quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O carácter auto-destrutivo da vontade de verdade

A propósito da vontade de verdade em Nietzsche

Há entre os comentadores um mal-entendido relativamente a Nietzsche e à sua posição relativamente à "verdade".
Nietzsche não nega que exista no humano um requisito de verdade. Pelo contrário, ele insiste, justamente, na força dessa "vontade de verdade", no vínculo aparentemente inquebrável do humano à verdade.
Acontece que Nietzsche reconhece também que o humano não está em condições de satisfazer essa petição - que está incluída na sua própria estrutura - razão pela qual "a verdade mata à distância, como as setas de Apolo".
A verdade mata porquê? Porque a vontade de verdade foi sendo satisfeita ilusoriamente graças à pretensão de verdade: as ilusões, na medida em que têm a pretensão de verdade, na medida em que se apresentam como verdade, satisfazem a vontade de verdade - mas apenas na condição de o sujeito estar na inconsciência. Ou seja, a satisfação da vontade de verdade está dependente da permanência da ilusão de verdade. O problema é que a vontade de verdade quando atinge um certo desenvolvimento começa a desocultar o carácter ilusório e falso das pretensas verdades em que se sustenta. Por isso mesmo, a vontade de verdade é auto-destrutiva, porque o seu destino só pode ser descobrir-se incapaz de cumprir os seus próprios requisitos.
Ora, visto que Nietzsche admite que o sujeito humano não é capaz de se manter conscientemente numa ilusão que sabe ser ilusão, num sonho que sabe ser sonho, a vontade de verdade mata - porque deixa o sujeito entregue ao nihilismo, à morte dos seus ídolos, à morte de Deus, da Verdade, da Metafísica como um todo, e isso só pode significar a desorientação, o caos, o vazio, o nada.
Portanto, Nietzsche não nega que a verdade é algo absolutamente importante para o humano... E é precisamente por isso que começa toda aquela conversa acerca da superação do humano, do sobre-humano. É que o humano está tão dependente da verdade que só ultrapassando-se a si mesmo pode superar a vontade de verdade. Ou seja, a vontade de verdade é tão vinculativa, tão radical no humano que a sua ultrapassagem só pode ser conseguida através de uma transformação radical do modo-de-ser humano.
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