quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

a palma da minha mão

A propósito do princípio de isotropia do ponto de vista humano.





O indivíduo julga assim: se conheço a palma da minha mão esquerda, então conheço o Universo inteiro!

Bem, não duvido desse "se". Mas, até que ponto conheces realmente a palma da tua mão esquerda?

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Saber . Existir .

A propósito de conhecimento...

E se todo o conhecimento do mundo tiver como função o sujeito iludir-se a si mesmo?

O ser humano que viveu nos confins de uma floresta antiga sem saber nada do mundo tinha mais ou menos à sua disposição a possibilidade fundamental de ser autêntico?

Se a autenticidade é o decisivo - qual é a importância de todo o conhecimento, de todas as comodidades, de toda a civilização tecnológica? 

Não pode o humano confundir-se de tal maneira com a tecnologia que julga já não poder existir sem ela?

O humano é capaz de conhecer o mundo inteiro só para se encontrar, e de consumir o mundo para existir. E depois?


O sujeito que já viu o Evereste conhece-se melhor? O sujeito que tem o mundo a seus pés vive melhor? - o ponto de vista estético está-nos na carne


Como é que se pode vir a saber o que quer que seja? Não pode.

Só há duas hipóteses: ou já se sabe, e então é um saber tautológico (dedução); ou não se sabe ainda, e então nunca se pode vir a saber (indução, analogia...).

Podem-se acrescentar as provas que se quiser, mas se é preciso prova, então nunca se chega a saber.

A prova é uma aproximação - tipo o Aquiles atrás da tartaruga: nunca a provaalcançará a certeza, o saber, o conhecimento certo.

Se se quer mesmo dizer que se veio a saber alguma coisa mais, então o sujeito teve, em algum momento, DECIDIR dar o salto e dizer: "ok, já chega, agora acredito".

O saber ou é tautológico, ou é crença. A crença dá-se por um salto. A parte da aproximação sucessiva por meio de provas é o aspecto ilusório da coisa!

Isto é relevante do ponto de vista existencial - e não apenas para a ciência...

Como Kierkegaard muito bem viu, perceber isto é existencialmente decisivo...

O que é uma ilusão? O que é que se sabe? Quantas das coisas que dizemos saber foram aprendidas? Quanto do nosso mundo foi uma aprendizagem?

A dialéctica da honestidade

A propósito de honestidade e autenticidade

É qualquer coisa assim: (a análise fenomenológica em Kierkegaard tem de ser sempre dialéctica - isto é, não se pode determinar uma categoria sem a referência a uma outra - e sem, no limite, uma referência à estrutura fundamental do humano)

Do ponto de vista da autenticidade, quando o sujeito pensa que é honesto, então está a ser hipócrita - não há outra hipótese, se pensa que é honesto é hipócrita;
quando pensa que não está a ser honesto, pode ser que tenha ou não vencido a hipocrisia, mas isto só pode ser analisado dialecticamente - de onde se segue que

- quando pensa que não está a ser honesto, e não está a ser honesto, ele ainda se está a enganar e apenas diz que sabe que não é honesto para descansar a sua consciência, quando o decisivo não é admitir que não se é honesto, mas sim ser honesto; logo, do ponto de vista da autenticidade, ele está a ser hipócrita consigo mesmo;

- quando pensa que não está a ser honesto, e está a ser honesto ao dizer isso, então o decisivo já não é o que ele pensa que é, mas aquilo que ele está a fazer por vir a ser e, neste caso, ele com certeza não sabe se está ou não a ser honesto e, se portanto pensa que não está a ser honesto, isso significa que, no fundo, ele sabe que ainda havia mais alguma coisa no seu poder que poderia fazer e não faz, de maneira que, justamente porque é honesto quando diz que não é honesto, ele ainda está a ser desonesto; logo, do ponto de vista da autenticidade, ele está a ser hipócrita consigo mesmo.

