A propósito de admiração
O espectáculo a que se tem votado a morte de Mandela é uma aparência. É uma ilusão.
Tem-se realçado severamente a excepcionalidade de Mandela, e isso é admiração e a admiração é imaginação. As pessoas imaginam que entenderam Mandela que existiu e fez isto ou aquilo, cumpriu este ou aquele feito espectacular, se comportou desta ou daquela maneira excepcional, e é aqui que reside a ilusão: no imaginar que tudo isso são factos históricos que caracterizaram um grande homem que nos suscita admiração - e esta admiração é que é ilusão. A pessoa de Mandela é transformada numa excepção que se admira por ter sido um grande homem, e que aquilo que ele fez o fez porque era excepcional, um homem como os outros não são: um homem como Eu não posso ser - e é aqui que reside a ilusão. A admiração é a ilusão pela qual Eu me isento de ser como ele foi, porque o "como" dele já foi petrificado na realidade dele como marca da distância dele a mim: eu não faria o mesmo, mas está tudo bem porque, afinal, ele era um grande homem e eu sou insignificante. Que Mandela é um homem excepcional, que portanto ser um homem excepcional não está ao alcance de todos, que seguir a própria consciência está reservado apenas a uns seres humanos que volta e meia surgem no Planeta, eis a ilusão, eis a aparência, eis a auto-ilusão, a desculpa que dou a mim mesmo para não ser nada como ele.
Na admiração de Mandela cada um isenta-se, cada um aplaude - mas não concebe realmente a realidade ética de Mandela como uma possibilidade sua. A consciência de Mandela deveria ser excepcional, ele deveria ser um ente diferente dos demais, qualquer coisa que não era deste mundo - e ouvimos de facto as pessoas dizerem coisas como estas... Tal como o procurador que acusou Mandela lhe disse que se sentia mal com o seu trabalho por ter de o acusar: mas Mandela, para fazer o que fez, teve que arriscar tudo - o procurador admirava aquele ser que estava à sua frente, à sua mercê, esse ser excepcional que arriscara a vida, que estava em risco de perder a vida por ser capaz de seguir a sua consciência, e o procurador sentia admiração por esse ser tão excepcional com o qual, evidentemente, não se poderia comparar... arriscar como Mandela arriscara não era, para o procurador, evidentemente, uma possibilidade...
A admiração que podemos ter por Mandela, por Sócrates, por Jesus - esta admiração é justamente a ilusão, porque enquanto admiramos pessoas que viveram e existiram nas suas possibilidades, mas as admiramos justamente enquanto pessoas reais, não concebemos que a realidade dessas pessoas seja uma possibilidade nossa, precisamente porque as consideramos excepcionais. As vidas reais das pessoas reais que admiramos enquanto tendo sido sujeitos históricos dignos de admiração não são concebidas como possibilidades nossas, porque não temos a seriedade necessária para levar a sério as suas vidas na medida em que são pessoas históricas e reais. Mas só quando as suas vidas são concebidas como possibilidades nossas, isto é, só quando não deixamos adormecer a nossa consciência na ilusão de que a realidade dessas pessoas se deveu a qualquer coisa de excepcional nelas, a algum talento, a alguma diferença, talvez uma alma mais robusta, um espírito mais musculado - só quando se desfaz a ilusão de que connosco não se trata de seguir a nossa consciência tal como eles seguiram - só então entendemos que essas vivas não são factos, mas sim possibilidades existenciais, possibilidades autênticas que também nós - essencialmente nós temos disponíveis. Cada um está apto a ser ético - o ponto decisivo não está nas diferenças. Transformar o sujeito ético num facto histórico e seguir explicando as suas acções psicológica, biológica, biograficamente - é uma ilusão...
Outra ilusão - embora de tipo diferente - é a de tomar o sucesso de Mandela como prova de sua grandiosidade moral. O seu sucesso não prova nada - e não tivesse ele alcançado sucesso, tivesse ele morrido antes de ser reconhecido, tivesse ele sido esquecido, isto seria indiferente, isto seria acaso. É uma imoralidade julgar que a história julga eticamente ou que a moralidade será sancionada historicamente.
Outra ilusão é julgar que o talento de Mandela para conquistar as pessoas é prova de alguma coisa... já deveríamos saber que as pessoas com talento para conquistar outras são da mais diversa espécie. Mesmo que toda uma geração, toda uma época se renda a uma personalidade, ainda assim nada é posto eticamente - e o inverso mantém-se válido, a saber, que mesmo que uma pessoa não convença ninguém pode estar certa, pode ser justamente a única que age eticamente. Ignorar este facto é imoral e com certeza não é ético.
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