quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Da raposa, das uvas e do humano

A propósito da precisão de ter uma impressão de si genuína...

É o ser humano que é assim como à raposa da estória...

Ao perceber que as uvas estão muito altas a raposa convence-se de que estão verdes, o que, por sua vez, alivia a tensão, pois a pressão para as alcançar desaparece. Ou seja, desistir das uvas tem um efeito parecido ao que teria chegar às uvas, visto que descomprime a vontade da raposa. É certo que o efeito não é exactamente o mesmo, pois, afinal, não conseguiu gozar do prazer de saborear as uvas. Mas, por outro lado, ao direccionar a sua atenção para fitos mais à-mão, a raposa abriu todo um novo horizonte de possibilidades: é certo que não chegará a saborear as uvas, mas, em compensação, poderá saborear muitos outros frutos rasteiros que imediatamente lhe surgirão pela frente aliciando-a a curvar-se, a curvar-se cada vez mais até que acabará, certamente, a comer batatas e outras iguarias subterrâneas.

Assim é o humano, nas palavras de Kierkegaard: "os homens têm uma maior impressão das vacas do que de si mesmos".

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Estado de Banalidade - em Kierkegaard

A propósito da noção de numérico, segundo Kierkegaard

O "numérico" refere-se ao indivíduo que se deixa reger, e guiar na sua vida, por determinações universais. Por exemplo, pela "comunidade", pelo "Estado", pela "espécie". Quando o indivíduo assume para si o regime "numérico" da existência torna-se uma simples cópia do universal: a identidade da cópia define-se pela sua pertença ao universal. O indivíduo é compreendido e compreende-se a si mesmo a partir de determinações universais: pai, filho, médico, cristão, etc. O ponto é que, de cada vez, o sujeito interpreta-se a partir de um universal, quer seja sempre o mesmo, quer existam vários a configurar o seu ponto de vista. Assim, há um conjunto de regras, preceitos, objectivos, etc., previamente determinados, dentro de um certo horizonte de possibilidades, dentro das quais o sujeito escolhe e actua, como se a cada vez a decisão fosse sua, mas, na verdade, está entregue a projectos que não são dele, que lhe são oferecidos de fora.

O sujeito vê-se a si mesmo ora como pai, ora como filho, ora como marido, ora como aluno, ora como médico, ora como cidadão. De cada vez há um conjunto de competências, um perfil do qual deve ser a repetição segundo um conjunto de actividades, um plano, certas acções, comportamentos, etc. No limite, o sujeito "numérico" é um conjunto de camadas, desempenha sempre um ou outro papel - deve ser sensato, ou racional, ou feliz, etc., etc., etc. -, mas não há qualquer profundidade nelas. Se as camadas forem retiradas nada resta, não há indivíduo, não há subjectividade: apenas uma abstracção, um nada que pode ser tudo, que pode adaptar-se a qualquer coisa, assumir qualquer função, singrar no mundo e, sem espinha dorsal, tornar-se o mais bem-sucedido homem de negócios de uma nação, de um país, de um regime, qualquer que ele seja.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Desespero e infinito

A propósito do desespero finito.


A estrutura formal do desespero inconsciente em Kierkegaard é: que o eu, em desespero pelo infinito, desespera sobre algo finito. Entretanto, a inconsciência do desespero em que se encontra pode ser de tal modo que nem mesmo se dá conta de que desespera no finito. Mas o ponto é: quando o fenómeno atinge certa intensidade, o sujeito dará, com certeza, por ele, contudo, faltam-lhe as categorias adequadas para posicionar correctamente o fenómeno: aponta para o finito e diz-se desesperado, e, sendo certo que está em desespero, o desespero em que se encontra não é aquilo a que chama estar desesperado.
Quando o desespero surge na sua categoria, o sujeito dá-se conta de estar no desespero e dá-se conta de si no desespero, de tal modo que percebe que a sua condição é a do desespero - que já e sempre está no desespero, ainda que só agora tenha percebido isso mesmo. O que surge, então, é uma forma de consciência do eu infinito, mas na forma negativa: como não sendo aquilo que desde sempre está destinado a ser - ainda que não faça a mínima ideia do que isso seja. Pois o que assim se evidencia para o sujeito é o seu estado de não-cumprimento de si enquanto estado originário, como condição.

