quinta-feira, 24 de agosto de 2017

O ensopado de Lobo Mau

A propósito das estórias de antigamente

A versão dos três porquinhos anterior à da Disney é muito diferente. Nessa versão mais antiga os dois porquinhos mais preguiçosos, o da casa de palha e o da casa de madeira, não sobrevivem, pois, após lhes haver destruído as casas, o lobo faminto come-os. Depois de comer os dois primeiros porquinhos, o Lobo Mau, ainda com fome, tenta invadir a casa de cimento do terceiro porquinho entrando pela chaminé. Mas o porquinho já o esperava com uma grande panela de água a ferver na fogueira. O lobo, escorregando pela chaminé, não tem como escapar, cai dentro da panela e acaba cozido. Então, o último dos porquinhos come o lobo à refeição. Nesta versão mais antiga, o Lobo Mau vira comida e o porquinho mais esforçado e prático dos três irmãos não deixa desperdiçar uma boa carne.

A Capuchinho Vermelho

A propósito das estórias de antigamente


Regra geral, as versões dos Grimm são bem mais sangrentas e cruas do que as versões actuais insossas e sem espírito. Mas a história da Capuchinho Vermelho contada pelos Grimm já é uma versão muito "politicamente correcta" da mesma. Nas versões mais antigas não havia lenhador. Na verdade, a Capuchinho Vermelho nem sequer usava um capuchinho vermelho... O Lobo Mau matava a avó, não a engolia ainda viva. Mais: o Lobo, depois de matar a avó, tirava-lhe o sangue para uma jarra e cortava-a às fatias. Quando a Capuchinho chegava, o Lobo dava-lhe o sangue e a carne da avó a comer, como se de vinho e carne vulgar se tratasse. Depois desse episódio canibalesco, o Lobo pedia à Capuchinho que se deitasse nua com ele. As perguntas eram bem diferentes, nada de "porque tens olhos tão grandes?"... À medida que a Capuchinho se despia, ia perguntando o que fazer com a peça de roupa despida e o Lobo mandava que a jogasse na fogueira. Além disso, a Capuchinho apenas observava que a avó era bastante "peluda", com "ombros largos", em tiradas com suposto teor sexual, até que, finalmente, notava os "grandes dentes" da avó. Depois desta última observação, com a Capuchinho já nua, o Lobo comia-a e pronto. Não havia lenhador - tópico acrescentado pelos Grimm - para salvar ninguém. A história acabava mesmo assim com a avó comida e bebida pela neta, e a neta comida pelo Lobo, uma verdadeira lição de vida sem lenhadores míticos ou salvamentos mágicos.

Estado de Graça

A propósito de Estado de Graça

Nos tempos idos da Santa Inquisição, quando os monges do Santo Ofício chegavam a uma terra reuniam com a população na igreja da vila. Durante um mês os pecadores eram convidados a admitirem as suas faltas passíveis de configurar heresia. Quem se confessasse durante esse período livrava-se, pois encontrava-se em estado de graça, sendo habitualmente perdoado sem consequências de maior. Essa benevolência não se verificaria findo o estado de graça podendo os réus ser condenados, inclusivamente, à morte na fogueira depois de períodos de tortura.

O ónus da prova

A propósito de Presunção de Inocência


Durante séculos os tribunais presumiam a culpa dos réus. O problema desses tribunais "inquisitivos" é que abrem a porta a que os inocentes sejam condenados por não terem forma de provar a sua inocência. Num tribunal que presume a culpa não se aplica a noção de que "se fores inocente não tens nada que temer". Eram assim os tribunais do Santo Ofício, mas também os tribunais seculares até há bem pouco tempo. É fácil verificar os excessos a que esses tribunais eram levados quando podemos tomar em consideração casos como o das bruxas de Salem. Por isso, é certo que a presunção de inocência permite que alguns criminosos não sejam condenados quando a culpa não pode ser provada. Mas, de qualquer modo, a presunção da culpa é, claramente, mais perniciosa, porque, por princípio e definição, permite que os inocentes sejam condenados sempre que não forem capazes de provar a própria inocência.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Kant - antropologia moral

A propósito de Felicidade e Dever

O respeito pelo outro e tal são, precisamente, limites... é a definição de ética. Como Kant dizia, a felicidade é o fim último subjectivo e o dever é a condição formal de todos os fins... Ou seja, ao contrário do que diz Aristóteles, a felicidade não é o fim último em si mesmo, porque se fosse, então tudo aquilo que faríamos teria a obtenção de felicidade como critério. No entanto, nós somos capazes de identificar situações em que aquilo que me traria felicidade não deve ser feito.

