quarta-feira, 25 de julho de 2012

Aceitarias, Prótarco, viver toda a tua vida gozando dos maiores prazeres?

A propósito de prazer...

Qual é o maior bem do humano?

A maioria atira rapidamente que é a "felicidade". Mas, o que é que está em causa no termo "felicidade"?

Para a maioria, no início e na maioria das vezes, a felicidade e o bem são o prazer...

Os prazeres orientam-nos. Atraem-nos. Muitas vezes toldam-nos, não nos deixam ver mais do que o túnel que leva até eles.

Os prazeres são muitos, vários, diferentes. Em comum têm isso de nos atraírem.

Leiamos uma passagem de Platão tão imortal como a raça humana:


"Consideremos que nenhuma sensatez há na [vida] de prazer, nem nenhum prazer na de sensatez. […] Aceitarias, Prótarco, viver toda a tua vida gozando dos maiores prazeres?"

Platão, Filebo 20e – 21a
Σωκράτης
μήτε ἐν τῷ τῆς ἡδονῆς ἐνέστω φρόνησις μήτ᾽ ἐν τῷ τῆς φρονήσεως ἡδονή. […]
δέξαι᾽ ἄν, Πρώταρχε, σὺ ζῆν τὸν βίον ἅπαντα ἡδόμενος ἡδονὰς τὰς μεγίστας;

Este pequeno trecho deve ser lido com cuidado, porque aquilo que a pergunta está a perguntar não é imediatamente evidente.

A análise cuidada desta pergunta pode dar-nos algumas indicações daquilo que seja a felicidade. Porque a felicidade não é qualquer coisa cujo significado deva ser procurado nas pedras ou nas moléculas de H2O... Aceitaríamos uma vida tal como é proposta na citação? Atenção: muita atenção, nunca assine nenhum contrato cujas cláusulas não compreende completamente.

Sobre a tradução de φρόνησις.


Este é um dos passos em que me parece mais claro que φρόνησις deve ser vertido por "Gewissen", "consciência", pois na continuação Sócrates diz que sem ela (e as actividades que lhe são próximas) o ser humano, ou qualquer outro ser, ainda que vivesse nos mais extremos prazeres, não se aperceberia disso. A φρόνησις tem que ver com "aperceber-se das coisas" de cada vez em vigor. O prazer sem notícia dele nada é.
Semelhança com Ética a Nicómaco 1166a23-24: δόξειε δ᾽ ἂν τὸ νοοῦν ἕκαστος εἶναι ἢ μάλιστα. ("mas compreender parece ser o que cada um é realmente"). A proximidade entre νόος e φρόνησις é evidente no passo do Filebo 20e - 21e.
A tradução por "discernimento" não me parece descabida.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Tudo muda, nada permanece

A propósito de leis...


"Certamente que as diferenças dos humanos e das situações práticas, bem como o facto de, por assim dizer, nunca nada permanecer simples, não permitem que alguma perícia alguma vez proclame uma lei sobre o que quer que seja para todo o tempo."

Platão, Político 294b
αἱ γὰρ ἀνομοιότητες τῶν τε ἀνθρώπων καὶ τῶν πράξεων καὶ τὸ μηδέποτε μηδὲν ὡς ἔπος εἰπεῖν ἡσυχίαν ἄγειν τῶν ἀνθρωπίνων οὐδὲν ἐῶσιν ἁπλοῦν ἐν οὐδενὶ περὶ ἁπάντων καὶ ἐπὶ πάντα τὸν χρόνον ἀποφαίνεσθαι τέχνην οὐδ᾽ ἡντινοῦν.

As diferenças entre os humanos e entre as situações que de cada vez cada um atravessa, bem como o facto de que tudo muda, impossibilitam que se possa declarar qualquer lei válida para todos e para todas as circunstâncias. 

sexta-feira, 20 de julho de 2012

O critério de verdade

A propósito de garantias...

Será possível encontrar um critério de verdade? Como saber quando estamos na verdade?

Mesmo que estejamos na posse da verdade, como poderemos estar certos disso?

Leiamos Platão:


"Estrangeiro:
É difícil, oh divino, sem fazer uso de paradigmas demonstrar suficientemente o que é importante. Realmente, corre-se o risco de que, como um sonho, cada um de nós conheça todas as coisas e tudo volte a ignorar como se acordasse."

