Mostrar mensagens com a etiqueta Filósofo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Filósofo. Mostrar todas as mensagens

sábado, 20 de outubro de 2018

Trump no Montana e outras estórias

A propósito da natureza humana


Então Trump foi ao Montana dizer que quando um dos seus apoiantes deu uns sopapos num jornalista pensou "é pá, isto é capaz de ser mau para a sua campanha", mas depois logo reconsiderou: "ah, isto foi no Montana: até é capaz de o favorecer". E tendo dito isto, o público, gente do Montana, aplaude e ri-se.
Eu nem sei bem quantas camadas de ironia se sobrepõem neste episódio! Ainda falam da falta de cultura de Trump. A capacidade de Trump para as figuras de estilo suplanta os mais extraordinários escritores. Onde é que encontramos em Eça uma ironia com este nível de densidade??? Trump vai muito à frente!

Mas Trump revela, mais uma vez, aquilo que eu temia: ao contrário do que supõem muitos intelectuais, Trump conhece muito melhor a realidade Americana, e a realidade do povo, do que os intelectuais e classe dos comentadores.
Já perdi a conta àqueles que num momento ou noutro declararam que "não, as pessoas não votam nele por apoiarem a violência, ou por serem racistas", ou que "não, não, as pessoas não querem o que ele diz, apenas confiam que ele diz mas não faz".
Mas Trump, que não se deixa iludir com parvoíces pseudo-rousseaunianas, conhece muito melhor as pessoas do que os analistas. Trump não presume, como presumem os comentadores, que as pessoas do Montana são basicamente anti-violência e que iriam castigar nas urnas um candidato que desanca um jornalista!!! Trump sabia muito bem que as pessoas adoram esse tipo de espectáculo, e não só não condenam uns sopapos bem dados num jornalista, como logo se disponibilizariam para revesar o candidato e darem elas mesmas uns sopapos no jornalista.
Trump também não presume, como presumem os comentadores, que as pessoas do Montana não gostariam de ser vistas como adoradores de sopapos!!! Pelo contrário, ele diz na cara das pessoas do Montana que acha que elas são do tipo de pessoas que ficam contentes quando um candidato dá uns sopapos num jornalistas, e as pessoas do Montana acham piada e aprovam que o presidente fale com elas nestes modos familiares.

Trump sabe muito bem - como já sabiam Freud, Nietzsche, e até Schopenhauer - que o ser humano tem uma afinidade natural com a violência. E tem uma afinidade especial com o espectáculo, com a publicidade - porque, como dizia Kierkegaard, o humano tem uma tendência natural para ser "público". Ou, como dizia Heidegger, o humano, no início e na maioria das vezes, é "das Man". Como sabiam Óscar Wilde e Fernando Pessoa, o ser humano tem tendência para ser "a gente". O sujeito prefere ser "a gente" do que ser ele mesmo, quanto mais não seja porque sendo "a gente" pode-se ser o que quiser, sendo nada.
E Trump sabe todas estas coisas para as quais muitos, desde há muito, nos tentam alertar. Mas a classe dos comentadores de hoje, desde os jornalistas aos "especialistas políticos" e passando pelos intelectuais, esqueceu ou desconsidera essas lições profundas que encontramos em Freud, Nietzsche, Schopenhauer, Kierkegaard, Heidegger - porque o intelectual de hoje só acredita que o cidadão pode votar livremente num ditador, ou num fascista, ou num racista, depois dele ter ganho... e mesmo assim ainda tentará mostrar que, na verdade, as pessoas não queriam votar em Trump, ou em Bolsonaro, ou já agora em Hitler, foram mas é enganadas...

Nisto tudo tiro o meu chapéu a Trump: tem menos preconceitos do que muitos daqueles que o acusam de ser preconceituoso; e parece perceber muito melhor como funciona o ser humano do que todos os comentadores juntos.

sábado, 17 de março de 2018

Sobre a obrigação incondicional da existência futura da humanidade e o dever de reprodução


A propósito do dever de reprodução



Margaret Atwood, O Conto Da Aia

A humanidade atravessa uma das maiores crises da sua história: deixou de ser capaz de se reproduzir. Ou mais correctamente: as mulheres deixaram de ser capazes de procriar. Pelo menos, uma parte delas. Uma grande parte delas. A maior parte delas.
A maior parte das mulheres tornou-se infértil. Só uma pequena percentagem das mulheres ainda é capaz de se reproduzir.
Correspondentemente, surge um regime pragmático, prudencial, que rapidamente se apropria das mulheres férteis e as transforma em máquinas reprodutoras.

Hans Jonas, no livro O princípio da responsabilidade, defende que a existência não é um direito, mas sim um dever - um dever que inclui o dever de reprodução, pois a existência futura da humanidade é uma obrigação incondicional.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

A aporia socrática

A propósito de aporia


«apressar-se para conhecer outras coisas sem se conhecer a si mesmo é risível»
Olimpiodoro

Olimpiodoro sugere que o início da filosofia esteja no conhecer-se a si mesmo, ou melhor, no reconhecimento da aporia em relação a si mesmo. A aporia seria, assim, um estágio. O reconhecimento da própria ignorância trata-se, assim, de um meio que visa um fim, não é um fim em si mesmo. O reconhecimento da ignorância é, para os platónicos, e a começar pelo próprio Platão, uma porta de entrada para o conhecimento, porque é o começo da perseguição, a instalação do sujeito numa situação de "amor" - no sentido particular que o amor sempre tinha para os gregos.

Mas se virmos bem, de Platão em diante, há já sempre algo que não encontramos em Sócrates. Sócrates aponta, precisamente, para a aporia como estabelecimento de algo de novo em relação ao que há antes disso. A ignorância. Convém lembrar que "aporia", em grego, poderia significar caminho de difícil transposição, mas também sem saída. O que está em causa é, precisamente, algo de difícil acesso, mas também algo de onde só muito a custo se poderá sair, e de onde pode não se ter ângulo de visão para qualquer saída.