Do ponto de vista da honestidade, quando o sujeito é autêntico, ele não sabe se é honesto.

A Autenticidade não se resume à Honestidade - apontamentos

A propósito de autenticidade e honestidade

Complicado. Kierkegaard é complicado...

Então: um sujeito é um sujeito real, e é um sujeito ideal. O sujeito é um sujeito existente e também pensa que é um certo sujeito.

O sujeito ideal está comprometido pela hipocrisia natural ao ponto de vista. Tem uma tendência natural para se enganar a si mesmo, sobretudo para se enganar quanto ao que ele é. Ora, isto não é uma característica exclusiva dos políticos ou dos padres, como uma certa leitura de Kierkegaard poderia dar a entender. Isto é assim connosco. Quando Kierkegaard diz que há uma hipocrisia natural no humano não está a dizer isso só das figuras públicas e de sucesso - mas de todos os homens.

Então basta ser honesto para se ser autêntico? Bem, não. Não basta. Não basta porque o que quer que eu pense que eu sou isso é, justamente, o que eu penso que sou. Por mais honesto que eu seja - isso sou eu a pensar que estou a ser honesto! O sujeito não sabe, de facto, o que ele mesmo é. O sujeito diz "eu sou isto" - e aqui está a hipocrisia. Quando ele diz "eu sou isto", o "isto" é o seu "eu ideal". Mas se ele diz "eu sou", está a querer entender que o "isto" é o "eu real". Mas onde está o "isto" que ele diz que é senão nas suas ideias? Em lado nenhum. Quando é que alguém consegue pensar alguma coisa senão por ideias? Nunca. O que é então "isto" que o sujeito diz ser? É um conjunto de ideias do sujeito acerca de si mesmo - e por muito honesto que ele esteja a ser relativamente a estas ideias, o sujeito real é outra coisa... Então como sair daqui? Bem, não se sabe... Mas presume-se que o sujeito real é o sujeito que existe - e, este "existe" não tem nada que ver com ideias, com teorias sobre como é fantástico que o sujeito pense e logo exista. Este "existo" quer dizer que tem uma vida. Portanto, não se sabe o que o sujeito real é - mas o ponto é exactamente esse: a autenticidade, seja o que for, tem de ter que ver com a existência, isto é, tem que ter que ver também com o que se faz.

Agora: se o sujeito pensa que é uma boa pessoa, isso é um pensamento, mas interessa que ele seja uma boa pessoa. Ser uma boa pessoa tem que ver com o ser uma boa pessoa. Pensar que se é uma boa pessoa não ajuda com isto.

O problema é: mesmo a honestidade não garante que já se esteja a ser honesto (justamente porque o sujeito não tem um acesso imediato a si). Ora, isto é um paradoxo. E o ser paradoxo é uma indicação de que deve ser assim. Senão, vejamos: o que é ser-se honesto? Será isso eu estar convencido de que estou a ser honesto?

Eu penso: estou a fazer tudo quanto posso! Mas justamente isto já é hipocrisia: "estou a fazer tudo quanto posso"??? E quando é que eu sei que estou a fazer tudo quanto posso? Saber isto - este saber, justamente este saber, é a hipocrisia!

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

o eu esquizóide

A propósito de cisão interna...

Os relatos dos psicanalistas acerca dos seus "paciente" são reveladores. Um sujeito vai ao psicanalista e confessa que trata a mulher como se fosse um cão e o resto das pessoas como se fossem objectos - e sabe que o faz, e sabe que isso está mal, porque foi por isso que resolveu ir ao psicanalista.

O psicanalista percebe que há uma cisão interna ao sujeito. À primeira vista parece que não há uma cisão porque o sujeito comporta-se de uma maneira e sabe que se comporta dessa maneira (o que é diferente daquele sujeito que trata mal a mulher mas não o reconhece).