Platão, Político 277d:
Ξένος
χαλεπόν, ὦ δαιμόνιε, μὴ παραδείγμασι χρώμενον ἱκανῶς ἐνδείκνυσθαί τι τῶν μειζόνων. κινδυνεύει γὰρ ἡμῶν ἕκαστος οἷον ὄναρ εἰδὼς ἅπαντα πάντ᾽ αὖ πάλιν ὥσπερ ὕπαρ ἀγνοεῖν.




Na verdade, parece que muitas vezes nos encontramos no estado de nos julgarmos seguros acerca daquilo que descobrimos estar errado... Outras coisas vão permanecendo no âmbito das nossas certezas. Mas, mesmo quando nada nos mostra que estejamos errados, como saber se estamos certos? Podemos, de facto, estar errados naquilo mesmo que julgamos mais seguros, simplesmente sem nos apercebermos de que estamos errados.

Vejamos a metáfora do arqueiro: o arqueiro atira e ora falha, ora acerta. Da mesma maneira, dizemos que por vezes acertamos naquilo que pensamos ou dizemos, e que outras vezes falhamos o alvo.

Mas como é que podemos saber isso? O arqueiro sabe que errou quando, tendo acesso ao alvo, verifica que não acertou. Sabe que acertou quando, tendo acesso ao alvo, verifica que acertou. Em ambos os tipos de tiro (aquele tipo de tiro em que acerta e aquele tipo de tiro em que falha), o arqueiro visou o alvo. Visou, apontou, mas falhou quando falhou. Apontou, visou, e acertou quando acertou.

O que é que se passa com o conhecimento? 

No conhecimento falta, precisamente, o acesso ao alvo. Não podemos ver se acertámos. O que podemos fazer é visar, e este visar é muito complexo. Como podemos visar aquilo a que não temos acesso. Mas se, por outro lado, não podemos de facto visar o alvo, o que é realmente conhecer?

O que fazemos há muito tempo e que Descartes explicitou é estipular modelos segundo os quais se avalia as respostas que temos para certos problemas ou questões. Podemos submeter a esses modelos, como critérios, as nossas opiniões fundamentadas. O que permite a validação das nossas opiniões é, precisamente, o modo da explicação (fundamentação). Se ela respeitar e se enquadrar no modelo, ela pode ser aceite ou rejeitada, nos moldes definidos por esse mesmo modelo. Quando os modelos são aceites por uma comunidade num mesmo tempo e espaço, nesse tempo e espaço podemos dizer que há um paradigma. 

Qual é o papel do paradigma nesta imagem que desenhamos? Vamos evitar eufemismos. O paradigma forja um alvo. É esse o seu papel. Mas fá-lo de forma complexa. Não é como se dissesse o que é verdade e depois comparássemos o que dizemos com isso que se diz ser verdade, porque aqui se invertia o processo de investigação. Ou, se o faz, não é tão às claras.

O paradigma explicita o modo de visar e atirar. É, portanto, uma técnica de tiro, por assim dizer. Aquele que se exercita nele fica apto a atirar com mestria segundo aquilo que a convenção afirma que é atirar bem.

Como se vê, há aqui mesmo uma ilusão que se forma: a ilusão de que o paradigma produz um alvo com o qual se pode comparar as explicações. 




quinta-feira, 19 de julho de 2012

O Filósofo...

A propósito da delimitação do filósofo...

O filósofo é difícil de captar. Porquê? Será difícil olhar na cara do professor de filosofia? Não.

O que é difícil é saber quando se está a olhar para um filósofo. Não só porque o filósofo, neste sentido, não é aquele que enverga um título, mas aquele que faz um certo caminho - que não delimitamos aqui. Mas também porque, se dermos de frente com um, o mais provável não é simplesmente não nos apercebermos, mas não querermos nada com ele. É provável que ele nos repugne. O filósofo é chato. Repele. Nós gostamos de ler sobre Sócrates, e gostamos de elogiar Sócrates, mas se vivêssemos com ele, provavelmente condenávamo-lo à morte.

Fiquemos com as seguintes palavras de Platão:


Estrangeiro:
[O sofista], escapando-se na obscuridade do que não é, veste-a à medida: torna-se difícil percebê-lo através da escuridão do lugar. Não é assim?

Teeteto:
Parece.

Estrangeiro:
Mas por seu lado, o filósofo persegue sempre, através do raciocínio, a forma do que é: não é fácil alguém enxergá-lo através do brilho da região. Porque os olhos da alma dos muitos são incapazes de suportar a visão do divino.