Kant acreditava que o humano estava cindido ente dois desejos: o de felicidade, e o de dignidade. O problema, segundo ele, é que aquele que objectivamente é superior (porque lhe reconhecemos validade universal, pelo menos, se Kant está certo), é simultaneamente aquele que é subjectivamente mais fraco (porque o móbil da felicidade - as diversas paixões - é mais forte do que o móbil da dignidade - o sentimento de dever)... Daqui resulta que para que uma pessoa viva eticamente tenha de, primeiro, conseguir intervir na sua própria constituição subjectiva, formando um carácter (a capacidade de se fixar em máximas)... Isto, evidentemente, é aquilo que ninguém se lembra de fazer, porque como se sabe a vida externa ocupa-nos demasiado tempo, de modo que só quando estamos para morrer nos lembramos que poderíamos ter sido melhores pessoas.

Os revolucionários de sofá

A propósito daqueles que são revolucionários enquanto palitam os dentes

Há quem critique Maduro por ser demasiado democrata e pacífico, pedindo mais violência, mais acção da parte do Estado, achando que o melhor seria Maduro começar a "despachar" todos os que se lhe opõem! Acho perfeitamente normal que um sujeito pense assim, mas se o pensa e debita enquanto está sentado no sofá, a palitar os dentes, a gozar das férias, já me parece estranho.

É que um sujeito tem a tendência a ser tão mais revolucionário quanto o possa ser enquanto palita os dentes! Há uma deslocação reflexiva completa: o sujeito vive a sua vida real pacatamente no meio do consumismo, tem o seu ordenado, a sua carreira, uma família, um sofá - e, simultaneamente, pede no facebook que o Maduro estripe os que se opõem à revolução, exige sangue e tece extraordinárias reflexões como só com acção se faz revolução - sendo que o excelente sujeito que, provavelmente, não levantou o cu do sofá o dia inteiro, entende que acção é sinónimo de violência, que só aquele que, pelo menos, matou alguém realmente age.

Até percebo a coisa, mas só acrescentaria uma coisa: que o excelente revolucionário deixe o seu sofá e rume à revolução. Enquanto estiver a palitar os dentes no sofá que se remeta ao silêncio, porque falar e escrever no facebook é apenas uma forma de aliviar a tensão e não fazer nada.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

O Admirável Mundo Novo que a Eugenia nos reserva

A propósito de eugenia e felicidade

Imagine-se a seguinte sociedade.
Esta sociedade faz uso da tecnologia que lhe permite editar o ADN com facilidade e acuidade.
Assim, todos os indivíduos são editados para nascerem com determinadas inclinações, tendências e propensões.
Esta sociedade gere perfeitamente as suas necessidades, quer a mão-de-obra, quer a de recursos. Assim, tem bem determinadas as suas necessidades.
Antes de nascer cada indivíduo é alocado a uma função, a uma posição, a um local social, conforme as necessidades previamente identificadas.
Antes de nascer cada indivíduo é editado para querer fazer exactamente aquilo a que foi alocado, de tal modo que a função que lhe foi atribuída corresponda à sua maior paixão e àquilo que lhe proporciona realização pessoal.
Isto é assim com qualquer função, mesmo se um indivíduo acumula diversas funções (por exemplo, funcionário de uma repartição e pai de família).
Nesta sociedade, nunca ninguém está insatisfeito com aquilo que lhe caiu no lote, pois foi programado para querer fazer exactamente isso.
Suspenda-se - para efeitos de problematização - a questão de saber se tudo isto seria efectivamente possível do ponto de vista técnico, ou se haveria sempre alguma falha, alguma necessidade a mais. Suponha-se que tudo quanto se disse era de facto cumprido.
Há algum problema com esta sociedade? Qual?

O humano e os três porquinhos

A propósito de casas


O ser humano é assim como os porquinhos da história! Porque aquilo que o humano quer é estar a salvo do lobo. É por isso - só por isso - que o humano quer uma casa solidamente construída sobre fundamentos seguros, com paredes robustas e telhados resistentes.

Mas o ser humano - que precisa sempre de ter uma casa - quer construir a própria casa gastando o mínimo possível, cansando-se ainda menos e, sobretudo, sem se preocupar muito com o assunto, porque se há coisa que o aborrece é preocupar-se. É por isso - e só por isso - que constrói uma barraca de feno.

