quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Desonestidade: distanciamento

A propósito do devemos duvidar de tudo...


Queria começar por explicar que ao utilizar o termo “desonesto” não quero, de modo nenhum, dizer que alguns autores dizem X querendo dizer Y, ou que têm uma segunda agenda oculta. Isso também pode acontecer, mas não é o que quero dizer.

Quando Descartes, n’Os Princípios da Filosofia, I, 5, afirma que há a possibilidade de sermos sempre enganados, coloca em cena uma espécie de dúvida que não encontra restrições. Contudo, no artigo 6º seguinte, imediatamente restringe a dúvida: « nous ne laissons pas d’éprouver en nous une liberté qui est telle que, toutes les fois qu’il nous plaît, nous pouvons nous abstenir de recevoir en notre croyance les choses que nous ne connaissons pas bien ». Este artigo constitui uma restrição porque aquilo que Descartes diz no artigo 5º é o mesmo que dizer que encontramos em nós « une liberté qui est telle que, toutes les fois qu’il nous plaît, nous pouvons nous abstenir de recevoir en notre croyance les choses ». Mas mais do que dizer que nós podemos duvidar daquilo que bem entendermos, Descartes diz que devemos duvidar de tudo porque pode acontecer que estejamos a ser enganados sempre que algo nos parece certo (por exemplo, um Deus enganador poderia estar-nos a enganar). Este é um dos sentidos em que uso o termo desonesto: quando um autor se propõe um projecto que depois não cumpre – no caso, afirma que se deve duvidar de tudo até encontrarmos evidências, mas depois não duvida de uma coisa (esquecendo que, se começar sempre por duvidar daquilo que lhe parece nunca encontrará nada de que não possa duvidar). Ou seja, começou o seu sistema precisamente pela suspensão da dúvida relativamente a algo, quando teve a pretensão de o sustentar na suspensão da crença. Descartes diz isso expressamente no artigo 6º: irá duvidar de tudo aquilo que não conheça bem, daquilo que lhe pareça ser duvidável. Mas o aspecto fundamental do artigo 5º é, precisamente, que tudo o que nos parece ser certo pode resultar de um engano – portanto, dever-se-ia duvidar de tudo.

Quando Descartes, n’As Paixões da Alma, artigo 145, reconhece que « nous devons souvent faire réflexion sur la Providence divine, et nous représenter qu’il est impossible qu’aucune chose arrive d’autre façon qu’elle a été déterminée de toute éternité par cette Providence ; en sorte qu’elle est comme une fatalité ou une nécessité immuable qu’il faut opposer à la fortune », dá notícia de algo muito interessante. Este reconhecimento que ele faz pontualmente coloca em cena um ponto que poderia ter consequências relevantes para o sistema. Mas, mais uma vez, imediatamente a seguir (art. 146), estabelece uma limitação à interpretação: « tout est conduit par la Providence divine, dont le décret éternel est tellement infaillible et immuable qu’excepté les choses que ce même décret a voulu dépendre de notre libre arbitre, nous devons penser qu’à notre égard il n’arrive rien qui ne soit nécessaire et comme fatal » (sublinhado nosso). Esta é outra forma de desonestidade: reconhecer um ponto que, no limite, teria consequências em todo o sistema, mas derivar apenas as consequências relativas ao ponto concreto em questão (escolher um caminho sem pensar naquilo que não depende da nossa vontade), colocando o resto sob a nota de uma excepção já adquirida, como se o novo dado não pudesse ter consequências sobre o que previamente parecia adquirido. Isto não quer dizer que Descartes tivesse consciência disto. Ele pode ter sido sincero. Mas o sistema filosófico é desonestamente desenvolvido: porque esbate os dados que vão sendo adicionados, dando-lhe a forma do que previamente está adquirido, sem submeter o que estava previamente adquirido ao escrutínio. O novo dado é considerado simplesmente algo que deve ser interpretado à luz das certezas previamente estabelecidas.

Quando Descartes, n’Os Princípios da Filosofia, I, 3, afirma: « [c]ependant il est à remarquer que je n’entends point que nous nous servions d’une façon de douter si générale, sinon lorsque nous commençons à nous appliquer à la contemplation de la vérité », coloca de forma explícita a Filosofia ao nível de uma excepção da vida. A contemplação da verdade corresponde um parêntesis no decurso da vida, cujo decorrer normal nos submete à urgência de ter de decidir em tempo útil, apesar de não podermos estar mais certos acerca de uma opinião do que de outra. Portanto, Descartes explicitamente diz que a vida é outra coisa. Isto faz-nos lembrar Aristóteles que parece dizer algo de semelhante na Metafísica 982β10-30. Contudo, o sentido em que Aristóteles interpreta isso é bem diferente (cf.  Ética a Nicómaco 1178β30-1179α10, a necessidade que o humano tem de bens exteriores é assumida, mas sem que isso seja o fim, pelo contrário, os bens necessários são utilizados em vista da excelência: come-se para se permitir a continuação da activação da possibilidade de ser excelente). Descartes diz que a dúvida não deve ter lugar na vida habitual « à cause que les occasions d’agir en nos affaires se passeraient presque toujours avant que nous pussions nous délivrer de tous nos doutes ». A lógica da excepção é levada ao limite aqui. O deve-se duvidar de tudo é uma actividade mental a que uma pessoa se pode dedicar quando, sem mais negócios a conduzir, descansa da vida. E como nada daí pode resultar que possa ser de facto levado a sério, não vale a pena interromper o curso dos negócios. O duvidar de tudo, afinal, não é levado a sério: não o é no método, como mostrámos atrás, e não o é na vida. É apenas uma brincadeira que se pode fazer quando a correria da vida se suspende e nos dá descanso. Mas mesmo que ficássemos pela dúvida e esta fosse levada a sério, quando terminasse o tempo de lazer, lá se voltaria para os negócios.

Mas esta forma de desonestidade intelectual mostra uma grande honestidade prática: a vida vem em primeiro lugar. A dúvida metódica tinha desde início uma finalidade, e essa finalidade estabelecia o seu âmbito. O escudo protector estava activado desde o primeiro momento: a dúvida não poderia matar. Isso mesmo foi o que Pirro descobriu quando foi perseguido por um cão e teve que fugir (cf. Diógenes Laércio, A Vida dos Filósofos mais Ilustres, IX,66).


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O valor daquilo que se ama

A propósito de amor...