É discutível que Sócrates considerasse a aporia um estágio, algo como um mero ponto de passagem. Porque é discutível que Sócrates aceitasse que a verdade pode ser aprendida e, por isso, é discutível que aceitasse que pudesse haver, de facto, "conhecimento". Pelo menos, conhecimento no sentido grego do termo: algo que efectivamente se sabe.

Certo é que Sócrates achava que só quem se desse conta da sua própria ignorância poderia, de facto, começar a procurar conhecer - mas daí não se segue que a aporia seja um mero local de passagem: pois, para que o seja, é preciso admitir que é possível conhecer. Não é certo que Sócrates aceitasse que alguma vez se pudesse conhecer alguma coisa.

Pode acontecer que o estado mais próximo do conhecimento em que nos possamos encontrar seja, precisamente, o estado em que estamos em perseguição. E parece ser para qualquer coisa desse tipo que Sócrates aponta - embora, evidentemente, também isso não seja dito por ele, nem o poderia ser, porque para poder afirmar isso teria de presumir saber.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Nietzsche e a Verdade

A propósito de Nietzsche e da vontade de verdade


Nietzsche não nega que exista no humano um requisito de verdade. Pelo contrário, ele insiste, justamente, na força dessa "vontade de verdade", no vínculo aparentemente inquebrável do sujeito humano à vontade de verdade.
Acontece que Nietzsche reconhece também que o humano não está em condições de satisfazer essa petição que está incluída na sua própria estrutura - razão pela qual "a verdade mata à distância, como as setas de Apolo".
A verdade mata porquê? Porque a vontade de verdade foi sendo satisfeita ilusoriamente graças à pretensão de verdade: as ilusões, na medida em que têm a pretensão de verdade, na medida em que se apresentam como verdade, satisfazem a vontade de verdade - mas apenas na condição de o sujeito estar na inconsciência. Ou seja, a satisfação da vontade de verdade está dependente da permanência da ilusão de verdade. O problema é que a vontade de verdade quando atinge um certo desenvolvimento começa a desocultar o carácter ilusório e falso das pretensas verdades em que se sustenta. Por isso mesmo, a vontade de verdade é auto-destrutiva, porque o seu destino só pode ser descobrir-se incapaz de cumprir os seus próprios requisitos.
Ora, visto que Nietzsche admite que o sujeito humano não é capaz de se manter conscientemente numa ilusão que sabe ser ilusão, num sonho que sabe ser sonho, a vontade de verdade mata - porque deixa o sujeito entregue ao nihilismo, à morte dos seus ídolos, à morte de Deus, da Verdade, da Metafísica como um todo, e isso só pode significar a desorientação, o caos, o vazio, o nada.
Portanto, Nietzsche não nega que a verdade é algo absolutamente importante para o humano... E é precisamente por isso é que começa toda aquela conversa acerca da superação do humano, do sobre-humano. É que o humano está tão dependente da verdade que só ultrapassando-se a si mesmo pode superar a vontade de verdade. Ou seja, a vontade de verdade é tão vinculativa, tão radical no humano que a sua ultrapassagem só pode ser conseguida através de uma transformação radical do modo-de-ser humano.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Da confusão das esferas, segundo Kierkegaard

A propósito de como distinguir um apóstolo de um louco, um religioso de um fanático, e de como o religioso se torna demoníaco, e o demoníaco se torna religioso...


«Pastores "cristãos" é aquilo que será necessário, também em relação ao maior de todos os perigos, o qual está muito mais próximo do que podemos acreditar - nomeadamente, que quando a catástrofe se espalhar e se tornar num movimento religioso (e a força do comunismo, obviamente, é o mesmo ingrediente que está, demoniacamente, potencial na religiosidade, mesmo na religiosidade cristã), então, como cogumelos depois de uma chuva, irão aparecer personagens demoniacamente treinados que logo farão de si mesmos, presunçosamente, apóstolos, a par com "os apóstolos", uns poucos que também assumirão a tarefa de aperfeiçoar o Cristianismo, logo se tornado eles mesmos também fundadores religiosos, inventores de uma nova religião que agradará ao tempo presente e ao mundo de uma maneira completamente diferente do "ascetismo" do Cristianismo. A era dos ataques académico-científicos ao Cristianismo já tinha acabado antes de 1848, nós já estávamos profundamente embrenhados na era dos ataques da paixão, dos ataques dos ofendidos. Mas isto não é o mais perigoso; o mais perigoso chega quando os próprios demoníacos se tornam apóstolos - qualquer coisa como os ladrões se fazerem passar por polícias - e até mesmo fundadores de religiões, os quais terão um ponto de apoio terrível numa era que é de tal modo crítica que do ponto de vista do eterno é eternamente verdadeiro dizer o seguinte dela: O que é preciso é religiosidade - isto é, a verdadeira religiosidade; contudo, do ponto de vista demoníaco, a mesma idade diz acerca de si mesma: É de religiosidade que nós precisamos - nomeadamente, religiosidade demoníaca.»


Kierkegaard, Journals & Papers, X6 B, §41

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Sou livre quando escolho o mal?

A propósito de liberdade...


Questão muito pertinente - apesar de, como se sabe, ser tão antiga quanto a filosofia, não tendo surgido com Kant: vejo o bem e aprovo-o mas sigo o mal... sou livre?

