sábado, 27 de outubro de 2018

O homem concebido como se fosse um cão

A propósito da ideia segundo a qual é o professor que tem de motivar os alunos

Concordo completamente com a posição defendida por Carlos Fiolhais neste artigo de jornal.

Mais: parece-me que a principal razão (havendo, naturalmente, outras) para os alunos hoje andarem tão desmotivados é precisamente esta "modernice" de terem de ser os outros a motivá-los. Eles próprios já interiorizaram isto e, portanto, sentem que a responsabilidade à partida não é deles. A responsabilidade foi-lhes retirada. Não lhes compete esforçarem-se: só têm de esperar que os outros os motivem. Se não estudam porque não lhes apetece, a responsabilidade não é deles; se não estudam porque não gostam da matéria, a responsabilidade não é deles. Sabem muito bem que a responsabilidade será posta no professor: se o aluno não estuda porque não gosta da matéria a culpa é do professor que não o motivou.

Pobre concepção de "humano" que subjaz a esta "modernice". É conceber o humano como se ele mais não fosse do que um "cão de Pavlov".

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Determinismo físico e liberdade ética

A propósito dos estóicos

No âmbito físico, os estóicos conceberam um mundo rigidamente determinado. Mas no âmbito ético defenderam que a liberdade é a única característica que diferencia o homem dos outros entes.

O carácter dogmático do ponto de vista da lógica

A propósito de Lógica e Filosofia



Fichte distingue o ponto de vista da filosofia do ponto de vista da lógica.

Mais, procura mostrar que estes são dois pontos de vista opostos. 

Ainda mais, que a influência extraordinária da lógica na cultura prejudica a filosofia, dado que os pressupostos dogmáticos da lógica levam a que as questões propriamente fundamentais da filosofia não sejam compreendidas: não é que tais questões estejam para além da compreensão humana, mas sim que a lógica, pelo seu carácter dogmático, identifica-se a si mesma com o ponto de vista humano, reduzindo este a um ponto de vista lógico, como se houvesse uma identidade perfeita entre ponto de vista lógico e ponto de vista humano; assim, a lógica declara como incompreensível tudo aquilo que ela mesma não compreende; por isso mesmo - dizemos nós - constitui um ponto de vista dogmático.
A questão central aqui é a de saber qual é o carácter fundamental do nosso ponto de vista humano.

sábado, 20 de outubro de 2018

A banalidade de não querer saber

A propósito de despolitização





A despolitização é uma característica daquilo a que Arendt chamava banalidade. Cria-se uma sociedade da banalidade. Então, a característica desta sociedade é que nela tudo - qualquer conteúdo - pode ser banalizado. A banalidade do mal está sempre presente como possibilidade, e se por acaso é o bem que se banaliza isso não deriva do conteúdo (de ser bem), mas do acaso (de circunstâncias que não dependem do facto de o conteúdo ser "bem" ou "mal", de modo que quer fosse um, quer fosse outro, qualquer um se poderia ter banalizado)... A banalidade destrói o significado das diferenças entre conteúdos (como já antes de Arendt dizia Kierkegaard, numa sociedade deste tipo a opinião de um marinheiro bêbado vale o mesmo que a do mais distinto dos homens, a opinião de leigo vale tanto como a de um bispo, e a opinião de um ignorante vale o mesmo que a de um especialista, porque tudo se tornou uma questão de opinião, e todas as opiniões valem o mesmo.
Não há apenas despolitização, mas também desmoralização, e não apenas desmoralização, mas também falta de estética, e etc., etc. Quer dizer, cria-se um ambiente cuja característica fundamental é a indiferença - e só porque essa é a característica essencial, de fundo, é que depois qualquer coisa se pode tornar o "assunto do dia", ou o "acontecimento da semana", ou a "opinião pública", ou a "tendência do eleitorado" - que, depois, também rapidamente pode mudar para o extremo oposto. Numa semana, Lula ganhava, mesmo preso; na outra ganha Bolsonaro. Como se nada se passasse. Arendt diz que o fenómeno de a Alemanha Nazi, depois da guerra, se converter instantaneamente numa democracia e voltar aos valores tradicionais com tanta facilidade é o mesmo fenómeno que permitiu que anos antes milhões transitassem da República de Weimar para o Nazismo sem dificuldade. De certo modo, os alemães, na sua maioria, não eram nazis. Como Eichmann não era realmente nazi, mas era responsável pelo programa de extermínio. Ele próprio sempre disse que não ligava nada para a política: foi uma oportunidade de emprego, e foi eficiente porque queria ser um bom funcionário e ter uma carreira de sucesso.