O desespero da nossa época

A propósito da nossa época

A nossa época existe apenas no desejo, no preenchimento do desejo e no regresso ao momento do desejo. Que época tão empreendedora a nossa, porque nunca se pode parar, porque o que conta é sempre o que vem a seguir. O que importa é que se tenha um ponto para o qual se queira ir. Que se tenha algo para desejar, porque parar é morrer. A nossa época vive disto, da incessante remissão como uma carta indefinidamente reenviada, sempre em trânsito, sempre endereçada a algo de outro. Como uma carta que nunca chega, que não pode chegar, porque se houvesse um momento em que esta época não tivesse mais nada para desejar, em que por um infeliz acaso tivesse adquirido tudo aquilo que deseja, em que estivesse perfeitamente satisfeita, simplesmente morreria. Esfumar-se-ia no vazio que ela mesma é, porque ela não é nada, pois é apenas no desejo, na fruição e no regresso ao momento do desejo.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

O macaco que há em cada um de nós

A propósito de macaqueação

Teixeira de Pascoaes, Defeitos da Alma Pátria:
«Sempre que o homem hesita na sua humanidade, aparece o macaco»

Kierkegaard, Querer ser o primeiro:
«tu sentes a falta de algo que se te adiante, não é verdade que tu sentes falta do «rebanho»?, isto é: tu queres ser animal. […], pois tu não queres arriscar; quando, nomeadamente, apenas se percebe ter outros adiante de si, quanto mais melhor, tanto menos se arrisca, ou mais correctamente: no fim de contas não se arrisca de todo, ou mais correctamente ainda: faz-se precisamente o contrário de arriscar. […] cobardes-chico-espertices dos homens, que preferem a macaqueação e a bestialidade»


A ideia parece ser a mesma: que o espírito simiesco - o espírito de imitação em nós - nos persegue para onde vamos, e que sempre que hesitamos, sempre que não somos capazes de estar à altura do que faria de nós humanos, daquilo que seria exigido para sermos indivíduos, para termos um carácter, para formarmos uma personalidade, o macaco em nós toma a condução dos destinos da nossa vida nas suas mãos.

O macaco em nós parece designar, simultaneamente:
- o espírito "imitativo" ou "simiesco" - a tendência do indivíduo para imitar, para seguir a manada, para integrar a massa, para ser rebanho;
- o animalesco, a preponderância das determinações da espécie na vida do indivíduo - e, por isso, também a tendência para ser número, espécime, simples cópia da espécie.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

A cristandade, em Kierkegaard

A propósito da noção de "cristandade" (como "paganismo" mascarado de cristianismo) em Kierkegaard


É conhecida a tese de que "se Deus não existe, a vida não tem sentido". Por vezes, para rebater esta tese, diz-se que mesmo que houvesse uma vida depois da morte, de perfeita felicidade, não seria legítimo medir a vida no mundo por esse critério. É certo. Mas a tese de que o sentido da vida terrena depende da existência de Deus não depende da tese da vida depois da morte. Isto é evidente quando se sabe que havia seitas judaicas que não acreditavam na vida depois da morte. Aliás, no Novo Testamento, Jesus é questionado, precisamente, pelos Saduceus, os quais tentaram levar Jesus a cair em contradição ao admitir a imortalidade da alma.
É perfeitamente possível não acreditar na imortalidade da alma e, ainda assim, manter a tese de que o sentido da vida depende da existência de Deus, ou que Deus é a fonte do sentido da vida.
Muitas vezes, quando os (filósofos) ateus se referem ao mundo judaico-cristão tomam este apenas pelas suas versões mainstream (seja na versão mainstream popular, seja na versão mainstream teológico-filosófica).
O mundo judaico-cristão também tem correntes que não acreditam na imortalidade da alma. Na verdade, o que está em causa em Deus como fonte do sentido não é o facto de Deus fornecer um prémio, ou uma recompensa. Deus funciona como fonte de sentido por ser Deus, por haver um Deus a dar sentido a uma determinada forma de vida - independentemente de dela decorrer uma recompensa ou não. 

Claro que a mentalidade actual, completamente embrenhada na "utilidade", só consegue conceber o judaico-cristianismo sob o prisma da utilidade que esta vida teria para obter outra vida depois. Para Kierkegaard, esta era a forma da cristandade: um paganismo; fazer-se cristão para obter uma recompensa, como qualquer pagão. Para Kierkegaard, esta forma de paganismo - a cristandade - não chegava, sequer, ao estádio ético, pois neste vigoraria a injunção "faz o bem, ainda que não haja recompensa".

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

A narrativa da felicidade

A propósito da felicidade


Que a concepção da felicidade como finalidade da existência é um paradigma historicamente datado, circunstanciado e, por isso, historicamente condicionado - é difícil de perceber. 

