método de atar aquilo que de cada vez vem e vai, fica ou desaparece, ameaça ou promete na vida do humano... a importância da lógica não está na sua formalização, na abstracção de cada proposição. Não foi para isso e, sobretudo, não foi nisso que a lógica terá aparecido. A necessidade de razão é a necessidade de sentido, o λόγος é a possibilidade de ligar, de atar cada sucesso ou insucesso, cada acidente ou acontecimento, cada coisa em que o humano de cada vez se vê e se encontra, com o sentido que, de modo radical, sustenta e impulsiona o humano na vida... A lógica é, antes de mais, a lógica de cada coisa na minha vida, o sentido que tem na minha vida a morte daquela pessoa querida, o abater-se bruto de uma catástrofe, ou a fortuna de um bom sucesso, de uma execução bem conduzida ao seu termo, a sorte que não se esperava, ... Dar λόγος é reconduzir ao sentido. É reconduzir à vida...

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Morte - e suicídio...

A propósito da morte... um pequeno apontamento, de inspiração heideggeriana, sobre a inautenticidade do nosso tempo...

Por que é que não se deve ocultar a morte da vida?

O carácter de possibilidade da vida não é imediatamente evidente: a vida é o que está. E assim o indivíduo vive no modo "Eu Sou Aquele Que É”. 

Tem-se a vida por garantida. O carácter de possibilidade da morte não é evidente. Não é evidente que a possibilidade que é possibilidade de cada vez, que é a possibilidade do já a seguir e do depois e do daqui a nada é a morte - a morte que vem por capricho e pode levar qualquer um. Também não é evidente que a cada momento que se vive houve uma decisão (que não houve de facto porque não se sabia que havia uma decisão a tomar) de ficar cá, de não abandonar o barco. Enfim, não é evidente que a possibilidade mais radical de cada momento era a cada vez o deixar de ser - com um "pormenor": quando for já não mais se é. Cada coisa que se faz, cada ocupação em que se está, cada preocupação que se habita, cada ida ao café, cada vez que se assobia para o lado, cada vez que se tem de ter as forças de um Atlas - a alternativa que atravessa toda a nossa existência, que está sempre lá, é a morte. 

Mas um tempo em que a morte já foi banida, em que a vida foi desumanizada - talvez só tarde de mais se perceba que há sempre uma decisão, que a vida é, o mais literalmente possível, uma decisão: mas, se foi tarde de mais, isso só se perceberá quando já não se tem razão para decidir ficar.

É um sintoma do nosso tempo - e não da crise propriamente dita - que os suicídios aumentem com o desemprego, em Portugal e em Espanha e por todo o lado onde as lantejoulas que escondem o vazio dos corações perdem o brilho.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Ciência, senso-comum e crítica...

A propósito de ciência...


Há a ideia de que a ciência moderna representa o puro pensamento. De facto, esta ideia encontra algum repouso na “ética científica” do “posso, logo devo”. Contudo, um cuidado olhar depressa mostrará que a ciência moderna é, não o pensamento puro, muito menos a razão pura, mas sim o senso-comum (e, também, o “sensus-comunis” – o qual não se confunde com o senso-comum) que se aventura no reino da especulação… Por essa razão, a ciência não partilha da capacidade de pensamento crítico própria do pensamento ou da razão pura. É precisamente deste aspecto que a ciência moderna resgata a sua importância e o seu sucesso, na medida em que a razão pura seria a sua destruição. 

Ou seja, a razão do sucesso da ciência reside na sua ausência de capacidade crítica. Isto não quer dizer que ela não seja capaz de se rever, de se corrigir. Pelo contrário, a sua flexibilidade, o seu progresso está sustentado na sua incapacidade crítica – precisamente na medida em que a capacidade de pensamento crítico carrega consigo uma tendência suicida. 

Não importa quanto as teorias, as hipóteses, os exercícios especulativos científicos se tenham afastado da verdade e da certeza sensível de cada dia – não interessa quanto o cientista se afastou – no rebuliço do seu laboratório ou na calma dos seus computadores – da experiência do senso-comum e do sentido de realidade do “sensus-comunis” – no fim do dia, como dizem os americanos, ele regressa a uma forma de senso-comum, a uma forma de evidência e assim assegura, para a sua investigação, o sentido de realidade e a forma de objectividade.