A resposta do senso-comum, normalmente, é que "sim". À primeira vista, pensamos que somos livres quando temos alternativas e escolhemos uma delas. Quer dizer, pensamos que somos livres independentemente de termos escolhido uma ou outra das alternativas - aliás, é justamente nesta abertura indiferente que colocamos a noção de liberdade: a olho nu pensamos que a liberdade reside, justamente, na escolha enquanto tal, de modo que quer eu escolha A ou não-A, sou livre na medida em que tive escolha e pude escolher.
Curiosamente, a resposta tradicional da filosofia é, justamente, a oposta. Tradicionalmente, há condições que têm de se verificar para se poder dizer que um sujeito é livre, mesmo quando este tem a experiência imediata da sua liberdade. Quer dizer, do ponto de vista filosófico, a experiência interna da sensação de liberdade não assegura que o sujeito seja livre. Kant encontra-se nesta tradição longa que tenta identificar requisitos "fenomenológicos" - requisitos que o sujeito possa identificar - para assegurar ou, pelo menos, indiciar que "sou livre".
Mas a resposta de Kant é original - na medida em que se pode dizer que há originalidade na filosofia, pois quando vamos a ver bem, já houve sempre alguém que disse qualquer coisa semelhante antes...
O resposta de Kant tem que ver com a natureza, primeiro, da moralidade e, segundo, da eticidade. Não interessa aqui analisar em pormenor a diferença que Kant estipula entre estes dois âmbitos, basta-nos um esboço. A lei moral é o âmbito da lei que está imbuída de autoridade racional. A lei moral é o âmbito geral das leis práticas dadas pela razão com força de validade universal. Diz Kant que dentro da moral há leis de carácter jurídico e leis éticas. A lei ética tem a particularidade de produzir, por si mesma, sentimento. Ou seja: a representação que o sujeito faz de uma lei ética para si mesmo produz, por si mesma, um sentimento mobilizador - um impulso mobilizador. Então, o que caracteriza a lei ética enquanto tal é ser ela um ideal que o sujeito reconhece como sendo aquele a cuja execução se deve propor e, além disso, também actua imediatamente sobre a sua faculdade de desejar. 
Quer isto dizer que a lei ética desempenha, para o sujeito, o papel de um "ideal" com que o sujeito se quer conciliar (ele não se limita a reconhecer a sua validade, como no caso das leis meramente jurídicas - o sujeito quer efectivamente, uma lei chama-se ética quando ela, além de validade universal, também determina imediatamente a sua vontade apresentando-se ao arbítrio - à faculdade de escolha - como princípio determinante).
Ou seja, segundo Kant, se só houvesse no homem o princípio do bem, o sujeito faria sempre o bem (o que, aliás, é mais ou menos evidente). O problema é que, do ponto de vista antropológico, a vontade nunca é pura: o homem não é res integra, mas sim uma vontade heterogénea. Então, o sujeito pode, efectivamente, escolher não seguir o princípio do bem, não seguir a lei ética, ou segui-la, não em função dela enquanto móbil, mas porque coincide com as inclinações propriamente físicas (que, no geral, são uma disposição para a felicidade). Mas então, em conformidade com tudo o que se disse antes, não há outra possibilidade senão considerar que o sujeito que fez isto não foi livre: ele reconhece que quer seguir o ideal ético (sem este reconhecimento, não haveria nenhum dever posto enquanto tal e, portanto, também não haveria transgressão) e, ainda assim, não o faz.
Parece, então, que segundo Kant a liberdade consiste em escolher o bem... De facto, esta interpretação é a que geralmente acontece, mas Kant quando tem de discutir o assunto da liberdade em rigor diz mais do que isso.
Efectivamente, ao escolher o bem o sujeito seguiria aquilo a que ele mesmo reconhece dignidade, de modo que está em conformidade consigo mesmo (ao contrário do que acontece com a transgressão). Portanto, em sentido derivado, pode dizer-se que o sujeito é livre "se de facto, seguiu a lei moral enquanto móbil supremo", ou seja, se de facto agiu exclusivamente segundo o móbil que a lei ética é, "seguir o Dever por dever". No entanto, Kant diz que o sujeito nunca sabe quando de facto assim foi. Mais: Kant pensa que muito raramente conseguimos agir apenas por dever sem outros móbiles à mistura. Kant afirma mesmo, várias vezes, que é bem provável que nunca ninguém tenha efectivamente agido exclusivamente por dever... Isto significaria, então, que nunca ninguém é, empiricamente, de facto livre - ainda que, metafisicamente, isso seja sempre possível.
Contudo, na análise rigorosa do que é a liberdade, Kant conclui que, afinal, esta também não pode ser identificada com a escolha do bem. A Liberdade consiste no "poder escolher". Ou melhor: em rigor,  a Liberdade consiste no "poder escolher O Bem", visto que, escolher o mal, será o abandono da liberdade.  O que acontece é que, quando o sujeito contrai o mal - isto é, quando acolhe a máxima que se opõe à máxima do dever - o sujeito, voluntariamente, recusa a sua liberdade (isto é, a faculdade de se determinar independentemente de móbiles empíricos, externos à lei ética). Assim, em rigor, a liberdade consiste no "poder". Liberdade é Poder. Mas, enquanto poder, é apenas formal: no concreto da vida nós ou escolhemos o mal, e então, voluntariamente, recusamos ser livres, ou escolhemos o bem, e acolhemo-nos a nós mesmos (acolhemos o ideal que temos de nós mesmos)... Como se sabe, Kant pensa que isto é sempre possível - pois que a liberdade significa, formalmente, isso - mas, considerando os elementos da antropologia, na maioria das vezes o sujeito deita fora a sua própria liberdade.
Este problema também é complexo, porque, segundo Kant, este "lançar fora" não pode querer dizer que a liberdade desapareceu, como se o sujeito não pudesse nunca mais escolher o bem, corrigir-se, etc. Mas, por outro lado, Kant diz que a disposição para o mal é uma "propensão", o que significa que é uma tendência para criar uma inclinação: ou seja, se eu faço o mal serei cada vez mais determinado por ele, como acontece com os vícios em geral. Ou seja, é sempre possível um sujeito corrigir-se, mas isso torna-se cada vez mais difícil no concreto.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Nietzsche e Kierkegaard - e a morte dos valores

A propósito de cadáveres.

Um dos erros espantosamente comuns nas análises e comentários a Nietzsche é supor que ele nega a existência de valores. 


A atitude que nega a existência de valores é aquilo a que ele chama Niilismo, mas esta negação é aquilo que teme acima de tudo. Nietzsche nega, sim, o valor daqueles ideais que não estão em condições de preservar um sujeito do Niilismo.


Portanto, Nietzsche também não é niilista. O que ele diz é que há ideais a que damos valor que, na verdade, não têm valor. Ou seja, nós tendemos a usar como valor algo que apenas aparentemente é valor. Por isso, é preciso mostrar que aquilo a que normalmente chamamos valor não passa de uma construção aparente de valor. É isso que Nietzsche faz. Ora, como normalmente nós pensamos que essas coisas são valores, e Nietzsche nos mostra que não são, tendemos a pensar que Nietzsche está a dizer que não há valores - mas, na verdade, ele está apenas a dizer que aquilo que nós julgamos serem valores não são.