É verdade que o amado invariavelmente é, sem dúvida, valorizável para o amante. Contudo, percebendo-se que o valor não é, de todo, uma condição formativa ou fundamental do amor. Não é necessário que seja uma percepção do valor naquilo que ele ama que mova o amante a amar isso. A relação verdadeiramente essencial entre amor e valor do amado segue a direcção oposta. Não é necessariamente como um resultado de reconhecer o seu valor e de ser cativado por ele que nós amamos coisas [e pessoas]. Pelo contrário, aquilo que nós amamos adquire necessariamente valor para nós porque nós o amamos. O amante invariavelmente e necessariamente perceve o amado como valioso, mas o valor que ele vê que o amado possui é um valor que deriva e depende do seu amor.

"It is true that the beloved invariably is, indeed, valuable to the lover. However, perceiving that value is not at all an indispensable formative or grounding condition of the love. It need not be a perception of value in what he loves that moves the lover to love it. The truly essential relationship between love and the value of the beloved goes in the opposite direction. It is not necessarily as a result of recognizing their value and of being captivated by it that we love things [and people]. Rather, what we love necessarily acquires value for us because we love it. The lover does invariably and necessarily perceive the beloved as valuable, but the value he sees it to possess is a value that derives from and that depends upon his love."

Frankfurt, The Reasons of Love, (Princeton: Princeton University Press, 2004), pp. 38-39.


Temos a tendência constante para perceber agudamente o valor nas coisas e nas pessoas que amamos.

Quem ama é atraído de forma involuntária para o objecto do seu amor. Ama-se - não se ama porque se quer, e muito menos se ama quem se ama porque se quer amar essa pessoa.

De facto, a paixão atravessa-nos como um raio e mexe connosco como se fôssemos marionetas. O ponto de vista natural é seguir o caminho do amor. É o mais fácil. Quando se ama, se de facto se ama, somos arrastados pelo amor.

E por que é que se ama? Esta pergunta é uma pergunta secundária. Na verdade, ela nem sempre, aliás, muito raramente tem qualquer interesse para o amante. Quem ama não sabe, nem quer saber, por que ama. A pergunta só pode vir de um mal estar. Ou de fora, colocada por outros, e que é, então, respondida apenas por desporto.

Por que é que se ama? Parece tão natural dizer que se ama alguém devido às suas qualidades. Parece tão óbvio que é o valor das coisas que nos faz amá-las. Parece tão claro que é o valor da pessoa que amamos que faz com nós a amemos. E, no entanto, Frankfurt diz-nos precisamente o contrário.

O filósofo tem uma tarefa ingrata: levantar a dúvida onde ela não parece ter lugar. E tem uma tarefa ingrata porque -, como muito bem viu Hegel na Fenomenologia do Espírito (na introdução, ou talvez no prefácio) -, toda a gente se crê habilitada a filosofar sem dificuldade, sem necessidade de treinar o olhar ou de exercitar o pensamento. Parece natural, simples, olhar e tecer juízos sobre isso que aparece.

Mas devemos admitir a possibilidade de que, aquilo que os filósofos dizem, e qualquer pessoa em geral, não é uma parvoíce, mas antes um ponto de vista possível. Legitimamente possível. Legítimo.

Então: o que quer dizer isso que nos diz Frankfurt. O que quer dizer isso de que o valor daquilo que amamos depende de nós o amarmos? E pode ele estar certo.

Frankfurt é perspicaz. E diz as coisas com uma clareza rara. Deitemo-nos a pensar nas suas palavras:

"a lover identifies himself with what he loves" 
The Reasons of Love, p. 61

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Da impossibilidade de provar a existência de Deus



Mas se quando falo de provar a existência de Deus eu quero dizer que me proponho provar que o Desconhecido, o qual existe, é o Deus, então eu expresso-me de forma infeliz. Pois nesse caso não provo nada, muito menos uma existência, mas apenas desenvolvo o conteúdo de um conceito. De modo geral, é uma coisa complicada provar que uma coisa existe; e, o que é ainda pior para a alma intrépida que empr
eende essa aventura, a dificuldade é de tal ordem que raramente a fama aguarda por esses que se preocupam com isso. A demonstração transforma-se sempre em qualquer coisa muito diferente, e torna-se um desenvolvimento adicional das consequências que se seguem do facto de eu ter assumido que esse objecto em questão existe.





[...] mas quem quer que diga no seu coração ou a um homem: "Espera apenas um pouco e eu provarei [a existência de Deus]" - que raro homem de sabedoria ele é! Se no momento de começar a sua prova não está absolutamente indeterminado se Deus existe ou não, ele não o prova; e se isso está dessa forma indeterminado no começo, ele nunca chegará a começar, em parte pelo receio de falhar, dado que Deus talvez não exista, e em parte porque ele não tem nada com que começar.

Kierkegaard (Johannes Climacus), Philosophical Fragments








Atenção: a tradução anterior é indirecta - por favor, confronte com a tradução inglesa





 But if when I speak of proving the God’s existence I mean that I propose to prove that the Unknown, which exists, is the God, then I express myself unfortunately. For in that case I do not prove anything, least of all an existence, but merely develop the content of a conception. Generally speaking, it is a difficult matter to prove that anything exists; and what is still worse for the intrepid souls who undertake the venture, the difficulty is such that fame scarcely awaits those who concern themselves with it. The entire demonstration always turns into something very different and becomes an additional development of the consequences that flow from my having assumed that the object in question exists.





[...]but whoever says in his heart or to men: Wait just a little and I will prove it -- what a rare man of wisdom is he!3 If in the moment of beginning his proof it is not absolutely undetermined whether the God exists or not, he does not prove it; and if it is thus undetermined in the beginning he will never come to begin, partly from fear of failure, since the God perhaps does not exist, and partly because he has nothing with which to begin.





Originally published by Princeton University Press, Princeton, New Jersey in 1936. Translated by David F. Swenson, translation revised by Howard V. Hong.

Para reflectir, do Evangelho Segundo São Mateus

A propósito de portas, de perdição e de vida...


