sexta-feira, 20 de outubro de 2017

A política, o poder e o carácter

A propósito de poder e carácter


Nothing discloses real character like the use of power. It is very easy for the weak to be gentle. [...], but if you wish to know what a man really is, give him power. This is the supreme test.
 Robert G. Ingersoll, The Exchange Table, True Greatness Exemplified in Abraham Lincoln, 1883


Tradução:
«Nada revela o verdadeiro carácter [de uma pessoa] como o uso do poder. É muito fácil para o fraco ser meigo. [...], mas se queres saber o que um homem é realmente, dá-lhe poder. Este é o teste supremo».


Cf., o episódio do anel de Gyges, na República, de Platão.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Sexta-feira treze e os cátaros

A propósito do azar da sexta-feira treze

Como todas as superstições, parece difícil traçar até à origem a crença de que a sexta-feira treze é um dia particularmente azarento. De facto, misturam-se muitos mitos e histórias.

Por um lado, o próprio número 13 já está marcado por uma carga negativa. Na nossa cultura, parece ter pesado especialmente que na última ceia estivessem 13 indivíduos à mesa: os doze, mais Jesus.
Mas isso não explica a carga da sexta-feira.

Por outro lado, Jesus parece ter sido morto numa sexta-feira, o que pode explicar a negatividade associada à sexta-feira.

No entanto, estes aspectos, verdadeiros ou não, parecem não explicar a conotação da sexta-feira treze.

Ora, já faz parte da cultura popular associar a origem desta superstição ao episódio que condenou os Templários ao desaparecimento. De facto, a 13 de Outubro de 1307, sexta-feira, a Ordem dos Templários foi declarada ilegal. Perseguidos, torturados e executados, este acontecimento pode ter marcado a mentalidade das pessoas que viram uma ordem tão poderosa ser incapaz de escapar ao extermínio por meios violentos e cruéis.

Mas, aparentemente, a sexta-feira treze já estava negativamente marcada quando os Templários foram ilegalizados. Aliás, os episódios mais cruéis e marcantes da perseguição aos Templários não sucederam nessa sexta-feira, mas depois disso.

No entanto, foi numa sexta-feira, dia 13, de maio de 1239, que pelo menos 183 cátaros, homens e mulheres, foram queimados, às mãos da Santa Inquisição, na Champanhe. O episódio foi o primeiro de uma série de atrocidades e massacres, dos quais o de Montségur é o mais conhecido. E esse episódio ocorreu numa sexta-feira treze em que 183 cátaros foram queimados. Apesar de este acontecimento ter, de algum modo, caído no esquecimento popular, parece ter deixado uma ideia clara nas mentalidades: que a sexta-feira treze não é dia de boa sorte. Ideia que pode ter sido fortalecida por outros acontecimentos posteriores, como a perseguição dos Templários, tal como por outros acontecimentos e crenças anteriores, tal como o número de pessoas à mesa da última ceia de Jesus.
Assim - ou de outra maneira semelhante - se constroem mitos e superstições.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Pensamento positivo na narrativa da felicidade

A propósito da narrativa da felicidade



Uma narrativa enche hoje cada recanto da mentalidade padrão. Somos viciados na felicidade e na busca da felicidade. Quando não estamos a tentar mostrar ao mundo que o mundo não nos atinge, quando não estamos a tentar mostrar aos outros e a nós mesmos que ainda somos felizes, estamos a ler livros de auto-ajuda de um qualquer guru, seja actor, seja desportista, filósofo de pacotilha ou psicólogo de sofá. Ou então a devorar estudos científicos recentes que partem do princípio que todos aspiramos à felicidade e que todos devem querer ser felizes, ou a fazer uma festa para não fazer o luto, ou a beber para não pensar, ou a pensar para não sofrer. Ou então estamos a tomar antidepressivos, porque se não estivermos sempre felizes com certeza já não estamos vivos, não somos dignos de usar o tempo de vida. Nunca como hoje se acreditou tanto e tão cegamente no poder transformador do "pensamento positivo"... ao contrário de uma outra "evidência", já hoje esquecida, assassinada e cremada na gasolina da adrenalina do "parar é morrer" moderno, que era a certeza de que nada tem tanto poder para manter as coisas como sempre foram, para arrastar e adormecer do que, precisamente, o "pensamento positivo".

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

O estético como estádio natural do homem

A propósito do estádio estético


É muito comum os comentadores de Kierkegaard - sobretudo, os não especializados - descreverem o «estádio estético» como aquele em que «o homem se abandona à busca pelo prazer imediato». Esta descrição não é, de todo, apropriada. É certo que o prazer desempenha um papel importante no estádio estético, mas se fosse o prazer a característica definidora do estádio em causa (transversal a todas as suas desformalizações), então este chamar-se-ia «estádio hedonista», e não «estádio estético». Também não se trata apenas de haver nele a procura imediata da felicidade, caso em que se chamaria «estádio eudemonista».

Ou seja, não se deve confundir o estádio estético enquanto tal como uma, ou algumas das suas modulações, desformalizações possíveis, ou categorias. O prazer e a felicidade imediata são, de facto, duas categorias muito importantes no estádio estético, mas não é por isso que esse estádio se chama estético, nem é isso que o define como tal. O estádio estético é estético, precisamente, por ser «estético», no sentido técnico do termo: porque a exclusão das alternativas tem valência estética; ou, por outras palavras, porque as decisão tomadas pelo sujeito seguem as tensões de perseguição e de fuga imediatamente constituídas no sujeito.
Ou seja: aquilo que caracteriza a vida da maioria de nós, ou, talvez, de todos nós - é isso que define o estádio estético, o qual corresponde, para Kierkegaard, ao estado do «homem natural», àquilo que cada homem pode ser simplesmente em virtude daquilo que já encontra naturalmente constituído em si.

Ora, como a maioria de nós está neste estádio, quando tenta descrever o estádio estético, tem a tendência a defini-lo apenas por uma desformalização possível dele. Porque a maioria de nós dificilmente tem ângulo de visão para as alternativa ao estádio estético, ou seja, para os estádios ético e religioso, no sentido que Kierkegaard lhes atribui.

Por isso é que o estádio estético é o "estádio em que o indivíduo humano se encontra no início e na maioria das vezes": porque é o estádio em que o humano tem de começar a sua vida, e no qual a maioria dos indivíduos humanos se encontra toda a sua vida sem detectar que essa é apenas um modo, entre outros possíveis, de se estar na vida. Para a maioria, o estádio estético é, precisamente, tudo quanto a vida pode ser.
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