A respeito do texto acima cfr. Hannah Arendt, The Life of Mind / Thinking, Secker & Warburg, London, 1978, p. 55ss.


domingo, 7 de abril de 2013

Estados de Direito e Totalitarismo

A propósito de Estados de Direito e do Totalitarismo...


A ideia de que a Democracia deve ser preservada a críticas é tão perigosa como a ideia de que o regime nazi era irracional.

"na sociedade industrial, a função dos capitalistas reparte-se entre um número crescente de empregados que tomam decisões. [...]" Zippelius (Teoria Geral do Estado). Zippelius mostra a semelhança enorme entre o desenvolvimento de estados de cariz estalinista, nazi e de direito... "também em Estados pluralistas a componente burocrática caracteriza a acção dos funcionários...". Max Weber mostrou que o "saber técnico" toma o poder na prática como forma de pôr à disposição os meios adequados para fins sobretudo económicos - ficando para trás o cuidado de usar um conhecimento não técnico para definir os fins... Weber mostra que definir os fins não deve competir ao "conhecimento burocrático e tecnocrático". Também em democracia se cai na "ideia errónea de que é possível dissolver as funções estatais e sociais numa administração racional no domínio puramente burocrático-tecnocrático". "O facto de também um Estado de Direito poder assumir características totalitárias só pouco a pouco entra na consciência da opinião pública", continua Zippelius. Tocqueville descreve, na "Democracia na América", o aspecto normativo da democracia que tutela todos. Além de que, como diz Weber, os parlamentos tenderem a tornar-se lugar de "demagogia ignorante e impotência rotineira" onde, aliás, só aparentemente se tomam decisões.

Infelizmente, vivemos num regime totalitário e perigoso onde, tal como no regime nazi, uma visão pretensamente racional se impõe aos homens arrancando-lhe a sua humanidade. E, tal como no regime nazi, a ilusão da justificação da racionalidade tolda as consciências relativamente aos fins dessa racionalidade. E tal como então também agora é contagiante entrar na lógica dominante. O haver vários partidos é ilusório, há dois que alternam, independentemente do que fazem ou fizeram... mas a questão não é essa, a questão é que podem existir vários partidos sem existir, de facto, alternativa... É uma boa forma de tapar os olhos... Tal como a ideia de que a Democracia consiste em ter-se o poder de votar... é apenas uma boa forma de criar a ilusão na mente de cada um de que ele conta, de que ele toma decisões....

O que é a Ética?

A propósito de ética e moral...


A Ética é, em sentido "enciclopédico", uma disciplina da Filosofia que estudo o comportamento humano - e, neste sentido, tem algumas semelhanças com a Psicologia (que é a ciência que estuda o comportamento). Mas a Ética estuda o comportamento na medida em que é susceptível de uma valorização - e neste sentido relaciona-se com a Axiologia (que é a disciplina que estuda os valores)... A partir daqui você pode encontrar imensas opiniões diferentes. Há muitas opiniões diferentes sobre o que é exactamente a Ética...