Mateus 7:13-14
13 Εἰσέλθατε διὰ τῆς στενῆς πύλης· ὅτι πλατεῖα ἡ πύλη καὶ εὐρύχωρος ἡ ὁδὸς ἡ ἀπάγουσα εἰς τὴν ἀπώλειαν καὶ πολλοί εἰσιν οἱ εἰσερχόμενοι δι’ αὐτῆς· 14 τί στενὴ ἡ πύλη καὶ τεθλιμμένη ἡ ὁδὸς ἡ ἀπάγουσα εἰς τὴν ζωήν καὶ ὀλίγοι εἰσὶν οἱ εὑρίσκοντες αὐτήν.

13 Entrai pela porta estreita: pois larga é a porta e bem espaçoso o caminho que leva à perdição e muitos são os que entram por eles. 14 E estreita é a porta e apertado o caminho que leva à vida e poucos são os que o encontram.

"Entrai pela porta estreita".

Parece que temos à nossa disposição diversas possibilidades de ser. Uma ou outra vez na vida encontramo-nos como a criança que descobre numa manhã primaveril que pode ser o que quiser. 

Essa não é uma descoberta de pouca monta. Pobre o adulto que julga puerilmente que isso é uma ilusão: porque esse adulto ainda não começou a poder compreender a amplitude da sua própria ilusão. Porque não é disso (que ele julga) que fala a criança que descobre de repente que pode ser tudo.

Julga o adulto que está firme e seguro na sua plataforma de onde aponta ferozmente a fragilidade do ponto de vista infantil...

Parece que temos diversas possibilidades de ser e têmo-las por nossas, adquiridas. E queremos muitas. Somos felizes quando podemos parar diante de muitas portas e considerá-las por gozo e gabarolice... Queremos tempo para nos ufanarmos junto dos nossos amigos e comparsas. Como uma criança que tem um brinquedo novo e o leva para casa dos amigos como passaporte para ser, por um dia, a estrela. Pobre o adulto que admoesta nessa criança a ingenuidade com que os seus olhos brilham. Porque esse adulto ainda não começou a compreender a sua própria burrice.

Mas não! Não é assim como pensa o adulto que se comporta como uma criança. Não!

"Entrai pela porta estreita" - e parece que ela está aí, que podemos qualquer dia, quando vagar nos sobrar, empreender escarpa acima, estreiteza fora, de armas e bagagens, rumo à vida. Mas não. O adulto é ainda uma criança que não quer fazer hoje o que pode também não fazer amanhã... E pobre desse adulto que ralha com a criança cortando-lhe a diversão e matando-lhe a brincadeira! Porque esse adulto não compreendeu ainda onde ele próprio está.

Um dia quererá abrir a porta estreita e fazer o caminho apertado e então talvez perceba que durante todo o tempo de vida não encontrou vagar para encontrar essa que seria a porta da vida. Então, só então, perceberá a dificuldade que o evangelista enuncia: 

- Não é que tenhamos a porta da vida escancarada e escolhamos a outra, mais larga! Não! Não é que vejamos claramente o caminho certo e o deixemos ficar lá para seguir pelo caminho da perdição. O ponto é precisamente outro:  "poucos são os que o encontram". 

O evangelista não diz: ide pelo caminho da vida e deixai o caminho da perdição.

O evangelista diz: "Entrai pela porta estreita" mas "poucos são os que a encontram".

Então, se um dia lhe bater à porta da sua vida esta urgência talvez o adulto perceba a que nível elevou a própria estupidez quando admoestou a criança, quando procurou instilar nela sensatez, quando pretendeu dar-lhe o que nunca adquirira para si próprio.


Há um filme em que um assassino rapta o filho de um polícia e diz-lhe que, para reaver o filho são e salvo tem apenas de ter a paciência de não sair da sala de operações... O polícia-pai inquieta-se, não suporta a impaciência, descobre onde está o filho e vai lá com toda a polícia e todas as armas de fogo. Uma vez lá percebe que o filho estava dentro de um cofre na sala de operações - e que, devido ao facto de ter abandonado a sala de operações, o seu filho já morreu.

Bastava-lhe a paciência de ter ficado ali.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Do falatório da gente

A propósito de termos indiscutidos...

Sempre que, no dia-a-dia, ouço expressões como "a alma em direcção ao espírito", fico aparvalhado.


Devo, com certeza, possuir um caso raro de estupidez! Porque vejo as pessoas dizerem coisas destas sem vergonha, portanto deverão saber bem o que dizem ao dizê-las.

Então sou eu que sou estúpido! E, quando ainda envergonhado, pergunto o que é isso de alma e de espírito, e que caminho é esse que há-de ser feito por qualquer coisa como uma alma para se chegar a qualquer coisa como um espírito... riem-se, abanam a cabeça, e desculpam-me a minha mania de complicar! Confirmando assim, por meio desses trejeitos, que sou de facto estúpido!

Mas, afinal, o que é a alma e o que é o espírito, se são duas coisas distintas, e como é que hão-de ser se um pode ir visitar o outro e o outro acolher o primeiro?

Da não naturalidade da Filosofia...

A propósito da coisa mesma da Filosofia...


Metáfora do sapato §67 do prefácio de A Fenomenologia do Espírito:
// Von allen Wissenschaften, Künsten, Geschicklichkeiten, Handwerken gilt die Überzeugung, daß, um sie zu besitzen, eine vielfache Bemühung des Erlernens und Übens derselben nötig ist. In Ansehung der Philosophie dagegen scheint itzt das Vorurteil zu herrschen, daß, wenn zwar jeder Augen und Finger hat, und wenn er Leder und Werkzeug bekommt, er darum nicht imstande sei, Schuhe zu machen, jeder doch unmittelbar zu philosophieren und die Philosophie zu beurteilen verstehe, weil er den Maßstab an seiner natürlichen Vernunft dazu besitze – als ob er den Maßstab eines Schuhes nicht an seinem Fuße ebenfalls besäße.//


Tradução de J. B. Baillie:
"In all spheres of science, art, skill, and handicraft it is never doubted that, in order to master them, a considerable amount of trouble must be spent in learning and in being trained. As regards philosophy, on the contrary, there seems still an assumption prevalent that, though every one with eyes and fingers is not on that account in a position to make shoes if he only gets leather and a last, yet everybody understands how to philosophise straight away, and pass judgment on philosophy, simply because he possesses the criterion fordoing so in his natural reason —as if he did not in the same way possess the standard for shoemaking too in his own foot."

Parece que a Filosofia é uma actividade imediatamente à mão, fácil e natural. Parece que a Filosofia não exige um posicionamento adequado do sujeito face ao que nela está em causa. Parece que desde sempre o humano está sintonizado com o objecto da Filosofia. Não há que ter preocupação de maior.