Assim, Nietzsche é, de facto, um destruidor de valores - no sentido em que Jeremias era o profeta da destruição de Jerusalém: o que Nietzsche pretende é salvar a capacidade do humano para avaliar, julgar e valorizar. Para isso é necessário destruir os falsos valores.


Nietzsche mostra, livro atrás de livro, que nós estamos num estado de indiferença tal que já nenhum valor nos causa impressão, nenhum valor nos diz nada. Ainda falamos desses valores que outrora foram importantes, mas falamos deles da mesma forma que os papagaios: já nada significam para nós. Não há ligação íntima entre aquilo de que falamos e o modo como nos sentimos - e há ainda menos ligação entre aquilo que pensamos e aquilo que somos.


Esta crítica foi também feita por Kierkegaard. Segundo Kierkegaard, continuamos a falar de valores que surgiram em determinadas épocas e em certas sociedades, mas já não há qualquer nexo espiritual que lhe doe validade. Nas suas palavras, é como se tivéssemos à nossa frente um cadáver, um corpo sem alma, mas esperássemos dele que ainda se movimentasse e cumprisse as funções de um vivente.


Há um conjunto de determinações éticas que foram evidentes durante séculos, que estruturaram e deram forma ao mundo ao longo de centenas de anos - mas das quais só retemos os nomes, as palavras, de modo que já não fazem parte da evidência vital que temos hoje... Embora nós continuemos a usar os termos antigos, a evidência vital de outros tempos é apenas simbólica, oca, vazia, morta - de modo que já só se move por inércia.


As semelhanças na expressão de Nietzsche e Kierkegaard são imensas. 


Ambos teimam em que mantemos casmurramente uma linguagem supostamente ética, supostamente valorativa, mas de tal modo que já nenhuma categoria ética lhe corresponde: mantemos uma tradição morta: já não temos a visão-de-vida, as preocupações, os interesses ou as paixões que deram vida à terminologia ética que ainda usamos.


Os dois anteciparam aquilo que Anscombe e MacIntyre também vieram a dizer... 


Mas Anscombe e MacIntyre parecem ter chegado atrasados, não porque pretendem ter descoberto algo que já foi dito, de forma mais clara e veemente, um século antes, mas sim porque a situação já é diferente... Nietzsche e Kierkegaard tinham razão ao descreverem uma situação que existia no seu tempo, e talvez há séculos, mas entretanto foi ultrapassada (e já parecia ultrapassada em 1968 - vide Modern Moral Philosophy)...


O que se passa hoje já não é apenas a vigência de determinações como sendo doadoras de sentido mas que já não doam efectivamente sentido - o que se passa hoje é que essas determinações foram absolutamente abandonadas e se aderiu ao seu contrário

A nossa situação de hoje já não é aquela a que Kierkegaard e Nietzsche faziam referência, mas sim uma intensificação dela: a evidência vital que durante séculos configurou o mundo e que, durante outros tantos séculos, se manteve simbolicamente como um cadáver, já está definitivamente enterrada, foi abandonada definitivamente e adoptou-se a evidência contrária.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

O dinheiro como medida do humano

A propósito do artigo de Habermas

A "dissolução da política na conformidade com os mercados" (Habermas) da Europa, o "primeiro os negócios, depois a política" de Paulo Portas - são apenas aspectos de algo radicalmente impresso na contemporaneidade: o desaparecimento da ética. A completa e absoluta dissolução do humano na economia. Hoje, se há princípios, são os da economia; se há consciência, é uma preocupação económica; se há valores, são os monetários; se há uma medida do humano é o seu sucesso financeiro.
Um sujeito mede-se pelos seus cifrões.
A dissolução da ética nos negócios acarreta como consequência a dissolução da política nos mercados.


Houve tempos em que se dizia que "uma vida não examinada não serve ao humano". Mas hoje o homem comeu do fruto do conhecimento e descobriu que "uma vida sem lucros não merece ser vivida". A validade do sentido da vida é comensurável com o dinheiro que se tem e movimenta.

sábado, 20 de junho de 2015

A ética em Fichte



"Defende-se que a mente humana se encontra a si mesma absolutamente compelida a fazer certas coisas independentemente de qualquer fim externo, mas pura e simplesmente para as fazer, e a evitar fazer outras coisas de modo igualmente independente de quaisquer fins externos, pura e simplesmente para as deixar por fazer. Na medida em que tal compulsão se manifeste necessariamente nos seres humanos apenas por serem seres humanos, constitui aquilo a que se chama natureza moral ou ética dos seres humanos enquanto tal."

Fichte, O sistema da ética

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A liberdade como milagre privado: sobre a indiferença da vontade

A propósito de: Indiferença; Liberdade; Milagre Privado; Não-indiferença.


A liberdade como milagre privado: sobre a  indiferença da vontade
Luís Mendes

O autor estuda a noção de liberdade como milagre privado, segundo Leibniz. O homem é capaz de milagres, i.e., ser-se humano é ser-se capaz de liberdade. A vontade livre está sempre inclinada, mas é capaz de ser excepcional e de se soltar das amarras que a escravizam às coisas exteriores. A mente humana é capaz de produzir o imprevisível (excepto para Deus). O humano é, por princípio, capaz de se assenhorear de si e de se determinar ao que de melhor lhe é possível, ainda que na maioria das vezes se deixe afundar no mar das paixões.

Artigo disponível em http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/doispontos/article/viewFile/35134/23545

«Neste texto tentar-se-á determinar a noção de liberdade como milagre privado, expressão utilizada por Leibniz num pequeno texto sem título original escrito na última metade da década de 1680.»