____________________
Platão, Sofista 254a-b
Ξένος
ὁ μὲν ἀποδιδράσκων εἰς τὴν τοῦ μὴ ὄντος σκοτεινότητα, τριβῇ προσαπτόμενος αὐτῆς, διὰ τὸ σκοτεινὸν τοῦ τόπου κατανοῆσαι χαλεπός: ἦ γάρ;

Θεαίτητος
ἔοικεν.

Ξένος
ὁ δέ γε φιλόσοφος, τῇ τοῦ ὄντος ἀεὶ διὰ λογισμῶν προσκείμενος ἰδέᾳ, διὰ τὸ λαμπρὸν αὖ τῆς χώρας οὐδαμῶς εὐπετὴς ὀφθῆναι: τὰ γὰρ τῆς τῶν πολλῶν ψυχῆς ὄμματα [254β] καρτερεῖν πρὸς τὸ θεῖον ἀφορῶντα ἀδύνατα.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Viver com os outros - o humano como ser político

A propósito de auto-suficiência:

Para Aristóteles o ser humano deve tornar-se auto-suficiente. Mas ser auto-suficiente não significa viver isoladamente, como um só, sem ninguém por perto. Leiamos as suas sábias palavras:


"Pois a auto-suficiência parece ser o bem completo. Mas por auto-suficiência não dizemos aquele que é só ele mesmo, vivendo uma vida solitária, mas sim também com os pais e filhos e mulher e todos os amigos e concidadãos, uma vez que o humano por natureza é da cidade." (Tradução nossa.)

 Aristóteles, Ética a Nicómaco 1097b1
τὸ γὰρ τέλειον ἀγαθὸν αὔταρκες εἶναι δοκεῖ. τὸ δ᾽ αὔταρκες λέγομεν οὐκ αὐτῷ μόνῳ, τῷ ζῶντι βίον μονώτην, ἀλλὰ καὶ γονεῦσι καὶ τέκνοις καὶ γυναικὶ καὶ ὅλως τοῖς φίλοις καὶ πολίταις, ἐπειδὴ φύσει πολιτικὸν ὁ ἄνθρωπος.

Este passo ajuda-nos ainda a compreender o que significa ser político para Aristóteles. O πολιτικός é aquele que é da cidade, ou seja, que vive com os outros. Ser político é ser em comunhão. E o humano é, por natureza, com os outros. Começa por aqui a dimensão política do humano, é este o seu princípio.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Livros para as férias...

A propósito de férias...

Para as férias recomendo livros curtos e interessantes...


Algumas recomendações:

Do Riso e Da Loucura, publicado como sendo da autoria de Hipócrates; Padrões Culturais Editora.

A Arte de Viver, Epicteto; Edições Sílabo, 2ª edição.

Um conjunto de pequenos livros escritos na antiguidade, relativos à figura de Sócrates. Os autores são Platão, Xenofonte e Aristófanes... Pode fazer o download gratuitamente e imprimir apenas o que lhe interessar do livro. Há outras versões disponíveis para cada obra.

Carta sobre a Felicidade, Epicuro - e Da Vida Feliz, Séneca; tradução João Forte; Biblioteca Editores Independentes; 

Contos de Amor e Psique, Apuleio; tradução de Delfim Leão; Biblioteca Editores Independentes;

Cândido ou o Optimismo, Voltaire; existem várias edições. Pode fazer-se o download gratuito, basta fazer uma busca e surgirão várias hipóteses.

Alice do Outro Lado do Espelho, Lewis Carroll; tradução Margarida Gato; Biblioteca Editores Independentes.


Um Jantar muito Original, ou A Very Original Dinner; de Alexander Search (heterónimo de Fernando Pessoa); várias traduções disponíveis, nomeadamente a da Relógio d'Água. Também em audio-livro.


The Ion of Eurípedes, Eurípedes; Translation of F.A. Paley; HardPress. Em inglês.

La Nausée, Sartre; Gallimard. Em francês.


Quase todas as obras indicadas (excepto a de Fernando Pessoa) estão disponíveis na internet, em PDF, ou apenas para leitura, em várias línguas, edições e traduções.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

A partícula de Deus


A propósito do bosão de Higgs...

O CERN anunciou uma possível descoberta da partícula de Deus... “We observe in our data clear signs of a new particle, at the level of 5 sigma, in the mass region around 126 GeV. The outstanding performance of the LHC and ATLAS and the huge efforts of many people have brought us to this exciting stage,” said ATLAS experiment spokesperson Fabiola Gianotti, “but a little more time is needed to prepare these results for publication.” Negrito nosso: 5 sigma significa que a probabilidade de o evento detectado ter ocorrido por mero acaso é muito reduzida, e é o nível necessário para se poder falar em prova, em vez de indício.