Trump no Montana e outras estórias

A propósito da natureza humana


Então Trump foi ao Montana dizer que quando um dos seus apoiantes deu uns sopapos num jornalista pensou "é pá, isto é capaz de ser mau para a sua campanha", mas depois logo reconsiderou: "ah, isto foi no Montana: até é capaz de o favorecer". E tendo dito isto, o público, gente do Montana, aplaude e ri-se.
Eu nem sei bem quantas camadas de ironia se sobrepõem neste episódio! Ainda falam da falta de cultura de Trump. A capacidade de Trump para as figuras de estilo suplanta os mais extraordinários escritores. Onde é que encontramos em Eça uma ironia com este nível de densidade??? Trump vai muito à frente!

Mas Trump revela, mais uma vez, aquilo que eu temia: ao contrário do que supõem muitos intelectuais, Trump conhece muito melhor a realidade Americana, e a realidade do povo, do que os intelectuais e classe dos comentadores.
Já perdi a conta àqueles que num momento ou noutro declararam que "não, as pessoas não votam nele por apoiarem a violência, ou por serem racistas", ou que "não, não, as pessoas não querem o que ele diz, apenas confiam que ele diz mas não faz".
Mas Trump, que não se deixa iludir com parvoíces pseudo-rousseaunianas, conhece muito melhor as pessoas do que os analistas. Trump não presume, como presumem os comentadores, que as pessoas do Montana são basicamente anti-violência e que iriam castigar nas urnas um candidato que desanca um jornalista!!! Trump sabia muito bem que as pessoas adoram esse tipo de espectáculo, e não só não condenam uns sopapos bem dados num jornalista, como logo se disponibilizariam para revesar o candidato e darem elas mesmas uns sopapos no jornalista.
Trump também não presume, como presumem os comentadores, que as pessoas do Montana não gostariam de ser vistas como adoradores de sopapos!!! Pelo contrário, ele diz na cara das pessoas do Montana que acha que elas são do tipo de pessoas que ficam contentes quando um candidato dá uns sopapos num jornalistas, e as pessoas do Montana acham piada e aprovam que o presidente fale com elas nestes modos familiares.

Trump sabe muito bem - como já sabiam Freud, Nietzsche, e até Schopenhauer - que o ser humano tem uma afinidade natural com a violência. E tem uma afinidade especial com o espectáculo, com a publicidade - porque, como dizia Kierkegaard, o humano tem uma tendência natural para ser "público". Ou, como dizia Heidegger, o humano, no início e na maioria das vezes, é "das Man". Como sabiam Óscar Wilde e Fernando Pessoa, o ser humano tem tendência para ser "a gente". O sujeito prefere ser "a gente" do que ser ele mesmo, quanto mais não seja porque sendo "a gente" pode-se ser o que quiser, sendo nada.
E Trump sabe todas estas coisas para as quais muitos, desde há muito, nos tentam alertar. Mas a classe dos comentadores de hoje, desde os jornalistas aos "especialistas políticos" e passando pelos intelectuais, esqueceu ou desconsidera essas lições profundas que encontramos em Freud, Nietzsche, Schopenhauer, Kierkegaard, Heidegger - porque o intelectual de hoje só acredita que o cidadão pode votar livremente num ditador, ou num fascista, ou num racista, depois dele ter ganho... e mesmo assim ainda tentará mostrar que, na verdade, as pessoas não queriam votar em Trump, ou em Bolsonaro, ou já agora em Hitler, foram mas é enganadas...

Nisto tudo tiro o meu chapéu a Trump: tem menos preconceitos do que muitos daqueles que o acusam de ser preconceituoso; e parece perceber muito melhor como funciona o ser humano do que todos os comentadores juntos.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

A democracia e outros regimes

A propósito de democracia...

Não penso que a democracia é um dogma. A democracia não constitui uma verdade auto-evidente, nem deve ser considerada a forma definitiva da política. Penso que a fórmula correcta continua a ser a de Churchill: "a democracia é o pior dos regimes, à excepção de todos os outros".


A democracia não é um regime perfeito

Na verdade tem muitos defeitos e vícios, possibilidades de deturpação e corrupção. O objectivo da política não é, nem deve ser, a democracia. A política é um meio para outro fim (o fim da política não é a política; a política pela política não existe: queremos a política porque precisamos dela para outra coisa). Portanto, a democracia é um meio, não é o fim. Julgo que estamos já em erro se supomos que a democracia é um fim em si mesmo esquecendo que ela é um meio de que nos servimos. Ora, como tudo aquilo de que nos servimos podemos usá-la para o bem ou para o mal. Podemos usá-la para nos enriquecermos a nós mesmos, ou para procurar melhorar as condições dos nossos concidadãos, erradicar a pobreza, etc. Podemos usá-la para um conjunto significativo de objectivos, alguns deles são melhores do que outros.