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A consciência de si e o desespero inconsciente, segundo Kierkegaard

A propósito de consciência de si, contradição, decisão, desespero, idealidade, imediato, interioridade, Kierkegaard, síntese


A CONSCIÊNCIA DE SI E O DESESPERO INCONSCIENTE, SEGUNDO KIERKEGAARD


A tradição cartesiana identificou um conjunto de condições para que se possa dizer que um sujeito está consciente de si. Simultaneamente, procurou a consciência de si num acompanhamento de si ao modo do pensamento. Ora, do ponto de vista de Kierkegaard, os requisitos cartesianos da consciência de si não são cumpridos na concepção de consciência da própria tradição cartesiana. É precisamente isso que se evidencia com a noção de desespero inconsciente. Neste estudo, procura-se determinar em que condições é possível falar de estar consciente de si, segundo Kierkegaard, o que conduzirá a uma multiplicidade paradoxal. Para se compreender o que está em causa estudar-se-á a estrutura sintética e heterogénea do humano. Em última análise, os requisitos da constituição da consciência de si, porque o são do si, só se cumprem numa certa forma de desconhecimento de si que corresponde a uma forma de consciência de si em que nunca se está certo e seguro de si, mas que passa pela decisão na interioridade.


SELF-CONSCIOUSNESS AND THE UNCONSCIOUS DESPAIR, ACCORDING TO KIERKEGAARD


The Cartesian tradition identified a set of requirements for self-consciousness. At the same time, it sought the self-consciousness in the self-monitoring mode of thought. So, according to Kierkegaard’s point of view, the Cartesian requirements of self-consciousness are not accomplished in the conception of consciousness of the Cartesian tradition itself. That is precisely what is shown with the notion of unconscious despair. In this study, it sought to determine under which conditions it is possible to speak about being self-conscious, according to Kierkegaard, which will lead to a paradoxical multiplicity.To understand what it is at stake we will study the heterogeneous and synthetic structure of the human. Ultimately, the requirements for the constitution of self-consciousness, because they are of the self, only meet in a certain form of lack of knowledge of the self that matches a certain form of self-consciousness in which one is never certain and sure of himself, but which passes through the decision in inwardness.


Dissertação de Mestrado de Luís Filipe Fernandes Mendes com orientação do Prof. Nuno Ferro.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O filósofo hodierno

A propósito da filosofia nos dias de hoje... A filosofia Hoje.


Hoje há um pressuposto que se difunde entre professores de Filosofia. Um pressuposto que eles não aceitariam. Na verdade, um pressuposto contra o qual estariam dispostos a escrever artigos para revistas e até a dar um ou outro colóquio. Mas esse pressuposto é por eles usado quotidianamente, numa base regular de cegueira e conformação.


Qual é esse pressuposto? O pressuposto é o de que só quem tem teses que deseja defender é que tem direito a discutir assuntos. Segundo este pressuposto, quem não tiver um pensamento minimamente "objectivo" deve calar-se. Com isto pretende-se que para se ter o direito de discutir tem que se ter uma opinião fixada. A discussão para eles é duas teses que se opõem. Na verdade só assim compreendem a filosofia: como uma contínua luta entre pessoas que têm as suas ideias fixas e que, na verdade, jamais mudarão de opinião.


Como este pressuposto é algo que raramente trazem à luz da sua própria consciência, ele tem uma vida latente e inconsciente assumindo formas que não poderia assumir logicamente. Por exemplo, os professores de filosofia partem sempre do princípio que o outro com quem discutem deve ter uma tese - ou seja, simplesmente assumem que ele TEM uma tese. Se, por qualquer motivo, parecer que o outro nada defende e aponta deficiências por todo o lado, então imediatamente concluem que o outro tem a tese de que não há teses verdadeiras. Ou seja, para eles o outro tem uma tese, e se não lhe conseguem apontar nenhuma, acusam-no de pensar que nenhuma tese é verdadeira. E depois seguem no seu caminho de ataque, atacando a tese de que não há teses verdadeiras... assumindo, claro está, que o outro tem esta tese. Como não conseguem conceber outra hipótese têm de conceber o outro como uma tese.


Os filósofos de hoje não têm qualquer noção verdadeira do que seja "suspensão indagatória". Concebem a crítica como uma crítica à posição do outro. Os filósofos de hoje não conseguem conceber a crítica senão como um olhar agudo sobre a tese do outro e ficam atarantados sempre que surge alguém que não pretende defender a fixação da sua verdade: começam logo a gritar contra a "ausência" de objectivismo, contra a impossibilidade de chegar a uma verdade... como se o outro, quando se assume realmente na dúvida, estivesse a dizer que SABE que não há nada de verdadeiro... Mas é este pensamento que é, de facto, curioso. Muito curioso.

O filósofo actual é alguém que tem a filosofia como uma espécie de fixação. Não concebe a possibilidade de estar num labirinto. O filósofo hoje é aquele que tem muitas teorias, sabe sempre o que defender em todas as matérias, nunca se sente como um peixe fora de água. A dúvida é qualquer coisa que usa para demolir preconceitos (ou seja, as ideias dos outros), mas que jamais ousa supor que ela é necessária relativamente às determinações da sua própria tese. Não lhe passa pela cabeça - embora passe, de facto, pela língua - que a filosofia deva ser uma suspensão indagatória precisamente no sentido em que se deve manter atenta às suas próprias confusões, aos seus ângulos mortos, às suas zonas escondidas... É que o filósofo hoje já não tem presente a ideia de que ele próprio está implicado naquilo que está a discutir. O filósofo de hoje não consegue conceber um labirinto senão como um labirinto que encontra no jornal. Não consegue conceber que ele possa estar dentro do labirinto. Ora, o carácter fundamental do encontrar-se num labirinto é que, na verdade, aquilo que se vê pode nem sequer parecer imediatamente um labirinto - e quando se percebe que se está num labirinto, não se faz a menor ideia ainda de como isto onde se está se relaciona com a saída do labirinto...

Mas hoje os nossos filósofos são humanos como quem lê a humanidade no jornal. Sabem sempre as curvas que hão-de dar. O labirinto para eles é uma curiosidade, um passatempo, um divertimento. Porque, no essencial, "sabem" que HÁ uma saída, e limitam-se a sorrir condescendentemente e a traçar no jornal o caminho com a caneta especulativa. Contudo, o labirinto que interessa não vem nos jornais.