Parece que, precisamente porque todos os homens podem ser filósofos, o senso comum pensa que, de facto, todos os homens são filósofos. Simplesmente, tal como uns homens comem mais e outros menos, também há uns que dedicam mais tempo e outros menos à Filosofia.

Parece que basta a qualquer um deixar a língua soltar umas opiniões sobre cada assunto abordado pela Filosofia.

Aliás, parece que qualquer um está imediatamente habilitado a proferir juízos de valor sobre o que todos e cada um dos filósofos alguma vez afirmou. A Filosofia parece ser aquela área sobre a qual qualquer um pode tecer críticas bem abalizadas, perfeitamente avisadas. O senso comum compreende-se como estando absolutamente legitimado a denegrir um qualquer sistema filosófico, mesmo sem saber nada daquilo que ele considera, bastando ter ouvido dizer que uma ou duas conclusões menos comuns fazem parte desse sistema.

Mas tudo isto é um equívoco. A Filosofia não exige menos técnica, menos esforço, menos trabalho, menos rigor, menos adequação, menos perícia que a matemática, a arte de fazer sapatos, ou qualquer outra ciência ou técnica. Na verdade, a Filosofia encontra na sua aparente acessibilidade um obstáculo que a Química não tem. E, afinal, o filósofo deve precaver-se a cada instante contra aquilo mesmo que torna o trabalho do cientista mais fácil: é que, enquanto este constrói sobre pressupostos, aquele deve procurar evidenciá-los e, tanto quanto possível, evitar ficar enrolado neles...

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Tédio: monocórdico

A propósito do mesmo aqui e em toda a parte... "Em toda a parte como aqui" é o tédio!

Uma citação de Marco Aurélio, Τὰ εἰς ἑαυτόν (Ad Se Ipsum, A si mesmo)


VI, 46:
Ὥσπερ προσίσταταί σοι τὰ ἐν τῷ ἀμφιθεάτρῳ καὶ τοῖς τοιούτοις χωρίοις ὡς ἀεὶ τὰ αὐτὰ ὁρώμενα, καὶ τὸ ὁμοειδὲς προσκορῆ τὴν θέαν ποιεῖ, τοῦτο καὶ ἐπὶ ὅλου τοῦ βίου πάσχειν: πάντα γὰρ ἄνω κάτω τὰ αὐτὰ καὶ ἐκ τῶν αὐτῶν. μέχρι τίνος οὖν;

Tradução:
Assim como te ofendes pelo que se passa no anfiteatro e em lugares desses como sempre se veja o mesmo, e a visão do que é igual faz-se aborrecida, e isso passa-se na totalidade da vida: todas as coisas, de cima a baixo, são o mesmo e do mesmo. Até quando será assim?

Por que estamos aqui?

A propósito de sentido...


John Milton, Paradise Lost, X, 743-54
Did I request thee, Maker, from my Clay
  To mould me Man, did I sollicite thee
  From darkness to promote me, or here place
  In this delicious Garden? as my Will
  Concurd not to my being, it were but right
  And equal to reduce me to my dust,
  Desirous to resigne, and render back
  All I receav'd, unable to performe
  Thy terms too hard, by which I was to hold
  The good I sought not. To the loss of that,
  Sufficient penaltie, why hast thou added
  The sense of endless woes?

Pedi-te, Criador, que do meu barro
Me moldasses Homem?, solicitei-te
Que da escuridão me fizesses vir, ou pusesses
Neste Jardim delicioso? Como a minha Vontade
Em nada concorreu para o meu ser, não seria senão certo
E justo reduzir-me ao meu pó,
Desejoso que estou por resignar e devolver
Tudo o que recebi, inábil para cumprir
Os teus árduos termos, pelos quais tinha de manter
O bem que eu não procurara. À perda disso,
Já castigo suficiente, por que juntaste
A sensação de infinitas aflições?

O caso é que o humano se encontra a si mesmo lançado no mundo... e porquê? Para quê?

Não foi visto nem achado. Ninguém lhe perguntou se queria vir à existência mas deu consigo já em jogo.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O Humano e o começo da Filosofia


A propósito do humano... e da Filosofia...



Uma das obras em grego certamente mais lida é de Diógenes Laércio, sobre a Vida dos Filósofos Ilustres.

Esta obra é muito importante para qualquer um que estude um qualquer filósofo grego e é um manancial de informação sobre a cultura da Antiguidade. Bem, isto agora não interessa nada... O caso é que, qualquer estudante de Filosofia ou de Grego, ou de Cultura Grega, etc., já deve ter-se visto com esta obra, ou pelo menos lido excertos. E, embora seja sobretudo uma obra de consulta, à qual vamos beber um trecho aqui, outro ali, conforme se estuda Tales ou se procuram afirmações de Demócrito - a verdade é que, mais tarde ou mais cedo, damos de caras com o seu início...



Quando me deparei com aquelas linhas tão enigmáticas do Prólogo duvidei do meu grego, com toda a certeza incipiente, e procurei as traduções inglesafrancesaespanhola... Mas todas elas liam o mesmo que eu!!!

Bem, mas afinal que é que diz o nosso jornalista filosófico da antiguidade? Diz uma coisa muito estranha:


Τὸ τῆς φιλοσοφίας ἔργον ἔνιοί φασιν ἀπὸ βαρβάρων ἄρξαι. […]
Λανθάνουσι δ' αὑτοὺς τὰ τῶν Ἑλλήνων κατορθώματα, ἀφ' ὧν μὴ ὅτι γε φιλοσοφία, ἀλλὰ καὶ γένος ἀνθρώπων ἦρξε, βαρβάροις προσάπτοντες.

Bem, se estão a ler o texto, então, de certeza estão admirados...

De qualquer forma, eu fiquei. Esta é a tradução:

"Dizem alguns que o exercício da Filosofia começou entre os bárbaros. […]
Mas, esses desavisados atribuem aos bárbaros os sucessos dos Gregos, com os quais não só a filosofia, mas também o género humano começou."

O que é estranho não é que Diógenes atribua o começo da Filosofia aos gregos. Com certeza que isso é mais ou menos evidente. O que estranhei foram aquelas palavras: ἀλλὰ καὶ, mas também, γένος ἀνθρώπων, o género humano.