A notícia pode ser lida aqui. Reacção da Igreja.

O bosão de Higgs apresenta a chave da massa e da forma do universo... é uma partícula cuja existência estava prevista, pelo menos desde 1964, mas que ainda não tinha sido observada.

A "descoberta" estava na mira e não foi uma surpresa. Ver aqui. Note-se, no entanto, que tudo isto são sinais.

Esta partícula integra o chamado campo de Higgs, um campo hipotético em que o vácuo é pressuposto para todo o Universo, mas que assume um valor diferente de zero... ou seja, permite explicar a massa, precisamente porque na expectativa do vácuo presume um valor diferente de zero (o problema com o zero é que, por mais que o multipliquemos ou dividamos ele permanece zero...).

Com a descoberta deste bosão tornar-se-á possível compreender as relações entre as três forças básicas microscópicas (nuclear fraca, forte e electromagnética) e a gravidade. Foi na tentativa disto que Einstein se moveu toda a sua vida. É também isto que tentam a teoria das cordas, e a teoria M. Conseguir-se-ia assim compreender o fundo no qual é possível que a mecânica quântica e a teoria da relatividade forneçam, a partir de pressupostos contraditórios, explicações válidas para o mundo.

A teoria da relatividade, via força da gravidade, explica o mundo atómico e macro-atómico, mas ao nível sub-atómico falha. É a mecânica quântica que consegue explicar o mundo das coisas sub-atómicas, onde as forças da electromagnética e das duas nucleares se fazem senhoras. Ora, sendo que todas as coisas visíveis são compostas por essas partículas sub-atómicas, a contradição entre estas duas explicações diferentes é paradoxal... levantando a suspeita de ambas serem, de facto, incompletas.

O bosão de Higgs pode permitir a elaboração de uma física diferente, diferente quer da teoria da relatividade, quer da mecânica quântica, fornecendo conceitos para uma nova teoria que unifique as quatro forças básicas da natureza.

Ao nível tecnológico, esta descoberta poderá abrir imensas possibilidades, nomeadamente a manipulação daquilo que ela explica, como da gravidade ou da massa das partículas... Ao permitir compreender como é que uma partícula adquire massa poderá ajudar a perceber por que é que cada partícula, e portanto cada coisa tem uma massa específica... assim, podemos imaginar-nos a manipular as massas das coisas! Os moldes em que isso poderia ser feito são, contudo, obscuros.


Mas o bosão não explicará tudo. Nem é certo que explicará a gravidade (provavelmente não o fará). Por outro lado, pode mesmo não dar suficiente informação para compreender a relação (se é que a existe) entre a gravidade e a electromagnética)...

Para saber mais, veja, por exemplo, isto.


Esta é uma descoberta muito importante, também, para a Filosofia. Além de se reflectir obviamente nas reflexões epistemológicas, as quais já começaram antes mesmo da confirmação da descoberta, há outras considerações a fazer. Nomeadamente, a recolocação da questão da diferença entre fé e conhecimento, crença e crença justificada, ou entre Religião e Ciência.

Pode perguntar-se se a descoberta do bosão de Higgs não tornará despropositada a crença em um deus, assumindo que a descoberta poderia trazer até nós a compreensão cabal e completa do mundo físico, sub e macroatómico.

Quanto a nós, a própria questão labora num equívoco. Antes de mais, deve compreender-se que, seja o que for que seja de facto dado no mundo, nada disso pode ter consequências sobre qualquer coisa que esteja fora do mundo, extra-mundo, para além dele... Enfim, pode até descobrir-se tudo sobre o Universo, e descobrir que este vem dele mesmo, num infinito revolucionar, num eterno retorno, mas isso nada diz de Deus, nem da possibilidade da sua existência, nem sobre o facto de ter ou não criado o Universo... mesmo no caso de se provar o eterno retorno. Porque o âmbito da criação divina não é, obviamente, limitado por aquilo que é a criação por causa-efeito que podemos observar à nossa volta. Deus não é um objecto intramundano que criou outro objecto intramundano. Falar de Deus como de um Criador é uma metáfora, como, de resto, tudo o que dele podemos dizer... Porque não podemos sequer imaginar o que seja a acção de criação divina... não temos qualquer forma de o representar senão pela expressão criação a partir do nada, supondo então que existia um nada, de onde foi criado algo. Mas aí usamos a expressão existir do nada, e a expressão de onde num sentido segundo o qual para nada podemos apontar. Isto mostra bem como não temos palavras, porque não temos os conceitos adequados, quando estamos a falar de qualquer coisa que, no limite, não podemos conceber.