Mas há uma cisão. Aquilo que o sujeito faz e aquilo que o sujeito pensa que deve fazer estão em contradição. No caso do sujeito que não o reconhece, como não o reconhece, não percebe que há uma contradição, mas a contradição está lá. Mas no caso do sujeito que o reconhece, então torna-se evidente para o próprio sujeito que há uma contradição, que está a ser X mas que quer ser Y - e como não o oculta para si mesmo, a contradição torna-se evidente na consciência. Mas, então, surge uma nova contradição: o sujeito sabe que deve alterar o modo como trata a mulher, mas não o faz. Há sujeitos que reconhecem isto, mas depois pensam que não há mal nenhum nisso. Pensam que, como sabem que estão a fazer mal, de algum modo já estão a ter consciência. Há imensos relatos de pessoas que disseram isto nos julgamentos de Nuremberga... A pessoa faz um mal que reconhece como mal, e como reconhece isso como mal assume que ela é diferente dos "verdadeiros nazis", que ela própria é, afinal, alguém que está a fazer o mal porque não tem outra hipótese.

Mas o sujeito que vai ao psicanalista e reconhece que a forma como trata a mulher está errada, e reconhece que o decisivo é deixar de tratar a mulher dessa forma (e não apenas reconhecer que a trata mal) - este sujeito tem uma cisão interna muito mais profunda, de certa forma ele é muito mais culpado do que todos os outros que não reconhecem que estão a fazer o mal, mas por outro lado este sujeito, que é o mais culpado de todos, é também o que está mais próximo de se "curar": porque admitiu que há uma cisão e que quer resolver esse conflito de si consigo e já percebeu que o seu verdadeiro obstáculo é ele mesmo.


O que eu não percebo é por que, depois de análises tão profundas, os psicanalistas caiem no ridículo e atribuem estas cisões internas a coisas como uma orientação precoce para os peitos, ou coisas parvas deste género!!!

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A tentação...

A propósito de tentação...

A tentação é um problema bicudo. A tentação é diferente do engano e da ilusão.

Uma pessoa que é enganada adere a algo porque pensa que "X é bom" e o facto de se ter enganado expressa uma alteração posterior NO SUJEITO, uma alteração pela qual o sujeito passou a pensar que "X é mau". Não houve nenhuma tentação (pelo menos, directamente).

Uma pessoa que é iludida adere a algo que pensa que "é X", mas que mais tarde percebe que "é Y", ou vem a pensar que "é Y". O que parecia ser X já era Y, mas as suas características de Y foram, de algum modo, esbatidas e confundidas com as de X. Não houve nenhuma tentação (pelo menos, directamente).

Uma pessoa que é tentada está num estado mental completamente diferente. Não é enganada nem iludida e, embora possa existam modos mistos, a tentação enquanto tal não ilude nem engana e enquanto engana ou ilude não é tentação. Uma pessoa é tentada quando sente afinidade com algo que pensa que "é errado". A tentação enquanto categoria não é um factor cultural. Porque a tentação não está no X, nem no Y, não está nisto ou naquilo. Se um homem pensar que comer o inimigo é uma coisa boa e o come, pode estar enganado, mas não foi tentado. Mas se um homem sabe que não deveria deitar um papel para o chão, e o faz porque é mais fácil, porque não é muito importante ou porque não está ninguém a ver - então ele foi tentado. Se um homem sabe que comer o seu inimigo é errado e o come, não interessa quantas desculpas ele tenha, nem interessa se o seu povo o faz todos os dias há milénios - ele foi tentado.

A tentação, portanto, indica o seguinte: o humano tem uma afinidade com o mal.

inocência

A propósito de inocência

A inocência cora perante o indecente. Mas se é inocência, então cora de quê?

Se cora da indecência, então tem uma concepção do bem e do mal, a culpa está presente - e não é inocência. Se fosse inocência não tinha por que corar. O aborígene que anda nu não cora da nudez, como é evidente, porque para ele não há mal nenhum nela. É, portanto, inocência relativamente à nudez - a nudez é para ele uma forma de andar vestido.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Um paradoxo da reflexão...