Mas o filósofo actual é uma criatura de jornal. É um ser do dia, sempre em cima da onda, na crista da onda. Surfa as salas dos hotéis com a mesma facilidade com que debita conteúdos programáticos nas salas de aula. Tanto dá uma conferência num cinco estrelas, como um colóquio numa tenda. O filósofo é um homem de sucesso, que labuta e faz pela vida, que compra a felicidade e ganha a existência em cada palestra, em cada livro vendido, em cada entrevista dada na SIC ou em cada participação no Prós e Contras. O filósofo de hoje é tudo aquilo com que os grandes filósofos nunca se identificaram... porque em todas as épocas houve filósofos de hoje... Filósofos que estão sempre actualizados e sabem ler os antigos ao modo da actualidade. Sabem pôr Platão do seu lado, e até o Ecclesiastes se torna uma sobremesa. Sempre houve filósofos de hoje em todas as épocas, que diziam em cada actualidade o que a actualidade dizia. Que estavam actualizados, adaptados. Porque é a isto que se resume a filosofia de hoje: a estar actualizado, a adpatar-se ao momento, a ter sucesso. O sucesso que Tales desprezou, que Diógenes ironizou, que condenou Sócrates à morte, que, de forma geral, deixou morrer os grandes filósofos no esquecimento do seu próprio tempo... Porque os grandes filósofos nunca foram filósofos de hoje. Mesmo quando discutiam assuntos da sua altura, faziam-no de tal forma que podem passar milhares de anos e ainda recorremos a eles para nos compreendermos melhor a nós mesmos.


Talvez o filósofo de hoje, que julga que "quem não pensa assim ou assado" não deve incomodar ninguém devesse dar menos atenção aos últimos livros que vão saindo e preocupar-se mais com os antigos, quem sabe ler Plutarco, Adversus Colotem, ou com mais atenção a Apologia de Sócrates, e redobrar esforços na compreensão da Metafísica, de Aristóteles... Talvez - e digo isto como mera sugestão, talvez mais como uma nota para mim mesmo que não espera ser colhida por outros - devesse considerar que não é o sucesso momentâneo de uma ideia ou de um modo de pensar que significa consistência filosófica.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Pascal, as extremidades da ciência...

A propósito de ignorância...



"O mundo julga bem as coisas, pois ele está na ignorância natural, a qual é a verdadeira sabedoria do homem. As ciências têm duas extremidades que se tocam. A primeira é a pura ignorância natural, na qual se encontram todos os homens ao nascer. A outra extremidade é aquela a que chegam as grandes almas, as quais, tendo percorrido tudo o que os homens podem saber, descobrem que eles próprios não sabem nada, e reencontram-se naquela mesma ignorância de onde partiram. Mas esta é uma ignorância sábia que se conhece. Aqueles que estão entre os dois, que saíram da ignorância natural, e não consiguiram chegar à outra, têm um tom daquela ciência que se basta e fazem-se entendidos.
Esses [que estão entre os dois] perturbam o mundo, e julgam mal tudo. O povo e os hábeis compõem o comboio do mundo; esses [que estão entre os dois] desprezam-no e são desprezados. Julgam mal todas as coisas, e o mundo julga bem."


Pascal, Pensées, ed. Ernest Havet, Art. II, 18 - tradução nossa.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Nietzsche - filosofia contra-intuitiva, o problema das categorias vulgares que não se deixam ver

A propósito da dificuldade que há em entrar na filosofia de Nietzsche


Quando estamos a tentar entender autores como Nietzsche (talvez com todos), temos que ter muito cuidado com os comentadores. É que Nietzsche está a tentar fazer um discurso para além das categorias habituais (chamemos-lhe o que quisermos: metafísica tradicional, ontologia canónica, senso comum, Bem e Mal, cristianismo, etc.). Qualquer coisa como a metáfora retirada da Bíblia: colocar o vinho em odres novos. Mas as categorias habituais são, precisamente, habituais. Quando alguém procura apontar para o ar corre o risco de que nós sigamos o seu dedo até à parede e pensemos que estava a apontar para ela. Então nós pensamos que ele simplesmente mudou o nome da "parede" e lhe passou a chamar "ar". Mas não, ele estava mesmo a falar de algo pelo qual nós, de facto, não demos. E a parede que nós pensamos que agora deve receber o nome "ar" era aquilo que para Nietzsche era vazio. Contudo, a nossa tendência é olhar para a parede e não perceber que ela é o vazio. Tal como não vemos o ar e julgamos que ele é simplesmente um vazio, quando Nietzsche tentava mostrar que não é assim.

Por isso, os comentadores normalmente falam de Nietzsche como se ele tivesse desperdiçado o vinho, ou como se ele simplesmente tivesse feito vinho novo: mas ele estava a falar de partir os odres velhos e de pôr vinho novo em odres novos.

O que é normalmente um nietzscheano?

Alguém que simplesmente trocou o vinho, mas manteve a forma.
Eles pensam que Nietzsche simplesmente mudou o nome da parede: antes chamava-se cristianismo, depois passou a chamar-se vontade de poder. Mas Nietzsche não mudou o nome a nada. O que ele mostrou é que, precisamente, havia nomes com grande fama que ocultavam um grande vazio. Não se tratava de colocar outro nome no vazio.

Enfim, por vezes, aqueles que mais defendem Nietzsche são os que parecem menos ter compreendido o fôlego do seu trabalho.

Por exemplo:
Quando Nietzsche fala dos espíritos malignos e da falta que eles fazem para renovar terrenos gastos, ele não está a pedir que nos tornemos todos gangsters, nem está a dizer que defende que nos dediquemos a assaltar bancos, ou que os assassinos em série devem ser galardoados. Nietzsche está a usar uma estratégia de contraste, porque essa é a única forma de apontar para o ar. Se alguém quer ver a dificuldade que aqui está envolvida apenas tem de inventar uma palavra para o ar, e depois ente mostrar a alguém a que é que está a chamar de ar apenas apontando. Vai ver que, quando apontar, ninguém vai pensar que está a apontar para o ar. O mesmo acontece se tentar apontar para uma janela: as pessoas vão pensar que está a apontar para a árvore que está no caminho.
Apontar a falsidade, ou o esquecimento que está subjacente à velha moral não é defender a simples negação dela. Nietzsche não está a dizer para fazermos simplesmente o contrário que a moral manda fazer: porque isso é manter o modelo anterior, o modelo moralista.