Ou seja, na nossa perspectiva, o que podemos humanamente dizer é: quer deus exista, quer não exista, humanamente ele não é.



Outras referências interessantes:

http://www.telegraph.co.uk/science/science-video/4124605/Large-Hadron-Collider-experiment-explained.html

http://www.telegraph.co.uk/science/large-hadron-collider/8953007/God-particle-why-Cern-scientists-have-been-using-the-Large-Hadron-Collider-to-look-for-it.html

http://www.math.columbia.edu/~woit/wordpress/?p=4809

http://www.math.columbia.edu/~woit/wordpress/?p=4829

http://www.science20.com/news_articles/has_higgs_been_found_if_its_new_particle_it_heavy-91750

http://www.publico.pt/Ci%C3%AAncias/nao-sei-se-o-bosao-de-higgs-existe-nos-os-experimentalistas-somos-os-cepticos-1553159

















A Torinói ló

A propósito de O Cavalo de Turim... uma breve análise filosófica...

Declaração de intenção

Nesta breve análise não se pretende comentar a obra enquanto aglomerado de várias técnicas, excepto na medida em que possa servir a análise filosófica...


Breve análise Filosófica de O Cavalo de Turim, de Béla Tarr

Este é um filme diferente: diferente dos filmes comerciais. Claramente europeu pelo estilo lento, compassado, compenetrado. O seu motivo é evidentemente filosófico e não procura admirar facilmente nem agradar imediatamente. Aliás, tem um travo repulsivo que inquieta e incomoda, como uma pedra no sapato da qual nos queremos desfazer... Este filme exige-nos um cuidado suplementar: nem tudo o que incomoda é mau, e este filme não é com toda a certeza mau. Mais: vale a pena ver, vale a pena suportar as mais de 2h30 min. para alcançar o final. Este é um filme de final, porque é um filme filosófico, e por isso tem de facto algo a dizer que só é realmente dito quando o final vem sobre todo o filme dando-lhe um fim.

Cuidado: este filme é muito, mas mesmo muito inquietante. O filme é chato. É provável que cada um pense uma dúzia de vezes em abandonar a sala. Como tudo na vida, tem camadas de sentido; como tudo na vida há desistentes e resistentes. E este é, com certeza, um aspecto do filme que não é irrelevante: é deliberada essa busca pelo que inquieta vagamente. Pelo contrário: alguns dos filósofos mais contundentes que conhecemos são simultaneamente os mais penetrantes, incisivos, reveladores... O ferrão acutilante do filósofo é proverbial e remonta a Sócrates, mas Nietzsche não ficou conhecido por ser bonacheirão. Acontece com os filósofos o que se passa em geral: o que ferre é isolado, reprimido, expelido. Este filme não baterá recordes de bilheteira.

O filme tem narrador e começa por contar, de forma mais ou menos atabalhoada, a estória famosa do enlouquecimento de Nietzsche. Numa rua onde um cavalo era chicoteado Nietzsche intercede pelo animal e cai doente. "Não se sabe que fim levou o cavalo". De facto, do cavalo a história não reza mais do este pouco. Ao contrário, sabemos o que se passou com Nietzsche: os anos que viveu, quem cuidou dele, quando morreu. Mas o filme não reza sobre o filósofo, apenas sobre o cavalo.


O que é que é inquietante no filme???