Como disciplina, pode-se dizer que a Ética estuda o comportamento moral do homem/humano. Percebe-se imediatamente que há uma relação com a Moral ou com a Moralidade e com o comportamento Moral. O termo moral vem de "mores", isto é, "costumes" - tem que ver com os costumes de certo povo, de certa comunidade. A Moral é, portanto, algo concreto. Na verdade, não se deveria falar de uma Moral, mas de morais: há diferentes morais, conforme a cultura, a sociedade, a comunidade, o grupo que se considera, mas as morais estão sempre ligadas a uma tradição e (quase sempre) a uma religião ou a uma concepção religiosa (mesmo quando uma sociedade se torna laica ela preserva o pensamento axiológico (os valores) e a mentalidade de fundo da religião.
A palavra "Ética" tem uma origem diferente. Vem do grego, de ἔθος, que significa "hábito" - e tal como o português retém o duplo sentido do "hábito" que se tem de fazer isto ou aquilo e do "hábito" que, por exemplo, o monge veste. "Hábito" é aquilo que se tem - mas no sentido de "haver". Portanto, ἔθος, "éthos", relaciona-se com o verbo latino "haver" - e este verbo retém o sentido de "ser/existir"... Neste sentido nós somos o hábito, o hábito é como uma segunda pele que nós vestimos, uma roupa que está tão fundida connosco que nós não nos apercebemos que ela lá está para ser despida. Podemos, de facto, pensar que estamos nus e estarmos muito longe de o estarmos...
Mas o grego tinha uma outra palavra que se lia quase da mesma maneira: ἦθος, "êthos" - e este termo significa qualquer coisa como "o lugar próprio". Por exemplo, o gado tem o seu lugar próprio, e nem todo o gado se guarda no mesmo curral. Cada um tem o seu lugar próprio...
Como se pode ver, a moral remete-nos para um regime de sentido que é prévio ao sujeito: quando alguém começa a pensar já só pode pensar dentro desse regime, com os instrumentos que adquiriu na cultura, na família, na comunidade em que viveu. Quer dizer, a ideia de que cada homem nasce nu faz-nos esquecer que, na realidade, quando o homem começa a pensar já está vestido com os costumes. Seja o que for que ele pense só o pode pensar com as ferramentas que adquiriu. Ninguém pode pensar fora daquilo que esse regime permite pensar - simplesmente porque não se tem como fazê-lo.
A ética, como procurei dizer acima, remete para qualquer coisa que se constrói, um hábito, portanto, algo adquirido. Neste sentido, a ética de uma pessoa pode não se distinguir da moral em que nasceu. Mas cada um possui a capacidade (quer a use quer não a use), de procurar o seu lugar próprio, em vez de aceitar simplesmente o lugar que lhe foi reservado e disponibilizado pelas instituições da comunidade, sociedade ou Estado. Desta forma, a Ética refere-se a uma investigação pessoal acerca de como cada um deve agir. Tem uma vertente concreta, específica, não só porque tem que ver com cada indivíduo, mas também porque cada pessoa tem de responder a problemas concretos com que se depara na sua vida. Mas ainda não se pode dizer que uma pessoa é ética se ela se limita apenas a resolver cada problema que lhe aparece da maneira que naquele momento lhe dá jeito. Não é a isso que se chama ética. Uma pessoa ética procura o seu lugar próprio, e faça isso de uma maneira ou de outra, por um caminho ou por outro, isso significa que procura dar uma unidade, uma consistência à diversidade das situações da vida. Por isso, a Ética normalmente está associada à investigação, à procura de princípios unificadores da conduta de cada um. E nesse sentido podemos falar de "carácter". Na medida em que cada um pode determinar o seu carácter, fazer o seu hábito, determinar-se a seguir determinados princípios, máximas ou leis de acção, podemos dizer que a pessoa assume o seu "destino", quer dizer, faz a sua sorte - sem que isso significa, de forma alguma, que se esteja menos exposto às calamidades, às tempestades ou aos acidentes. Pelo contrário, são esses acontecimentos puramente exteriores que assumem um sentido diferente, isto é, precisamente como exteriores... (mas este aspecto é complicado e não o vou desenvolver aqui)
A Ética, então, é essa procura de uma segunda natureza que, paradoxalmente, esteja mais adequada ao homem nu, ao próprio humano… e isto levanta muitos problemas, porque, então, em que sentidos é que se está aqui a utilizar a palavra natureza? Que natureza é a do humano? Quer dizer, o limoeiro não precisa de ganhar o hábito de dar limões… Ele simplesmente nasce para os dar e, se nada o violentar e não estiver, de algum modo, “degenerado”, o limoeiro simplesmente se desenvolverá cumprindo a sua natureza, que é dar limões… Mas com o humano tudo se complica. Tudo se passa como se o humano, se pudesse ser comparado a uma árvore de fruto, tanto pudesse dar limões como maçãs ou até mesmo pepinos… ninguém fica admirado quando um limoeiro dá limões, mas pode-se ficar admirado com aquilo que um humano faz… (tudo isto é complexo…)
Mas, seja como for, há um problema que não pode também ser esquecido: quando alguém procura ser ético já só pode conduzir essa investigação dentro de uma determinada maneira de pensar, com determinados instrumentos, etc… quando alguém procura tornar-se uma pessoa ética já só o pode fazer partindo de uma determinada moral concreta. Não parece haver como fugir a esta necessidade…
Finalmente, em Filosofia a Ética tornou-se essa disciplina que estuda estes problema e que, de algum modo, procura saber que hábitos deve o humano ter… claro que os filósofos não dizem as coisas nestes termos. O filósofo procura saber quais são as máximas que todos deveriam seguir, o que é certo e o que é errado, etc… Mas o problema da Ética não é principalmente este ou aquele problema, mas sim regras unificadoras do comportamento humano. E isto volta a relacionar-se com o que se entende por “humano”. Porque o que parece estar em causa na ética é “cumprir” o humano, é ser-se humano, ou tornar-se plenamente humano, ou como quer que se diga. Assim, há com certeza éticas racionalistas, éticas comunitárias, éticas (mais ou menos) “individualistas”, … Etc…