Como ler isto? Se Diógenes quisesse dizer natureza humana teria dito φύσις τοῦ ἀνθρώπου. Mas com certeza que ele não estava a dizer que foram os gregos que fizeram o género humano, como se tivessem manipulado um conjunto de genes e dado origem a uma nova espécie.

Fosse o que fosse que quisesse dizer ele estava a afirmar que os Gregos - portanto, já havia Gregos - deram começo a várias coisas, uma das quais o humano.

E Diógenes apresenta as obras dos Gregos como grandes sucessos, coisas bem feitas, τα κατόρθωματα. O termo deriva de ὀρθόςdireito, correcto, certoThe good deeds of someone, we could say. Os feitos dos Gregos incluem o género humano, γένος ἀνθρώπων - e ele não diz  ἔθνος (tribo, povo, nação), mas sim γένος (descendência, raça).

Ainda hoje nós mantemos diferenciadas essas duas raízes de palavras: etnia não se confunde com genética - embora os membros de uma etnia se considerem, normalmente, geneticamente próximos. A etnologia distingue-se do estudo dos genes. Percebemos que os genes não fazem a etnia. A etnia é mais do que isso. Os mesmos genes poderiam dar etnias diferentes. Genes diferentes a mesma etnia. Mas não podemos inferir que, para Diógenes, no termo γένος estivesse a noção de gene, genoma ou genética. Da mesma forma, compreender o ἔθνος como povo ou nação pode acarretar conotações que Diógenes jamais aceitaria.

O que poderá estar Diógenes a dizer?

Poderia estar a afirmar uma tese meramente histórica, como se afirmasse que foram os Gregos que desenvolveram a Filosofia e que, já agora, o primeiro da espécie homem, no sentido de espécie que usaríamos hoje, foi um grego. Será que Diógenes pensava que todos os homens à face da terra eram descendentes dos Gregos? Como se Adão e Eva tivessem sido Gregos? Não nos parece. É que trata-se de uma obra. Algo feito. O humano é fruto do trabalho dos gregos. Resultado da sua ocupação.

Hoje nós julgamos saber que aquilo que somos hoje se deve aos Gregos. Aos Gregos e não só. Mas aos Gregos. Seria isso que Diógenes estaria a dizer? Teria ele consciência de que aquilo a que chamava humano só o era como era, já no seu tempo, por força da obra helénica?

De facto, os Gregos, e nós com eles, tinham a convicção de que tinham inaugurado um acontecimento no mundo. Eram os executantes de uma novidade. Nada do que tinha sido o homem, nada do que tinham sido os bárbaros poderia igualar-se ao que os Gregos fizeram brotar. Seria isso que Diógenes estaria a dizer: que os Gregos foram o princípio de algo completamente novo, radicalmente diferente, a saber, o género humano? Mesmo que antes dos Gregos, e em simultâneo com eles, existissem outros símios sem pêlos, outros animais bípedes sem penas, outros entes com a mesma aparência externa, na verdade a absoluta novidade grega fora o princípio do humano como tal. Seria isso a sua reivindicação?

Provavelmente, isso estaria na mente de Diógenes, o qual, como qualquer grego antigo, estaria consciente da diferença absoluta entre aquilo que a cultura helénica era e aquilo que o bárbaro fora e continuava a ser. O grego era um novo acontecimento, mas de tal modo novo que não poderia ser confundido, nem poderia ser devolvido, ao anterior. O humano surgira na Hélade - estava, talvez, a dizer Diógenes - com uma cultura, uma consciência, um sentido que não poderia ser reduzido ou dissolvido no que era simplesmente o bárbaro, o homem não grego. A singularidade grega não poderia ser, de forma alguma, compreendida sequer como mera possibilidade, alternativa entre outras, do bárbaro.

Mas a que poderá corresponder esta novidade, este hiato, esta diferença? Com certeza já o Génesis falava do homem, da sua geração, do seu princípio. O princípio grego teria de ser diferente, se dava começo a uma nova coisa, ao género humano, diferente do homem.

Sabemos que os pensadores Gregos foram exímios na arte de fazer surgir no humano a consciência de si próprio. Os Gregos fizeram curvar-se sobre si mesmo o impulso para fora do humano. Pelo menos na medida em que tal pode ser possível. Os filósofos não se limitaram a colher da natureza à sua volta princípios unificadores. Não se limitaram a recolher regularidades, a anotar indícios de previsibilidade - aquilo que, em grande medida, era o ancião não grego. O ancião, o xamã, o sacerdote, o homem de sabedoria não grego podia fazer-se um bom conselheiro e até prever eclipses. E os próprios Gregos fizeram isso forma exímia para o seu tempo. Narraram os fenómenos, descreveram a natureza, encontraram nela princípios unificadores. Mas a dada altura deram conta de que um certo ente não se integrava na paisagem como os outros. Os Gregos fizeram sair do pano de fundo morto da paisagem o humano. Deram-lhe existência, fizeram-no vir à tona. O hebreu descrevia naturalmente, e de forma bastante penetrante, a condição humana. Mas descrever a condição humana não é necessariamente o mesmo que investigar a natureza humana. Muito menos o mesmo que reconhecer e identificar a singularidade humana face ao resto.

E é isso que notamos em Diógenes. Diógenes sabe isso. E diz isso. Seja o que for que isso signifique, se quisermos ir mais além no esboço anterior, Diógenes, de facto, diz que os Gregos foram o princípio de algo completamente novo que teve o seu começo na Filosofia... Porque, com certeza, não é por acaso que, falando da Filosofia, diz que não se trata só da Filosofia... No começo da Filosofia está em causa mais do que uma mera actividade, mais ou menos teórica. O sentido dessa tarefa, da Filosofia, é de tal modo que determina um novo acontecimento no mundo: o género humano. Começar a filosofar há-se significar dar começo ao acontecimento do humano como tal. Não que não existissem homens a passear pelo mundo antes da Filosofia. Mas com a Filosofia Grega nasce a consciência disso. O Humano sabe de si, ou melhor, sabe do seu acontecimento e, embora ainda hoje continuemos na senda da determinação disso, é importante que com os gregos essa senda tenha tido começo. Mas é de facto tão importante que permite que Diógenes afirmasse que um dos sucessos helénicos foi, precisamente, o Género Humano. Isto significa que Diógenes, quer estivesse certo ou errado, estava consciente de fazer parte de algo diferente. Muito diferente dos bárbaros. Portanto, o acontecimento grego é de tal modo que os humanos passam a tomar-se a partir de um ponto de vista que se distingue a si mesmo como radicalmente diferente face ao resto. De tal modo que a característica distintiva deste olhar é a consciência de si, nessa diferença de si face ao resto, e a consciência dessa consciência. Diógenes estava consciente disso. A sua tese prova-se a si mesma pelo simples facto de se expor. Ao dizer o que diz Diógenes já mostra isso que está a dizer: o humano compreende-se como uma outra coisa irredutível aos restantes acontecimentos.