Para o comum dos mortais, a felicidade é «analiticamente» o fim de todas as suas acções e a finalidade da própria vida. Um sujeito não só toma como evidente que a felicidade é o fim de todas as suas acções – e, daqui, por passos de mágica, conclui que também "deve" sê-lo – como também não se apercebe que há uma tese aqui: tudo se passa como se a felicidade fosse «analiticamente» a medida do homem. Portanto, também não se apercebe de que há outras teses possíveis – outras teses de que, na maioria das vezes, não faz a mínima ideia. Pois, que outra coisa se poderia querer senão a felicidade? Na maioria das vezes, esta mesma pergunta permanece surda, mesmo que alguém a formule, porque o sujeito não consegue pensar em nada que se queira que não seja por mor da felicidade. 

É um caso de completa "sistemática elisão das possibilidades alternativas" (Mário Jorge de Carvalho)... o sujeito está embalado numa compreensão que está cega para as alternativas!

domingo, 3 de setembro de 2017

Narrativa da Felicidade, o mito de Aristóteles

A propósito da felicidade.


Para Nietzsche, a própria ideia de que a felicidade é algo que se deseja e que constitui a finalidade da nossa existência é uma marca da decadência de uma cultura.

Para Kierkegaard, a busca pela felicidade é, na verdade, uma forma de desespero.

Para Kant, a busca da felicidade faz-nos esquecer a dignidade - o fim autêntico da vida humana.

Três autores muito diferentes entre si, mas que concordam em discordar da narrativa da felicidade que se impôs no ocidente desde Aristóteles.


«A felicidade como fim último da vida individual. Aristóteles e todos os outros!» Nietzsche, Fragmento póstumo, 7 [210]

Afecto e exibição nas redes sociais

A propósito da intimidade nas redes sociais.


A intimidade é tanto exibição quanto afecto.
Para um casal, mostrar proximidade significa apresentar uma narrativa de felicidade ao mundo. O casal sente necessidade de constantemente validar a sua intimidade, afirmar a própria existência.
A melhor expressão desta intimidade é a selfie.
É certo que sempre foi assim, mas hoje vive-se com mais intensidade a dimensão da exposição, da exibição, porque os meios para isso estão mais presentes na nossa vida e têm mais poder de exposição do que nunca. Quanto mais poder de exposição se tem, maior é a necessidade interior de exibir a intimidade para assegurar a sua existência.
A coisa está tão exacerbada que, se por um passe de mágica o facebook acabasse amanhã, provavelmente teríamos o maior boom de rompimentos e divórcios da história... 



sábado, 2 de setembro de 2017

A experiência como acontecimento anónimo de si

A propósito de experiência de vida...

A experiência de vida é um dos bois de ouro do nosso século. As pessoas acreditam que a experiência lhes ensina coisas, e não só isso, acreditam que a própria experiência é conhecimento. Acreditam até que a experiência é um bom critério para decidir como hão-de levar a vida e deixam-se guiar, assim, pelas experiências da vida. As pessoas depositam a sua confiança na experiência e julgam que ela é inabalável - a não ser, claro está, por outras experiências que venham a refutar a primeira... As pessoas pensam que aprendem com os acontecimentos e que vão formando, progressivamente, uma sabedoria de vida assim acumulada.

Basicamente, a experiência corresponde ao rosto da vida tal como é anonimamente oferecido ao sujeito. A experiência de vida é algo que já está inscrito na vida natural - quer dizer, um sujeito não tem de fazer nada para a adquirir: basta que se deixe estar na vida que ela há-de providenciar experiências. Depois, claro, depende daquilo que a vida trouxer, pois será nisso que se adquire experiência.

Mas, no essencial, quando as pessoas invocam a "experiência de vida" como testemunha e como prova, isso só mostra uma coisa: que as pessoas deixam que a sua vida seja conduzida anonimamente... E este é só mais um exemplo.


Sugestões

A propósito de leituras

1. De Sara de Oliveira, a tese O sentido do espírito no humano: Estudo sobre a determinação antropológica na obra de Kierkegaard
Tese muito bem conseguida. Oficialmente sobre a noção de espírito, em Kierkegaard, a tese vai, na verdade, muito para além disso. Ou melhor, o esclarecimento cabal do que está implicado na noção de espírito implica o esclarecimento de muitas outras noções - como é evidente - e esta tese consegue um extraordinário entrelaçamento de temas e conceitos que faz dela, provavelmente, o melhor trabalho de investigação sobre Kierkegaard que eu alguma vez li.


2. De Marisa Moura, o livro O que é que os portugueses têm na cabeça?
Livro ligeiro muito bom. Uma crítica capaz, não superficial, abrangente e com rigor. Apesar das fontes usadas serem, em grande parte, do âmbito da imprensa, e não, propriamente, académicas, o resultado global é uma obra sólida e ampla sobre a mentalidade, o espírito e o perfil dos portugueses, não só na actualidade, mas também na sua formação ao longo dos séculos - e milénios.




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