sábado, 6 de abril de 2013

O Altruísmo

A propósito de altruísmo...


Ora bem, usa-se falar de altruísmo quando alguém funda o seu comportamento no outro (alter, alterum). Explicitamente, o altruísmo consiste em fazer o bem aos outros, pelos outros. Subjacente está, claro, o amor-próprio. A ideia de que no altruísmo há uma negação de si, ou do amor próprio, não resiste ao exame. Na verdade, o altruísta "realiza-se" no outro. Ao ser-para-o-outro ele obtém satisfação. 

O verbo "realizar" é bem aplicado aqui, porque "realizar" deriva do latim "res", que significa "coisa". Realizar é "fazer coisa". Realizar aponta para a noção de completude, e é isso que as pessoas entendem por altruísmo, pois desejam completar-se nesse "ser-para-um-outro". No entanto, isto já coloca em evidência um conjunto de mal-compreendidos que podem ocorrer. Antes de mais porque aquilo que conhecemos como "algo completo" são, habitualmente, as coisas do mundo que nos rodeiam, sobretudo as coisas que fazemos. É assim que dizemos que completámos uma tarefa, que acabámos uma casa, que terminámos um exercício. Mas esta compreensão corre o risco de ser enganadora porque tem subjacente a possibilidade de lidar com o humano ao modo dos entes mundanos. Ou seja, assume à partida que o sujeito é como uma casa, uma obra, um exercício que está em processo de construção, que esse processo é externo, como no caso da casa à qual se vão juntando peças até, finalmente, se encontrar concluída. Mas se aplicarmos essa imagem ao humano, então temos que admitir que só quando morre é que o humano está completo. Portanto, isto chama a atenção para uma consideração inautêntica do humano porque o que cada um refere quando diz que se sente "completo", ou "mais completo", não é nada do género "morri". Não. No caso do humano é o contrário. Quanto mais completos estamos mais vivos nos sentimos e na verdade mais coisas temos para fazer. Nunca estamos mais completos do que quando sentimos que temos à nossa disposição possibilidades de execução. Ora, uma casa está completa precisamente quando não há mais nada a fazer...

Por outro lado, quando se diz que o altruísta vive em função do outro esquece-se que, se analisarmos bem, é precisamente o contrário. O altruísta retira o seu sentido, o seu prazer, a sua "felicidade" precisamente do outro. Na verdade, se o altruísta não tivesse outros para ajudar, provavelmente ou se suicidaria, ou teria de arranjar outra coisa para fazer. Na verdade, na maioria das vezes, o altruísta simplesmente é altruísta como poderia ser outra coisa qualquer. Assim como uns encontram o seu sentido na carreira, outros encontram no “outro”, e isto parece ser suficientemente aleatório para podermos dizer que o altruísta pode ser tão alheado, tão inautêntico como o egocêntrico que só pensa em si. 