Portanto, é isto que Diógenes afirma antes de mais: que há um acontecimento novo. Esse acontecimento pode ser chamado género humano e o seu começo tem tudo que ver com o começo da Filosofia. E o que chama a atenção é que é alguém que se compreende como parte desse próprio acontecimento que indica isso mesmo. Diógenes considerava-se parte do género humano, desta nova coisa que surgira com os Gregos. E tinha consciência disso. A humanidade implica esta consciência de si que garante uma novidade face ao resto. 

A humanidade tal como a concebemos e da qual somos parte, teve início aí. Refutar Diógenes não é muito fácil. Principalmente deve ter-se o cuidado de perceber que a sua afirmação não pode ser catalogada de forma imediata como racismoxenofobiapatriotismoetnocentrismo, e quantos nomes nos lembremos à roda disto... Não vamos aqui desenvolver isto, porque o artigo já vai demasiado longo... Mas é importante que se leia e compreenda o que está em causa na sua afirmação e entender de que modo isso não é nenhuma declaração patriótica nem racista. Porque, muito provavelmente, a noção de humano que hoje entendemos como capaz de nos juntar a todos num mesmo conceito é essa mesma a que Diógenes faz referência. Muito provavelmente, só porque os Gregos começaram por se compreender a si mesmos na singularidade humana é que nós hoje nos podemos compreender a todos como humanos.










segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Por que perdura a arte?

A propósito de arte e estética...

Por que razão certas obras de arte ficam séculos na nossa admiração enquanto outras se desvanecem em menos de um ai?

A discussão, aliás muito interessante, pode ser lida aqui:

domingo, 7 de outubro de 2012

Pensamentos de Marco Aurélio: a irreversibilidade do tempo

A propósito de tempo...


Lembra-te há quanto atiras para longe e quantas vezes, permitindo-te os deuses adiar, não lidaste com isso. Deves desde já sentir de que ordem és parte, que administrador do mundo te fez emanar e que o limite que tu [próprio] és está delineado de tempo, e se não aproveitares a aberta, ela passará, tu passarás e não será permitido voltar atrás.

Marco Aurélio, Ad Se Ipsum, II, 4
Μέμνησο ἐκ πόσου ταῦτα ἀναβάλλῃ καὶ ὁποσάκις προθεσμίας λαβὼν παρὰ τῶν θεῶν οὐ χρᾷ αὐταῖς. δεῖ δὲ ἤδη ποτὲ αἰσθέσθαι τίνος κόσμου μέρος εἶ καὶ τίνος διοικοῦντος τὸν κόσμον ἀπόρροια ὑπέστης καὶ ὅτι ὅρος ἐστί σοι περιγεγραμμένος τοῦ χρόνου, ᾧ ἐὰν εἰς τὸ ἀπαιθριάσαι μὴ χρήσῃ, οἰχήσεται οἰχήσῃ καὶ αὖθις οὐκ ἐξέσται.

Tirteu e a noção de homem...

A propósito de ἀγαθός e outros termos na literatura grega anterior ao século V a.C.

Tirteu, séc. VII a.C.


Tirteu 12W, 15 – 20 - ver grego e tradução francesa aqui; ver tradução castelhana aqui.

 ξυνὸν δ΄ ἐσθλὸν τοῦτο πόληΐ τε παντί τε δήμωι͵
ὅστις ἀνὴρ διαβὰς ἐν προμάχοισι μένηι
νωλεμέως͵ αἰσχρῆς δὲ φυγῆς ἐπὶ πάγχυ λάθηται͵
ψυχὴν καὶ θυμὸν τλήμονα παρθέμενος͵
θαρσύνηι δ΄ ἔπεσιν τὸν πλησίον ἄνδρα παρεστώς·
οὗτος ἀνὴρ ἀγαθὸς γίνεται ἐν πολέμωι.


Tradução para português:

Isto é um bem comum para a cidade e para o povo,
Algum homem firme de pernas abertas entre os que resistem lutando na frente,
Sem cessar, que de todo se esquecem da fuga vergonhosa,
Pondo de lado a vida e o coração afoito,
Que encoraje com palavras o homem mais próximo a seu lado:
Esse vem a ser o homem bom na guerra.


Tradução para inglês:

This is a common good for the city and for the people,
A man that firmly plants himself between those who resist fighting in front,
Unceasingly, they all forget the shameful flight,
Putting aside life and the reckless heart,
That gives words of hope to the closest man at his side:
This turns out to be the good man in war.




O termo ἀγαθός tem aqui um cariz claramente guerreiro. O bem comum é a competência em situação de guerra real. Ser bom é ser bom na guerra

O termo ἀνήρ, homem, deve ser compreendido no sentido de guerreiro. O verdadeiro homem é aquele que faz a guerra de maneira exímia. Mede-se o homem que se é pelas qualidades em guerra.  O bem da cidade reside em possuir homens deste calibre, homens que fazem a diferença na linha da frente. Um homem deve ser firme, incansável, destemido.

O termo ψυχή traduzimo-lo por vida por não possuirmos outra palavra melhor. Poder-se-ia verter por sopro vital. Entretanto, muito se tem escrito, postulado e especulado sobre a noção em causa neste termo - a qual parece ter variado ao longo dos séculos.
ψυχή é, de facto, o sopro vital, sobretudo o último suspiro, quando o vivente expira. A sua semelhança a ψῦχος, frio, é notável. A ψυχή é vida, mas designa sobretudo os mortos - aqueles entes que abandonam o corpo dos que já não são e se encaminham para o Ἅιδης, Hades. Os mortos são frios. A natureza dos mortos é o frio. Os mortos são do mundo invisível, já não estão mais entre nós. Mas o guerreiro não se faz de medo, antes vive a vida no lance pela sua expressão máxima. O cobarde não vive, não tem vida a perder. Só um guerreiro pode apostar porque só ele é.