O filme não é inquietante pelo sangue ou pela violência das imagens. Pelo contrário.
Começa com uma narração, sem imagens. Surge o cavalo, já a caminho, com o cocheiro. O som é introduzido, o trote... Os primeiros minutos revelam o mote: a duração dos planos, a permanência das cenas, a repetição das imagens, dos sons... a música circular, o contínuo retorno das mesmas coisas num devir interminável. O som é estranhamente repetitivo, maquinal. A sua característica principal é a ausência da voz: a voz humana é parca, quase não participa no filme, o discurso explícito não existe, quase.
Tudo isso é inquietante e parece ter sido concebido para fatigar, ou melhor: para enfastiar. Perturba. Aparentemente, é um filme calmo, que não nos incomodaria, mas incomoda, não porque nos agrida com cores vibrantes ou imagens pungentes. É a envolvência criada pela música, pelos sons que estão e pelos que não estão. A humanidade parece faltar no filme. O cavalo dá o título e o início do filme. Os homens faltam. Tudo isto se avoluma ao longo do filme: a ausência de humanidade, a falta de discussões, de conversas, de palavra. No início era a palavra, do narrador, que nos introduzia o cavalo, o episódio com Nietzsche. Mas a palavra é o que mais falta neste filme.
O filme continua, dia a dia. Vemos cada dia por si, isolado explicitamente. Cada dia oferece as mesmas cenas, a mesma andança, as mesmas tarefas. Tudo tão automático como o tempo e o clima. Há a insinuação do tédio: de circunstância. Presos dentro de casa, olham pela janela o movimento da tempestade lá fora. A tempestade, o vento avassalador é constante, omnipresente. O mesmo. É sempre o mesmo. A mesma borrasca, o mesmo assobiar lá fora, a mesma rotina das personagens e o tempo que quase nada de novo traz. As excepções confirmam o que é regra. Aparece um vizinho, caminhante na tempestade, muito semelhante à imagem que possuímos do cínico Diógenes (aquele que em plena luz do dia acendia uma lanterna e procurava o humano - ver Diógenes Laércio, A vida e o pensamento dos filósofos ilustres, VI, 41). Aparece ainda um grupo de ciganos. Ambas as aparências ganham contornos de fantasmas pelo contraste com o resto do filme. O visitante porque fala. Os ciganos porque são animados, radiantes, vivos...
Tudo no filme exala rotina, repetição, cinzento. A tela sempre em tons de cinzento. É um ambiente desolador. Desumano, agreste. Ou, talvez, humano, demasiado humano.
O filme inquieta sobretudo porque não há nada de concreto a inquietar-nos. Não são as palavras ditas, as imagens violentas, nada disso. É inquietante, sobretudo, pelo que não tem. Não é a tempestade que inquieta, mas a falta de movimento apesar dela. Não é o que é dito, mas a falta de coisas ditas. Não é o que fazem as personagens, mas o facto de não parecerem estar a fazer nada: nada mais que viverem a sua vida repetitiva. O filme não tem as características que tem por vaidade experimentalista, como se pretendesse explorar uma maneira de fazer filme nova. Não. A cor que não tem, o movimento que lhe falta, a luz ausente, a alegria morta, a música repetitiva não são irrelevantes para a mensagem do filme. Essas características reforçam aquilo que se quer fazer sobressair: a monotonia.



O cavalo

É o cavalo que fica doente. Não mais comerá. Não come e recusa-se a trabalhar. Mas é com ele que a filha do cocheiro demonstra afabilidade. A pouca humanidade que há no filme, há-a para com o cavalo. Da parte da filha do cocheiro, não da parte do cocheiro. O filme chama-se O cavalo de Turim, e de facto apetece perguntar onde está o homem? neste filme.

O visitante

A dada altura um viajante visita a família. Ver O viajante e sua sombra, de Nietzsche. A maioria vê mal e atende pouco ao que está mais perto (O viajante e sua sombra, §6)
É difícil de ver aquilo que está mais perto. Poucos o alcançam. O viajante chega à casa e pede uma garrafa de palinka. Ocorre a única conversação digna do nome em todo o filme. 
Quase só o visitante fala. Em modos de filósofo. É o cocheiro que lhe dá o mote ao perguntar por que não fora ele à cidade... A cidade, diz o viajante, foi destruída. O vento a destruiu. Eles a destruíram. Como? Está em ruínas. A cidade em ruínas representa a ruína da civilização. Diz o viajante que chegou à conclusão de que Deus não existe. Mais: não existe bem nem mal (cf. Para além do bem e do mal).
O viajante lembra o louco d' A Gaia Ciência que no meio da multidão procurava Deus e o declarou morto. Matámo-lo... vocês e eu! Somos nós todos, nós é que somos os seus assassinos! A questão que se impõe é: Para onde vamos nós? (A Gaia Ciência, §125). O viajante do filme mostra-se consciente. Capaz de tomar atenção, observar o que está mais perto mas nos escapa na maioria das vezes. O que é o mais difícil de tudo? Aquilo que pensas ser o mais fácil: ver com os próprios olhos o que está à tua frente (Goethe, Xenien aus dem Nachlass, 45).
O viajante visita e fala, traz notícias e opiniões, traz para o cenário o que estava expulso dele: o discorrer, o discurso expresso. Fala dos bons, dos nobres, tema tão caro a Nietzsche... os quais, cientes de que não havia nem bem nem mal, se deixaram convencer por eles... Quem são estes eles? Os mesmos que destruíram tudo (não, não foi o vento)...
Talvez tudo seja demasiado humano: falta que o humano se supere. Neste aspecto unem-se Diógenes e o louco de Nietzsche. Ambos em pleno dia buscam: um, o humano; o outro, Deus. E nada encontram. Não porque o cenário desolador não seja, de facto, humano, mas precisamente porque é demasiado humano...