Todos os outros regimes conhecidos são piores

Agora, o facto de a democracia não ser perfeita e de ter muitas perversões não significa que devamos adoptar alternativas com defeitos ainda mais graves. Pelo menos, sabemos que os outros regimes conhecidos até ao momento já se revelaram ainda piores do que a democracia no passado. Sabemos isso. Podemos não o querer saber. Podemos omitir certos aspectos negativos dos outros regimes para sobrevalorizar as suas vantagens, mas os outros regimes só conseguem aparecer como vantajosos omitindo aspectos significativos. Por exemplo, podemos considerar que o Nazismo foi extraordinariamente eficaz a resolver problemas económicos e de desemprego, e é verdade que teve um desempenho fantástico nesses domínios; mas para considerar o regime nazi melhor do que a democracia é preciso omitir que matou milhões de judeus e deflagrou uma guerra mundial; ou então é preciso arranjar uma boa teoria da conspiração que simplesmente negue tudo isso. Ou seja: o Nazismo só consegue aparecer como preferível numa consideração global para quem seja ignorante, fanático, psicopata ou de facto pense que certas "raças inferiores" devem ser eliminadas. Para todos os outros, os que não são ignorantes, nem fanáticos, nem psicopatas nem pensam que os judeus devem ser eliminados, o Nazismo não parecerá uma alternativa preferível à democracia numa perspectiva global, depois de pesados todos os prós e os contras. Por isso é que a democracia é o pior dos regimes, à excepção de todos os outros: sempre que se consideram os outros regimes acabamos em algo ainda pior. A democracia é, por isso, uma espécie de resposta por exclusão de partes: os outros são piores.


A democracia não é o fim da história

Pensar que a democracia é o fim da história parece-me ser não perceber nada de história. Aquilo que a história nos tem mostrado desde sempre é que coisas que num momento nem sequer se imaginavam se vêm a tornar a ordem estabelecida. 
Portanto, pode acontecer que se inventem regimes melhores, mais eficazes, preferíveis à democracia, mas sabemos que essas soluções não se encontram dentro do leque das opções do passado, pois essas já se revelaram piores do que a democracia. Por isso mesmo, havendo alternativa melhor do que a democracia, esta ainda terá de ser inventada. Recorrer ao fascismo, ou às ditaduras em geral, é apenas estupidez. Ou estupidez, ou ignorância. Ou banalidade (cf. Arendt). Em qualquer destes casos - estupidez, ignorância, banalidade - raramente, para não dizer nunca, sai algo de bom daí.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

O ser-se filósofo

A propósito do filosofar...


sempre em nós um modo de compreender em funcionamento, um conjunto ideal que permite reconhecer o mundo de uma determinada forma. Esses pressupostos estão já em vigor quando formulamos uma questão e a importância de cada questão, o modo como lhe respondemos e o critério para decidir o que é uma resposta própria à questão depende desses pressupostos. Este é o B-A-Bá antropológico, o facto de precisarmos sempre de ter, e de termos sempre , um regime de sentido em vigor, seja qual ele for. Nascemos nus, mas quando damos connosco estamos já sempre vestidos de alguma maneira, e é muito difícil distinguir esta roupa de nós mesmos, pois ela torna-se como que uma espécie de "segunda natureza", como diziam os medievais.

Não estou certo, contudo, de que isso signifique, em algum sentido, que todos somos um pouco filósofos. Suponho que dependa daquilo que se entenda por ser filósofo, mesmo que seja só um pouco. Parece-me que começamos a ser um pouco filósofos quando reconhecemos as vestes que trazemos e colocamos a hipótese de que poderíamos trazer outras, de modo que é preciso encontrar alguma justificação para envergar aquelas que envergamos.

Neste sentido, somos todos um pouco filósofos na medida em que todos nós, num ou noutro momento, por um ou outro motivo, nos sentimos inquietos e suspeitamos que "tudo poderia ser de outra forma". E, "neste sentido", a suspeita, a dúvida, a melancolia, a ironia e até mesmo o desespero são muito mais filosóficos do que a atitude plácida e serena perante o mundo que se limita a apontar para o rosto que as coisas insistem em "mostrar-nos". E, também "nesse sentido", somos todos um pouco filósofos, porque provavelmente nunca existiu um sujeito que nunca tenha sido afectado por esse tipo de inquietação, de mal-estar e de desassossego...

Quer dizer, o ser filósofo, mesmo que só um pouco, parece-me não ter tanto que ver com todos nós possuirmos alguma metafísica, alguma epistemologia e alguma ética, mas sim sobretudo com a atitude de colocar isso em questão. O ser-se filósofo não parece ter tanto que ver com já ter algumas respostas, mas sim com o de colocar questões onde pareceria já termos respostas.

Depois, é claro, há formas mais ou menos espontâneas, mais ou menos sistemáticas de ser "um pouco filósofo"...
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