A propósito de reflexão...

Paradoxo: a imersão do sujeito no seu próprio pensamento, o sujeito desaparecer da reflexão. É um paradoxo porquê? Porque a reflexão é a forma da lucidez - ou a lucidez é a forma da reflexão.

Então como é possível a imersão na reflexão? Há uma reflexão imediata. E há uma reflexão em diferido. A reflexão em diferido introduz opacidade. A reflexão imediata já é em diferido, e o facto de ser imediata é o reflexo de ser em diferido. No imediato não há reflexão, a reflexão implica mediação. A reflexão imediata é, portanto, uma reflexão que não se reconhece como reflexão, que não sabe que é mediação. A reflexão imediata é uma tradução que pensa ser o original. Mas, então, se a primeiro reflexão já é opaca, e a reflexão seguinte introduz mais opacidade, quando é que há transparência?

A categoria do gosto é a imersão

A propósito de imersão

Pois é! Supõe-se, habitualmente, que os homens gostam das coisas porque elas os instam a pensar! Poder-se-ia pensar que ninguém acreditasse que uma pessoa se sentisse atraída por algo não por causa da coisa mas porque a coisa faz pensar... No entanto, é frequente ouvir coisas destas: "ah, e gostamos deste quadro porque ele nos faz pensar", ou "o homem gosta de admirar arte porque esta o faz pensar e lhe permite viajar no pensamento"...

É um equívoco. O que o homem primeiro admira é aquilo em que pode absorver-se, desaparecer. A categoria do gosto é a IMERSÃO.

Portanto, sempre que alguém pergunta a um sujeito por que é que ele gosta disto ou daquilo e ele começa a arranjar justificações percebemos que entrou em funcionamento mais uma ilusão, porque o homem não quer admitir que gosta sobretudo daquilo em que ele mesmo pode desaparecer. E isto é tanto assim que até mesmo o pensamento se pode tornar um processo em que o sujeito desaparece - e podemos confirmar isto sempre que alguém fala de si impessoalmente, fala da vida inumanamente, fala do homem desvitalizadamente! O pensamento de um homem pode ser a maior prova de que ele não gosta de pensar, e que abomina tanto pensar que até quando pensa desaparece do seu próprio pensamento.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A auto-ilusão da reflexão

A propósito de auto-ilusão...


Habitualmente, pensa-se assim: uma pessoa, com esforço, é capaz de adquirir algumas coisas na vida, mas não pode ter tudo e tem de aprender a viver com isto. Isto é o habitual, o imediato, o vulgar. É um mal-entendido pensar que o homem comum está de tal modo iludido que o seu problema é que acredita que pode ter tudo! É um mal-entendido ainda maior pensar que o homem comum está convencido de que quer tudo. Onde se viu um homem que quer tudo? Bem, viu-se nos livros e ouviu-se na palrar do senso-comum acerca de si mesmo. No dia-a-dia o homem vulgar não se quer atirar aos leões, e quando se quer atirar aos leões não é porque também quer dançar na discoteca! O homem vulgar (nós, no dia-a-dia) tem uma dialéctica binária: quer umas coisas e não quer outras.

O difícil e pouco habitual é pensar que uma pessoa não é capaz de adquirir nada por si, mas que é capaz de abdicar de tudo pelas suas próprias forças. Isto é o mais difícil porque habitualmente habita-se uma dialéctica binária e este pensamento, para ser realmente apropriado, exige um terceiro termo: a consciência de si.

Portanto: o fácil é pensar que uma pessoa é capaz de algumas coisas; o difícil é perceber que não se é capaz de nada. No momento seguinte a termos pensado isto entra imediatamente em funcionamento a dialéctica binária que nos induz a acreditar que ainda agora fomos capazes de escrever isto mesmo - e logo se perde a apropriação do decisivo.