Não há cidade

O viajante revelou que a cidade estava destruída. Tal como o louco de Nietzsche revelara que Deus não existe.
Já perto do final há um momento crucial, de mudança: é dia, mas cai a escuridão; a luz vai-se e não se consegue fazer com que volte. Os candeeiros não acendem, o lume apaga-se, as brasas morrem. Trevas.
No dia seguinte, parece que tudo se repetirá: o mesmo acordar, a mesma ida ao poço... mas não. O poço está destruído, não oferece água.
Primeiro a escuridão, depois a falta de água. É o habitável que se faz inóspito. O inóspito que se mostra aí onde não era conhecido, onde era ignorado. O cocheiro ordena que se vá para outro sítio. Juntam as coisas, os utensílios. Montam a carga, vão buscar o cavalo e partem... mas regressam... Lembre-se: não há cidade. Para onde ir não há. O caminho não existe...

Todos julgavam saber há muito tempo o que é o bem e o mal para o homem. Mas, afinal, ninguém sabe ainda o que são o bem e o mal... (Assim falava Zaratustra, Nietzsche).



O final e o fim

Começou o filme com a narração já referida. Seguimos depois o cavalo e o cocheiro até a casa. Uma casa de pedra, pobre, onde a ruína se insinua e é indício do fim.

O cavalo não come. O cocheiro, por sua vez, é sôfrego. Come em correria, por fome, a sua batata ainda a escaldar, lambendo os dedos. 

Tudo é sempre o mesmo. Mas há algo que começa no início do filme e que vai cavando fundo. O bicho da madeira não labuta mais. Há 58 anos que o cocheiro ouvia o seu labor que agora não se ouve. A filha pergunta-lhe porquê: ele não sabe.

Quando o poço cede, interrompe-se o curso da normalidade. De forma pouco clara, de início, mas gradualmente notória. 

Não podem mais ficar ali. Sem água falta o lar: a disponibilidade de água é uma marca, uma condição de civilização. Partem com o cavalo, mas voltam... Não há onde ir, não há ninguém para os acolher. Não têm por onde fugir.

O cocheiro come a sua batata mais lentamente e pela primeira vez não a devora completamente: sobra batata.

Cai a escuridão. A filha pergunta ao cocheiro o que é aquilo, o que é aquela escuridão: ele não sabe. Diógenes e o louco de que fala Nietzsche acendiam uma lanterna para poderem ver melhor, para trazer à vista da escuridão à força do clareamento da chama. Agora, falham todas as chamas: os candeeiros que não se deixam acender, o lume que não arde, as brasas que se apagam. Mas o cocheiro não sabe. Há no espírito duro uma falta de amanhã assustadora. Falta-lhe o arcabouço da estupefacção.

No dia seguinte não há mais repetição. A tempestade parou. A batata não será comida, o cocheiro não revela fome. Esse sintoma do qual o cavalo foi o primeiro paciente afecta agora o cocheiro que insiste com a filha: come, tens de comer, como esta tanto insistira com o cavalo: come, tens de comer.

Mas nem o cavalo, nem o cocheiro, nem a filha comeram. 

A tempestade que foi o fundo do filme, no final termina. O fim da tempestade não dá cabimento à situação deplorável da família do cocheiro. Poder-se-ia pensar que, com o fim da tempestade viria a bonança, mas não. O fim da tempestade coincidiu com o fim de algo muito mais fundamental.

Não se sabe onde iam buscar as forças para sobreviver. Mas faziam a sua rotina com a precisão de um relógio. Maquinalmente. Desapercebidamente. A clausura parecia até ser a razão de tão deplorável situação envolver o dia-a-dia daquela família. Como se, terminada a tempestade, pudessem vir aí os tempos de vacas gordas. Como se o filme estivesse a dizer que o humano está sujeito às condições naturais que o vergam e forçam a enclausurar-se. Mas não, não é isso que o filme nos diz.

