sábado, 28 de dezembro de 2013

Pode cada indivíduo salvar-se a si mesmo - ou está dependente de outra coisa?


A propósito de Cristianismo, em Kierkegaard...



O ponto é que cada ser humano deve ser igualmente capaz de ser si mesmo, consciente de si e existir autenticamente. Eticamente, tal habilidade é pressuposta - embora não possa ser qualquer coisa de que a pessoa ética se ocupa, pois o ético não precisa de aceitação ou confirmação externa para fazer o que a sua consciência dita. Religiosamente, o mais alto é comum a todos os humanos e cada indivíduo está sujeito ao mesmo rigor não sendo um favorecido em relação a outro, nem por qualquer acidente externo nem por qualquer talento. Se identificamos dificuldades acrescidas devido a aspectos circunstanciais, resultantes do contexto ou das capacidades do indivíduo, isso apenas significa que não se percebeu ainda qual é, de facto, a tarefa.

O problema, portanto, não surge na ética, nem na religiosidade - o problema surge no Cristianismo - enquanto pertencente à esfera do religioso, mas enquanto esfera própria da fé e do paradoxo. Embora o Cristianismo - não enquanto doutrina, mas sim enquanto "modo" em que se vive - se caracterize por apresentar-se, justamente, como o mais alto que a todos é comum - e que exige a todos o mesmo rigor, de tal modo que nem o rico, nem o mais inteligente estão em vantagem perante o pobre ou o menos inteligente, nem mesmo um homem que nasceu num país cristão e foi baptizado é mais facilmente cristão do que alguém que nasceu pagão e veio a encontrar o Cristianismo - embora a dificuldade seja igualmente árdua para cada indivíduo, na verdade surge como toda uma nova esfera, diferente mesmo do religioso não cristão, que é a imposição da condição pelo deus que veio a ser no tempo. E esta nova esfera - que se caracteriza por esta doação da condição pelo deus - cria, de facto, uma clivagem circunstancial - que não se verifica na religiosidade anterior, nem na ética... e assim, este problema não pode deixar de interessar ao filósofo - embora o cristão propriamente dito não lhe possa prestar qualquer atenção (e se lha presta já revela que não é um cristão - tal como o filósofo que a discute já mostra assim que não é cristão) e o problema é, pois, este:

"A felicidade vinculada a uma condição histórica exclui todos os que estão fora da condição, e entre estes está a quantidade imensa de todos aqueles que estão excluídos através, não de uma falta própria, mas pela circunstância acidental de o Cristianismo não lhes ter sido ainda proclamado.”
Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 508

“Uma vez que a relação com esse evento histórico (o deus no tempo) condiciona a consciência do pecado [a consciência mais viva de si], não poderia ter existido consciência do pecado durante todo o tempo anterior a esse evento histórico [o que implica que não poderia ter existido a forma mais definida e especificadora de consciência de si mesmo].”

Kierkegaard, Postscriptum Conclusivo Não-científico, VII, 509

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