Portanto: o fácil é uma pessoa contentar-se com o que tem; o difícil é perceber que a única coisa que se pode fazer pelas próprias forças é abdicar de tudo. No momento seguinte a pensarmos que somos capazes disso entra imediatamente em funcionamento a dialéctica binária que nos lembra que não queremos realmente deixar abdicar das coisas importantes que temos na vida, das pessoas que nos são tão fundamentais, das coisas que só com esforço fomos capazes de adquirir, etc., etc.

Mas dizer que uma pessoa não sabe isto é um mal-entendido. O homem comum (nós) escolheu há muito deixar ignoradas as verdades mais profundas acerca de si mesmo, e com isso vive e vai vivendo.

Apontamentos, consciência - em Kierkegaard

A propósito de consciência - em Kierkegaard

Pode acontecer que o sujeito saiba o que deve fazer, mas que esse saber se inclua na parte de si que ele prefere ignorar. Pode acontecer que o dever seja qualquer coisa deste género... e que qualquer reflexão sobre a ética constitua, precisamente, um modo activo de resistir a confrontar esse inconsciente voluntário.


A oposição tradicional e antiquíssima entre razão e paixão consiste neste equívoco: pensar que as paixões são tentação e a razão é a salvação.

A razão É uma paixão. A razão é uma tentação.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

O que há de errado com as fórmulas éticas em geral?

A propósito de fórmulas éticas em geral

Qualquer compreensão que assigne ao ser humano uma tarefa essencial é perversa - isto é, é essencialmente perversa, o que quer dizer que, se for levada até às últimas consequências resulta numa catástrofe ética. Pode-se fazer o teste com alguns dos chavões que andam por aí: "os homens têm o dever de procriar", "os homens têm o dever de trabalhar", "os homens têm o dever de contribuir para a sociedade". Nota: de passagem, note-se que estas fórmulas são de tal ordem que a sua aplicação rigorosa é pensável em simultâneo com a utilização de meios não éticos e desumanos (por exemplo, para aplicar a regra de que os homens devem procriar podem-se usar métodos coercivos, formas de pressão, etc.).
Há algumas que, aparentemente, resistem a este teste. Estas são as tarefas que, embora estejam apresentadas na forma afirmativa-positiva são, quanto ao seu conteúdo, imperativos-negativos. Por exemplo: "os homens devem ser honestos" - que expressa uma proibição geral (e não uma indicação do que se deve fazer em concreto). Estas fórmulas negativas diferem das tarefas positivas (tipo "os homens devem procriar") porque a sua universalização totalitária não leva per se ao colapso ético. O que acontece com as fórmulas negativas é que é perfeitamente possível cumpri-las integralmente e, ainda assim, não ter uma única acção ética em toda a vida, desde que tenha a sorte de a vida não apresentar dilemas éticos tipo "bem-mal".
Em resumo: qualquer fórmula que generalize um dever particular só pode ser, quanto ao conteúdo, positiva ou negativa. Se for positiva, o seu próprio desenvolvimento levará, se for aplicada sem reservas, necessariamente à violação de mandamentos concretos da consciência. Se for negativa, o seu desenvolvimento permite que nunca se viole e, mesmo assim, nunca se faça nada por dever em toda a vida.
O que é a generalização? É que de um caso particular em que a minha consciência me ordena que faça X eu induzo que é "sempre dever fazer X".
O que é a violação de um mandamento concreto da consciência por intermédio da aplicação de uma generalização? É que, num caso particular em que a minha consciência me proíbe de fazer X, há uma fórmula que me ordena que faça X e eu decido seguir a fórmula em vez do mandamento concreto.
O mandamento concreto da consciência é o juízo ético imediato da consciência anterior à reflexão. É, portanto, uma intuição ética.

Não ser capaz de nada

A propósito das capacidades dos homens...

A visão do senso comum acerca do que um homem é capaz de fazer é falha em apropriação.