θυμός é o coração de guerreiro. Força, coragem, robustez, impulsividade - local também da ira do guerreiro. O θυμός é o ânimo forte e inquebrável daquele que não arreda pé. Um homem de verdade não foge. Estaca como estacam as montanhas.

Mas um guerreiro não é um mercenário, não vive só por si. Ele é o bem da sua cidade, o homem do seu povo. Vai na frente, luta na frente, junto ao perigo, lado a lado com o frio. A sua palavra é com o homem do lado. Juntos enfrentam a vida.

O homem bom, o homem de bem é o bom guerreiro. O termo ἀνήρ foi vertido por homem. Mas o que diz é guerreiro.





sábado, 6 de outubro de 2012

Conhecer-se a si mesmo

A propósito de Sócrates...



Então, Sócrates não era parvo quando se procurava a si mesmo, mas são-no todos os que procuram qualquer outra coisa, pois é difícil encontrar o entendimento necessário disso. De facto não se pode esperar ser capaz de alcançar o conhecimento de outra coisa, se não se for capaz de ter em mãos o principal de si mesmo.




Plutarco, Adversus Colotem 1118F:
Οὐ Σωκράτης οὖν ἀβέλτερος, ὅστις εἴη ζητῶν ἑαυτόν, ἀλλὰ πάντες, οἷς ἔπεισί τι τῶν ἄλλων πρὸ τούτου ζητεῖν, ὅτι τὴν γνῶσιν ἀναγκαίαν ἔχον οὕτως εὑρεθῆναι χαλεπόν ἐστιν. Οὐ γὰρ ἂν ἐλπίσειεν ἑτέρου λαβεῖν ἐπιστήμην, ὃν διαπέφευγε τῶν ἑαυτοῦ τὸ κυριώτατον καταλαβεῖν.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Trecho da Metafísica, de Aristóteles

A propósito da verdade e dos nossos olhos...

A investigação acerca da verdade por um lado é difícil, por outro fácil. Sinal disso é ninguém poder tocá-la suficientemente, nem falhar de todo. Mas cada um diz alguma coisa acerca da natureza, e se tomado individualmente pouco ou nada acrescenta, no conjunto de todos vem a ser muito. De facto acontece como se diz no provérbio: ‘quem poderia errar uma porta?’ Desta forma seria fácil, mas ter o todo e não poder ter a parte evidencia a sua dificuldade. Uma vez que existem dois graus de dificuldade, não é nas coisas mas em nós que reside a causa disso. Com efeito, tal como o olho do morcego está para a luz do meio-dia, também a compreensão da nossa alma está para as coisas por natureza mais evidentes de todas.

Aristóteles, Metafísica, 993a30 – b11
ἡ περὶ τῆς ἀληθείας θεωρία τῇ μὲν χαλεπὴ τῇ δὲ ῥᾳδία. σημεῖον δὲ τὸ μήτ᾽ ἀξίως μηδένα δύνασθαι θιγεῖν αὐτῆς μήτε πάντας ἀποτυγχάνειν, ἀλλ᾽ ἕκαστον λέγειν τι περὶ τῆς φύσεως, καὶ καθ᾽ ἕνα μὲν ἢ μηθὲν ἢ μικρὸν ἐπιβάλλειν αὐτῇ, ἐκ πάντων δὲ συναθροιζομένων γίγνεσθαί τι μέγεθος: ὥστ᾽ εἴπερ ἔοικεν ἔχειν καθάπερ τυγχάνομεν παροιμιαζόμενοι, [5] τίς ἂν θύρας ἁμάρτοι; ταύτῃ μὲν ἂν εἴη ῥᾳδία, τὸ δ᾽ ὅλον τι ἔχειν καὶ μέρος μὴ δύνασθαι δηλοῖ τὸ χαλεπὸν αὐτῆς. ἴσως δὲ καὶ τῆς χαλεπότητος οὔσης κατὰ δύο τρόπους, οὐκ ἐν τοῖς πράγμασιν ἀλλ᾽ ἐν ἡμῖν τὸ αἴτιον αὐτῆς: ὥσπερ γὰρ τὰ τῶν νυκτερίδων ὄμματα πρὸς τὸ [10] φέγγος ἔχει τὸ μεθ᾽ ἡμέραν, οὕτω καὶ τῆς ἡμετέρας ψυχῆς ὁ νοῦς πρὸς τὰ τῇ φύσει φανερώτατα πάντων.



Esta é uma das minhas passagens preferidas da Metafísica


O texto é de uma clareza estonteante. Profundamente honesto, directo. As coisas são assim, tal como Aristóteles as diz ser e fico espantado como, por mais séculos que passem, podemos continuar sempre a declarar ἰδοὺ ὁ ἄνθρωπος ecce homo.


É evidente que nem sempre acertamos, e é evidente que nem todos detemos toda a verdade. Mas também é evidente que não falhamos sempre, tal como é evidente que vamos acertando bastantes vezes...

... fica a suspeita de que a dificuldade acerca da verdade resida em nós próprios, na nossa própria constituição, nas nossas estruturas... uma suspeita importantíssima, feita com sinceridade, com honestidade, como quem aponta um caminho.

Tal como o olho do morcego fica cego perante a luz do meio dia, também a nossa compreensão fica cega perante as coisas mais manifestas... E esta, heim?! Que verdade tão poderosa registou Aristóteles... uma verdade que permanece. Perante isso mesmo que mais é manifesto, nós não vemos, ofuscados por essa luz abundante...

O que é a filosofia?

A propósito de Filosofia...


quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Diálogo entre dois convencidos

Acerca da liberdade, do certo e do errado!

O conflito de convicções e a percepção de evidência



Sr. A- Como podes dizer que não queres mudar se não conheces outras coisas? Deverias viver no meu país, onde as pessoas como tu são livres. Tu não sabes o que é isso e por isso dizes que estás bem sem isso.

Sr.ª B- Mas eu não quero conhecer isso! Estou bem como estou, já disse!

A- Teimosa, tu! Viveste toda a vida aqui. Meteram-te na cabeça que isto que conheces é tudo quanto há… mas há muitas coisas mais!

B- Coisas mais? Mais coisas, que mais coisas?! Coisas a mais, queres tu dizer. Tenho o que tenho, quero ter isso e é isso que tenho!

A- Vem comigo e eu mostro-te o que podes vir a ser! Vais mudar de opinião num segundo. Vais ver!