Conclusão: o porquinho quer estar a salvo do lobo. Mas é uma questão dialéctica perceber até que ponto ele quer de facto uma casa sólida ou uma casa de feno. É certo que ele julga querer uma casa de feno, fácil e cómoda. Mas também é certo que aquilo que ele quer acima de tudo é estar acoitado quando o lobo vier!

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Senso-comum e bom senso

A propósito da diferença entre senso-comum e bom senso


Há várias definições que se aplicam a estes dois termos, sobretudo, se recorrermos aos filósofos.
Em geral, eu diria que o "senso-comum" se caracteriza pelo recurso a conhecimentos em vigor numa dada comunidade. É uma forma de conhecimento que tem como critério a colectividade e que se caracteriza pela incorporação: é um saber viver que os indivíduos apropriam e que se torna natural neles. Por isso, torna-se espontâneo no homem formado (adulto).

Aparentemente, o "bom senso" não pertence ao âmbito do conhecimento - ao contrário do senso-comum, mas ao âmbito dos sentidos/sentimentos. Ou, mais correctamente, é uma forma de julgar - como o juízo de gosto, ou o juízo moral, parece haver também o bom senso, um modo de sentir a situação, de discernir e julgar particulares. Ter bom senso não é saber algo, mas julgar de determinada maneira. Parece, no entanto, que tem alguma coisa que ver com o senso comum, porque aquilo a que se chama bom senso é, habitualmente, reconhecível como tal quando o juízo de alguém é reconhecido como "razoável", "bom", "adequado" numa determinada situação pelos elementos de um grupo ou colectividade (por isso, aquilo que é bom senso aqui pode não o ser na China, ou na Arábia, como qualquer pessoa que já tenha passado por esses países poderá dizer)... Ou seja, o senso comum parece ser uma espécie de saber adquirido, nomeadamente, um conjunto de normas e de critérios vigentes numa comunidade, enquanto o bom senso parece ser a boa aplicação dessas regras, dessas normas, desses critérios. Por isso o bom senso não pode ser, propriamente, ensinado, pois não há regra para a aplicação de regras. Assim, a mera detenção de senso-comum não habilita, imediatamente, um sujeito a julgar com bom senso - daí que tendamos a distingui-los e, até mesmo, a considerá-los muito diferentes. Mas, no fim de contas, são duas faces da mesma moeda - embora possa acontecer que se tenha uma sem a outra.

Do conflito entre a discriminação positiva e meritocracia

A propósito de justiça e educação


Parece-me que o critério do historial do aluno, nomeadamente, das suas notas, deve ser progressivamente dominante na atribuição de vantagens ou determinação de preferências. Isto porque o sistema de ensino deve incentivar os bons alunos e que os alunos se tornem bons alunos. A igualdade no acesso não deve ser confundida com a desvalorização do esforço dos alunos. É só perfeitamente natural que os alunos que mais se esforçam sejam recompensados; tal como é natural que aqueles que têm menos capacidades sejam ajudados a suprir essas dificuldades. As duas dimensões têm de ser consideradas para evitar desequilíbrios que jamais poderão conduzir à justiça.
Mas acho extraordinário que se ache normal que um encarregado de educação displicente e um aluno absolutamente indiferente aos estudos fiquem chocados com o facto de o bom desempenho ser um factor a ter em conta... Já agora, convém relembrar que a escolaridade também serve para preparar os alunos para um dia se integrarem no sistema em que terão de apresentar resultados e mostrar competência, e onde eles mesmos vão querer ser avaliados pelas suas competências e pelos resultados do seu esforço - pois, como eles próprios irão verificar, sempre que o seu esforço não for reconhecido, sempre que trabalharem para apresentar resultados e, depois, alguém seja preferido por ter nascido assim ou assado, sentir-se-ão altamente injustiçados. Ora, se as pessoas sempre querem ver os seus esforços recompensados, por que razão têm tanta dificuldade em aceitar que sejam prejudicados por não terem resultados a apresentar? Se o sujeito que se esforça, trabalha, estuda e tem boas notas deve ser recompensado, isso tem de implicar sempre uma vantagem. E se a ausência de resultados não releva realmente de falta de esforço, mas de menores capacidades, então o Estado também tem de oferecer recursos para suprir essas dificuldades e, no limite, recorrer à discriminação positiva: mas note-se, só e apenas se a ausência de resultados se dever, de facto, a um deficit de capacidades ou a incapacidades reconhecíveis, e não ao mero "deixa andar que a escola também não serve para nada" que tantas vezes já ouvi - que estou farto de ouvir - e que não deve, de modo algum, ser incentivado.
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