Se há coisa de que Nietzsche nos avisa é que os filósofos podem estar tão embrenhados em preconceitos como qualquer outra pessoa (coisa que é óbvia, mas que os filósofos, como todas as outras pessoas, tendem a ignorar). E de facto, nem os filósofos excepcionais são bons comentadores uns dos outros. Por isso, não nos podemos fiar no que um grande filósofo diz de outro.

Quem quiser compreender Nietzsche tem de ler Nietzsche. E em Nietzsche é importante a ordem pela qual as suas obras foram escritas. Portanto, Nietzsche (e, talvez, todos os filósofos) deveria ser lido pela ordem de execução das suas obras: começando pela primeira que ele escreveu e acabando na última. Mas isso nem sempre é possível, e nem todas as obras estão disponíveis em português.

"Julgando possuir a consciência, os homens pouco se esforçaram por a adquirir. Hoje ainda estão nisso." A Gaia Ciência, §11

"és feliz se só tens uma virtude". Assim falava Zaratustra, Das Paixões de Alegria e de Dor

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Santo Agostinho, O Mendigo de Milão

A propósito de felicidade...

Passando por uma rua de Milão, apercebi-me de um pobre mendigo, já bêbado, creio eu, mas brincando e alegre: e gemi e falei com os [meus] amigos que estavam comigo sobre as muitas dores da nossa insanidade; porque com todos os nossos esforços, nos quais então me ocupava, sob o impulso da cupidez arrastava a minha carga de infelicidade, e aumentando-a ao prolongá-la, não queríamos mais nada senão alcançar a alegria segura, na qual o mendigo já nos havia precedido, e que talvez nunca alcançássemos.

Santo Agostinho, Confissões, VI, 9:
“transiens per quemdam vicum Mediolanensem, animadverti pauperem mendicum, jam credo saturum, jocantem atque lætantem: et ingemui, et locutus sum cum amicis qui mecum erant, multos dolores insaniarum nostrarum; quia omnibus talibus conatibus nostris, qualibus tunc laborabam, sub stimulis cupiditatum trahens infelicitatis meæ sarcinam, et trahendo exaggerans, nihil vellemus aliud nisi ad securam lætitiam pervenire, quo nos mendicus ille jam præcessisset, nunquam fortasse illuc venturos!”

domingo, 25 de novembro de 2012

Leituras de Fenomenologia

A propósito da consciência... Gewissen:

"[O Si] não é universal no conteúdo do acto, pois este, devido à sua especificidade, é intrinsecamente um caso particular: é na forma do acto que a universalidade reside."
Hegel, Fenomenologia do Espírito, §654

Não é neste ou naquele acto que reside a universalidade, ou seja, um acto particular, na medida em que é particular, aquilo que nele está em causa, não é passível de reconhecimento em forma de dever.

Tendemos a compreender isto como naqueles casos em que podemos dizer que há excepções. Aí negamos que o reconhecimento e a validação do acto resida na sua forma. Ou melhor, supomos que aí negamos a forma como dever ao dizermos que, por exemplo, não se pode afirmar que roubar é errado em geral. Pensamos que, ao dizer que há situações em que é um dever roubar estamos a dizer que cada caso é um caso, e que é precisamente na especificidade de cada caso que reside a validade ou o reconhecimento desta. Mas esta compreensão é equívoca.

Na verdade, nenhum reconhecimento de um dever pode residir num caso particular enquanto caso particular. O significado do acto não reside em nada de específico, nada de concreto, nada de puramente contido num caso. Mesmo quando dizemos que roubar pode ser um dever, estamos ainda a referir o caso particular a um significado, estamos, por exemplo, a dizer que, em certos casos roubar não é roubar, mas outra coisa. E este significado é formal.

Se de facto cada caso fosse um caso para nós não haveria nada nele que nos permitisse um reconhecimento, uma validade. O caso nem seria, de facto, um caso. Mas, encurtando a análise, mesmo superficialmente, nada do que é feito, analisado pelo seu conteúdo apenas, admitindo que isso seria possível, conteria alguma coisa como um dever. Pura e simplesmente não haveria nada a dizer do que se faz senão que foi feito.

O que eu posso dizer é que cada caso deve ser avaliado. E é formalmente que um caso é universal. Na sua forma ele pode ser reconhecido pelos outros como procedendo de uma convicção de uma consciência.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Leituras da Fenomenologia do Espírito

A propósito do Iluminismo (Die Aufklärung)


Ora, a Inteligência toma-se por universal e afirma que todo o sujeito é razoável. Mas ao envolver-se em lutas contra aquilo a que chama superstição, então ela só pode estar a atacar-se a si mesma. A sua essência, segundo o que ela mesma é explicitamente para si mesma, deve conter o “outro” em si mesma. 
Quando ela luta contra o “outro” é contra ela mesma que ela luta, porque ela é também esse outro. Ela não tem mais nada para atacar, excepto a sua própria negatividade. Isto mostra que ela é negatividade absoluta. Ou seja, quando afirma que todos possuímos uma razoabilidade universalmente distribuída, e depois se lança no combate contra formas em que não se reconhece a si mesma, a Inteligência deveria reconhecer que a universalidade da razoabilidade é isto e aquilo, outra coisa ou ela mesma. Afinal, somos todos razoáveis, mas isso não impossibilita todas as formas de não razoabilidade contra as quais a Inteligência se digladia. Que permaneçam formas contra as quais a Inteligência luta deveria mostrar-lhe que ela não diz nada quando afirma que a razoabilidade é universal. Nessa afirmação de universalidade a Inteligência não põe nada de novo, e por isso mesmo o conceito de razoabilidade não corresponde a nada que ela possa apontar. Na verdade, não só com isso não põe nada de novo, como não explica nada daquilo que já havia: a disparidade entre os indivíduos. 
Não há nenhum esclarecimento novo senão mais uma forma de consciência, que é a própria Inteligência, que assim se vem juntar à imensa diversidade de formas que existiriam mesmo que ela não reivindicasse a universalidade da sua própria forma.
Aquilo que é novo na Inteligência é precisamente a sua forma enquanto ela é consciência em si e para si. E, enquanto tal, ela é também um modo da consciência de si, e um modo racional, é o espírito mais característico da Cultura...