B- Não duvido disso! Acredito que de facto iria mudar de opinião, mas o que me interessa é saber se iria mudar para melhor

A- Poderias escolher… agora não podes!

B- Sim, mas e se a alternativa ao que tenho for má!

A- Não a escolhes. Ninguém te vai obrigar!

B- Não estás a perceber: eu posso ficar a gostar disso que falas e passar a preferir isso… mas quem me garante que nessa altura eu não estaria a iludir-me! Esse teu mundo parece-me ter a capacidade de converter facilmente as pessoas. Mas talvez elas fiquem tão ofuscadas pelo brilho disso que não percebam que estão enganadas! Eu não quero correr o risco de me encontrar numa situação em que estou em erro convencida de que estou certa!

A- Mas isso não pode estar a acontecer precisamente agora?

B- Pode! Mas se é para continuar a ter crenças sem saber se são verdadeiras prefiro manter a minha, porque estou certa de que é verdadeira!

A- Não percebo como podes preferir não ter escolha!

B- É verdade que não percebes, não percebes que a minha escolha é continuar aqui!

A- Não, desculpa! Estás errada. Se conhecesses outra coisa além desta ias ver que não queres realmente isto!

B- É mesmo isso que eu não quero: não quero querer outra coisa!

Aristóteles e Causa (αἰτία)

A propósito dos modos de dizer causa (αἰτία)



Metafísica, 983a 24
ἐπεὶ δὲ φανερὸν ὅτι τῶν ἐξ ἀρχῆς αἰτίων δεῖ λαβεῖν [25] ἐπιστήμην (τότε γὰρ εἰδέναι φαμὲν ἕκαστον, ὅταν τὴν πρώτην αἰτίαν οἰώμεθα γνωρίζειν), τὰ δ᾽ αἴτια λέγεται τετραχῶς, ὧν μίαν μὲν αἰτίαν φαμὲν εἶναι τὴν οὐσίαν καὶ τὸ τί ἦν εἶναι (ἀνάγεται γὰρ τὸ διὰ τί εἰς τὸν λόγον ἔσχατον, αἴτιον δὲ καὶ ἀρχὴ τὸ διὰ τί πρῶτον), ἑτέραν δὲ τὴν ὕλην [30] καὶ τὸ ὑποκείμενον, τρίτην δὲ ὅθεν ἡ ἀρχὴ τῆς κινήσεως, τετάρτην δὲ τὴν ἀντικειμένην αἰτίαν ταύτῃ, τὸ οὗ ἕνεκα καὶ τἀγαθόν (τέλος γὰρ γενέσεως καὶ κινήσεως πάσης τοῦτ᾽ ἐστίν), …



É evidente que, desde o princípio, é preciso adquirir conhecimento das causas (pois, de facto, dizemos conhecer cada coisa quando supomos conhecer a sua causa primeira). Mas a causa diz-se de quatro modos. De acordo com um dos quais dizemos que causa é a ‘coisa’ [própria][1] e o que era para ser[2] (pois, o “porquê[3]” reduz-se à razão última, mas o primeiro “porquê” é causa e princípio). Outro é a matéria e o substrato[4]. O terceiro é a origem ou princípio do movimento. O quarto é o oposto dessa causa: o “em vista do qual” e o bem (pois, isso é o fim de toda a geração e movimento).


[1] Coisa própria: οὐσία. A tradição fixou a tradução por substância, mas em grego designa qualquer coisa. Aristóteles converteu o termo vulgar coisa em termo técnico.
[2] A tradução tradicional da expressão τὴν οὐσίαν καὶ τὸ τί ἦν εἶναι é a substância e a essência.
[3] Literalmente, o através.
[4] Literalmente, o que jaz por baixo.


Os quatro modos de dizer causa não se tratam de três diferentes causas.

Diz-se causa em quatro sentidos distintos e que são:
   Causa formal: τὴν οὐσίαν καὶ τὸ τί ἦν εἶναι: a coisa própria e o que era para ser; substância e essência;
   Causa material: τὴν ὕλην καὶ τὸ ὑποκείμενον: a matéria e o substrato;
   Causa eficiente: ὅθεν ἡ ἀρχὴ τῆς κινήσεως: origem e princípio do movimento;
   Causa final: τὸ οὗ ἕνεκα καὶ τἀγαθόν – τὸ τέλος: o em vista do qual e o bem – o fim.





terça-feira, 2 de outubro de 2012

Pequeno trecho do De Anima, de Aristóteles

A propósito de Alma...


415b8-14
ἔστι δὲ ἡ ψυχὴ τοῦ ζῶντος σώματος αἰτία καὶ ἀρχή. ταῦτα δὲ πολλαχῶς λέγεται, ὁμοίως δ' ἡ ψυχὴ κατὰ τοὺς διωρισμένους τρόπους τρεῖς αἰτία· καὶ γὰρ ὅθεν ἡ κίνησις καὶ οὗ ἕνεκα καὶ ὡς ἡ οὐσία τῶν ἐμψύχων σωμάτων ἡ ψυχὴ αἰτία. ὅτι μὲν οὖν ὡς οὐσία, δῆλον· τὸ γὰρ αἴτιον τοῦ εἶναι πᾶσιν ἡ οὐσία, τὸ δὲ ζῆν τοῖς ζῶσι τὸ εἶναί ἐστιν, αἰτία δὲ καὶ ἀρχὴ τούτου ἡ ψυχή. ἔτι τοῦ δυνάμει ὄντος λόγος ἡ ἐντελέχεια. φανερὸν δ' ὡς καὶ οὗ ἕνεκεν ἡ ψυχὴ αἰτία·


Mas a alma é a causa e o princípio do corpo vivo (ζῶντος). Mas isto diz-se de muitas maneiras, tal como a alma é dita causa por três modos distintos. Com efeito, a alma é causa no sentido do ‘de onde vem’ o movimento, do ‘em vista do que’ e como a ‘coisa própria’ (οὐσία) dos corpos animados (ἐμψύχων). De facto, que é como ‘coisa própria’, é evidente. Com efeito, a ‘coisa própria’ é a causa de ser de tudo, o viver é o ser dos viventes, e a alma é a causa e o princípio dele [i.e., do viver]. Além disso, o ‘ter-se-em-completo’ (ἐντελέχεια) é o sentido daquilo que é poder-ser. E é manifesto que a alma também é causa como ‘em vista do que’.


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