O que habitualmente se tem a dizer acerca da capacidade não tem realmente que ver com ser essencialmente capaz, mas com o acessório.

Por exemplo. 

Um homem que vive numa floresta remota onde lhe falta a pedra de qualidade faz a sua casa modestamente com madeira. A ideia de fazer um palácio de mármore parece-lhe imprudente porque, como ele sabe, não tem pedra de qualidade para fazer um palácio de mármore. Por isso ele sabe que não é capaz de fazer um palácio de mármore e fica muito contente com a sua casa de madeira. Mas falta-lhe uma compreensão em profundidade das suas capacidades reais. Porque, essencialmente, ele é capaz de fazer um palácio de mármore - ou pensa que é essencialmente capaz de fazer um palácio de mármore - se, pelo menos, tivesse o mármore.

Outro homem vive onde há pedra em abundância, mas falta-lhe o talento para trabalhar a pedra e, por isso, faz uma casa de madeira - ou, se tem dinheiro para isso, paga a quem a faça por ele. Em qualquer dos casos, ele admite que não é capaz de fazer um palácio de pedra porque lhe falta o talento. Mas falta-lhe uma compreensão em profundidade das suas capacidades reais. Porque, essencialmente, ele é capaz de fazer um palácio de mármore - ou pensa que é essencialmente capaz de fazer um palácio de mármore - se, pelo menos, tivesse o talento.

Outro homem tem dinheiro, mármore e madeira e tem também muito talento, força de vontade e saúde - e tudo aquilo que se lhe quiser atribuir humanamente. Esse homem pode construir um edifício enorme em mármore, com muitas salas e varandas, etc. Constrói o edifício com as suas próprias mãos, aproveitando o seu talento e o mármore de que dispõe. No final ele compreende que é capaz de fazer um palácio e aponta para o facto de que o fez como prova disso. Mas falta-lhe uma compreensão em profundidade das suas capacidades reais. Porque, essencialmente, ele é capaz de fazer um palácio de mármore - ou pensa que é essencialmente capaz de fazer um palácio de mármore - e a circunstância de o ter feito é simplesmente acidental.

Finalmente, um quarto homem, sábio e culto, dirá que as pessoas têm capacidades muito distintas e extremamente variáveis: há umas capazes de tanto e outras de tão pouco, no entanto toda a gente é capaz de alguma coisa e por isso cada um deve aprender, pela experiência e conhecimento, a reconhecer os seus limites e a ficar dentro deles. Mas falta-lhe uma compreensão em profundidade das suas capacidades reais - ou das capacidades reais do humano. Porque, essencialmente, para ele, toda a gente é capaz de tudo, desde que tenha as condições para isso.

De facto, o que é difícil é perceber que o humano não é capaz de nada no mundo. O que é difícil é compreender o que significa isto: que o humano não é capaz de nada. Que nada está no poder do humano - excepto, o ser humano. Os homens não são capazes de nada - senão de ser humanos, e que isto é o essencial, que isto é tudo o que importa. Perceber isto, compreender isto - apropriar o sentido profundo disto: isso é o mais difícil, o mais difícil de tudo. E é tão difícil porque, antes de mais nada, não se deseja compreender: sempre que se começa a pensar sobre isso, sempre que se começa a fechar portas, a querer entender o que significa este "nada", e este "ser capaz", há uma porta ainda ignorada, um caminho ainda não visto, uma desculpa nova que vem em nosso auxílio para nos dar a sedutora e ilusória ideia de que somos capazes, pelo menos, de alguma coisa.

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Cfr. Kierkegaard, Postscriptum
But on Sunday, yesterday, the priest said that a human being is incapable of anything at all and we all understood it. When the priest says it in church, we all understand it, and if anyone wanted to express it, existing, and be seen to do so in the six days of the week, we would all be on the point of thinking: he is mad.
(tradução de Alastair Hannay)
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