Além disso, o altruísta acaba por usar o outro para-si. O outro é como um instrumento que o altruísta usa para se sentir bem, para estar de consciência tranquila, para se conseguir perdoar a si mesmo de algo que fez de errado, ou simplesmente para “comprar” um lugar no céu ou no paraíso.

Estas considerações feitas atrás não significam, no entanto, que o “altruísmo” é errado ou imoral, como se estivesse aqui a afirmar que fazer bem aos outros é pecado… Aquilo para que eu quero chamar a atenção é que, na verdade, aquilo que se faz expressamente tanto pode ter um sentido como um outro sentido. Ou seja, o altruísmo pode ser uma opção autêntica de alguém, pode-se ser autenticamente altruísta – ou, inversamente, pode-se ser altruísta em fuga de si mesmo, pode-se ser com os outros apenas porque não se consegue estar consigo próprio…

Este assunto é muito complexo. Envolve diversos temas e exigiria um estudo cuidado sobre a natureza do humano – que, obviamente, não pude fazer aqui…

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Participação (ou boa participação)

A propósito de desafios à Democracia...


Um dos grandes desafios à Democracia: a alienação. 

Não só porque as pessoas se divorciam paulatinamente da política profissional (situação potenciada pela mentalidade que reduz a participação ao voto), como também porque podemos ver surgir em alguns países democráticos para que os votos se concentrem em candidatos à margem dessa política oficial - e esta atitude pode ainda ser descrita como alienação (não sendo, por isso, o votar ou não votar que deve ser definido como factor fundamental de responsabilidade ou compromisso do cidadão). 

De resto, pode-se perguntar até que ponto as pessoas se manterão alienadas da política quando esta as instrumentaliza (na figura do "contribuinte", ou qualquer outra), defraudando as suas aspirações humanas (que não cabem no mecanismo do funcionalismo) - até que ponto as pessoas acatarão, sofrerão, aguentarão a sua instrumentalização antes de começarem um processo de "insurgimento" (cujas consequências não são necessariamente democráticas)? (como parece ter sido o caso da Alemanha de Hitler - quer dizer, e para acabar, o problema não é só como tornar os cidadãos em cidadãos participantes, mas também em que a sua participação seja uma participação "esclarecida", ou melhor, uma "boa participação") 

Na Alemanha, as pessoas acabaram por, numa situação de desemprego avassalador, darem o seu voto a Hitler (mesmo que se diga que Hitler usou meios de "persuasão" algo violentos, isto não justifica a subida registada por um partido que não ia além de pouco mais de 2%...), e depois numa situação de "pleno emprego", deram das mais variadas formas o seu consentimento, o seu apoio, passivo, mas também activo, às políticas nazis...

O materialismo e a realidade

A propósito de materialismo...



Quando se diz que o materialismo não explica a realidade, não se quer dizer que há "coisas" não materiais como espíritos, "almas", fantasmas, forças ocultas... Essa interpretação segundo a qual ao negar-se a capacidade do materialismo para dar conta da realidade humana se está a falar de "coisas" ocultas como almas penadas e fantasmas já é uma interpretação materialista...

Dizer que o humano não é só corpo não tem de ser o mesmo que afirmar que um indivíduo é constituído, por um lado, por um conjunto de células e, por outro, por uma "alma" concebida como "uma coisa" imaterial: esta interpretação já é uma interpretação materialista... O nosso mundo é tão materialista que interpreta tudo o que cai fora do seu âmbito como mais de si mesmo...

A realidade vai muito além daquilo que o materialismo pensa ser a realidade... aliás, a própria estirpe de pensamento a que o materialismo pertence já é apenas uma forma de pensamento que pertence a um tipo mais geral... ou seja, o materialismo é apenas uma interpretação limitada, dentro de uma compreensão também limitada que é o utilitarismo... O utilitarismo já é uma compreensão limitada, e dentro do Utilitarismo, que já é limitado, há uma outra coisa ainda mais limitada que é o materialismo... de tal modo que é possível não se ser materialista e ser-se tão limitado como os materialistas...

Dito isto, obviamente é possível encontrar materialistas honestos, com pensamentos profundos - mas esses não só são poucos, como os seus seguidores escangalharam ou esqueceram os ensinamentos dos seus mentores...
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