Precisamente quando a tempestade acaba, acabaram também as forças do cocheiro e da filha. Foram-se. Não nos é dito, nem sugerido, de forma concreta, exactamente porquê. Não era preciso. A normalidade era ela mesma suficiente. Por que não se vislumbra nas suas vidas um raio de alegria, um fio de luz, um ponto de cor. Tudo cinzento, amorfo, indiferentemente humano, tão só humano. A infinita capacidade humana para se deixar embeber de normalidade. O regular, o mecânico por todo o lado. Uma quase fusão do humano com o seu ambiente, com o cinzento. Duas máquinas poderiam substituí-los. E, no entanto, a heterogeneidade humana é radical, insuperável. Estamos sempre à espera do momento em que cocheiro e filha quebrariam os laços da regularidade. Acabaram por ser os próprios laços a partirem-se - no momento em que a tempestade os deixava. Fica a melancolia, o tédio. Já não de circunstância: a circunstância findou, ficou a melancolia.

Que fariam eles agora? A pergunta é muito mais profunda do que parece. O que ela deixa ser questionado é o fundo humano. O que há para fazer com a vida? Qual é o caminho? Há forças para ser criador? A pergunta só pode interpelar cada um. Não é uma questão de rebanho, nem para o rebanho. É um problema de solidão, para o indivíduo. Mas por isso mesmo toca a cidade e a condição de possibilidade do seu salvamento.












domingo, 1 de julho de 2012

Sócrates e a sua 'excelência'...

A propósito da questão socrática... algumas anotações:

‎1. Podemos afirmar que Sócrates era humilde?
    Não sei se ele era humilde. Talvez a ideia (aspecto) de um Sócrates humilde, "memorável", justo e recto, amigo dos seus amigos e bonacheirão se adeqúe ao retrato desenhado por Xenofonte. Mas não ao de Platão... na primeira fase...

2. Sócrates procura a verdade por intermédio da comparação entre "opinião" e "realidade"?
    A procura da verdade através da comparação com a realidade. O problema com a "realidade" é que só se podem comparar opiniões / construções mentais com ela se, e apenas se, for o caso dela já estar dada à partida. Mas se ela já está aí, então que é que eu estou a perguntar? Se eu penso X, vou comparar X com a realidade R, para saber se X é real (R)? Ora, se o que se quer saber é o que é R, então só se coloca verdadeiramente a questão de saber o que é X (o que eu penso), se admito que não sei o que seja R (com o qual se pretende comparar X)... Ou seja, admitir que há sem mais R aí dado, ou adquirido, para com o qual uma contrastação se faz possível, é tomar aquelas coisas que Sócrates investiga, como se elas se tratassem de entes ao modo de sandálias, mas "cuidar de calçado não é o mesmo que cuidar de pés" (vide Alcibíades I, p.ex. 128a e seg., embora dada a dúvida sobre autenticidade).

3. Mas, então, a que é que corresponde o ἐλέγχειν?
    O famoso "elencar" de Sócrates mostra à saciedade que, quando se supunha adquirido aquilo de que se falava (R), afinal nada lá havia de correctamente (ὀρθῶν) adquirido. Daí a aparente contradição entre as obras Críton (que pensa haver razões para um tratamento privilegiado de Sócrates face à "injustiça" de que é alvo) e Êutifron (que pensa que nem os próprios familiares devem ficar imunes à justiça). Afinal, nem um nem outro sabem daquilo que falam, e a comparação daquilo que dizem com aquilo que dizem estar a dizer, mostrará que dizem X, supondo R, quando é R que, afinal, continua por apurar.

4. O que é que sabe, afinal, Sócrates? 
    Vide Platão, Apologia de Sócrates, 21d: κινδυνεύει μὲν γὰρ ἡμῶν οὐδέτερος οὐδὲν καλὸν κἀγαθὸν εἰδέναι, ἀλλ᾽ οὗτος μὲν οἴεταί τι εἰδέναι οὐκ εἰδώς, ἐγὼ δέ, ὥσπερ οὖν οὐκ οἶδα, οὐδὲ οἴομαι: ἔοικα γοῦν τούτου γε σμικρῷ τινι αὐτῷ τούτῳ σοφώτερος εἶναι, ὅτι ἃ μὴ οἶδα οὐδὲ οἴομαι εἰδέναι."corremos certamente o risco de nenhum de nós saber alguma coisa do que é belo e bom, mas enquanto ele supõe que sabe não sabendo, eu, como de facto nada sei, nada suponho [saber]. E pelo menos neste pouco realmente pareço mais exímio que ele, por não supor saber disso que também não sei".
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