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Hegel, Virtude e Retórica

A propósito de virtude no nosso tempo...

"Mas, [ao contrário da virtude do mundo antigo], a virtude que estamos a considerar tem o seu ser fora da substância espiritual, é uma virtude irreal, uma virtude apenas de imaginação e de nome, à qual falta o conteúdo substancial. O vazio da sua retórica ao denunciar o "modo do mundo" seria revelado, de uma vez por todas, se o significado das suas belas afirmações tivesse de ser determinado. No entanto, assume-se que este significado é alguma coisa de familiar. A solicitação de um esclarecimento sobre o que seja este significado familiar daria de caras com um jorro de frases ou com um apelo ao coração, o qual diz internamente esse significado - o que nos leva a admitir que a retórica da virtude é, de facto, incapaz de dizer qual é esse significado. A fatuidade desta retórica parece, de uma forma inconsciente, ter-se tornado uma certeza para a cultura do nosso tempo, uma vez que todo o interesse na totalidade dessa retórica, e a forma como é usada para puxar pelo nosso ego, desapareceu - esta perda de interesse expressa-se no facto de que ela já só produz um sentimento de aborrecimento."

Hegel, Fenomenologia do Espírito, §390

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A liberdade humana como liberdade da mente


A propósito da Ética, de Spinoza...

Neste artigo pretende-se responder simultaneamente a duas perguntas:
  1.ª - por que razão chamou Spinoza Ética a um livro que parece dedicar-se a tudo menos a ética? De facto, o livro começa com considerações acerca de Deus, continua dedicando-se à natureza e às ilusões do ponto de vista humano. Tudo parece indicar que nenhuma ética se poderia erigir a partir daquilo que o autor nos propõe;
  2.ª - de que forma, se há alguma, se pode falar de uma liberdade humana em Spinoza?

Parece-me que a noção de liberdade humana (“Libertate Humana”) explica a razão pela qual o livro se chama Ética. Ética (porque está para além do bem e do mal em sentido moral), demonstrada segundo a ordem geométrica, porque tem que ver com o comportamento próprio do indivíduo em relação a si mesmo, aos outros, ao mundo e a Deus. Quer dizer que as considerações acerca da natureza e de Deus não poderiam ser esquecidas, uma vez que aquilo que seja a natureza e aquilo que seja Deus está directamente conectado com a ética. As considerações éticas só se podem fazer dentro da compreensão daquilo que realmente é Deus, a natureza e o homem. Portanto a ética, para Spinoza  não é um item isolado. Aquilo que ele tinha a dizer sobre isso só poderia ser dito no âmbito de considerações mais gerais sobre a natureza. De algum modo, isso mostra uma certa compreensão do próprio ser humano – o qual não é algo ao lado da natureza, como se se pudesse escrever um tratado sobre a natureza e depois um sobre a ética. Compreende-se assim que comece com Deus e acabe com a liberdade humana (e com Deus como ponto de fuga dessa liberdade). O sábio conhece-se a si mesmo, à natureza e a Deus, e vive de acordo com esse conhecimento.

É nesse sentido que compreendo, desde logo, o prefácio da 4ª parte:
“Pois uma vez que desejamos formar uma ideia de homem como modelo da natureza humana de modo a tê-la em vista, ser-nos-á útil conservar esses vocábulos no sentido que estabeleci.” ( Nam quia ideam hominis tanquam naturæ humanæ exemplar, quod intueamur, formare cupimus, nobis ex usu erit, hæc eadem vocabula eo, quo dixi, sensu retinere.) Isto é, os termos bom e mau devem ser usados enquanto referidos ao homem, enquanto algo é útil à natureza do sujeito (e então é bom), ou enquanto é prejudicial à conservação e ao poder do sujeito (e então é mau). Mas estes qualificativos expressam exclusivamente estados mentais do sujeito, modos do seu pensamento.

Segue nas definições 1 & 2: “Por bom compreendo o que sabemos com certeza ser útil para nós.” Isto é, para chegar perto do modelo de natureza humana que pusemos à nossa frente (Cf., por exemplo, Apêndice à 4ª parte, 8: bom é aquilo que nos preserva e permite gozar uma vida racional). O conhecimento do bom pertence à nossa actividade, a sua força reside na nossa própria natureza – e também está limitada pela nossa natureza. Assim, a força do sujeito pode ser inferior à força exercida pela causa exterior: o homem pode, por isso, ser tido por perfeito ou imperfeito conforme se aproxima ou não desse modelo (cf., por exemplo, prefácio à 4ª parte).

A definição 8 diz: “Per virtutem, & potentiam idem intelligo, hoc est (per Prop. 7 p. 3) virtus, quatenus ad hominem refertur, est ipsa hominis essentia, seu natura, quatenus potestatem habet, quædam efficiendi, quæ per solas ipsius naturæ leges possunt intelligi.”
(Por virtude e potência (possibilidade, poder de) compreendo o mesmo, isto é, a virtude, enquanto referida ao homem, é a própria essência do homem, ou a [sua] natureza, enquanto tem a possibilidade de (poder de), levar a cabo certas coisas, as quais apenas pelas próprias leis da sua natureza se podem compreender.) Cf. IV, 28.

A virtude própria do homem consiste na possibilidade de levar a cabo coisas que se podem compreender através das leis da sua natureza. Isto é, delineia-se já aqui a noção de actividade: a virtude é a própria felicidade (cf. V, 42). Mas quando o sujeito é apenas causa parcial (a sua acção não pode ser compreendida senão recorrendo a causas exteriores ao sujeito), então ele é agido e não é ele que propriamente age (cf. IV, 2).

Esta contraposição que Spinoza estabelece entre ser passivo e ser activo parece-me corresponder a um novo conceito de liberdade – já não compreendida numa vontade livre de causas.
Spinoza delimita a actividade do homem por oposição à passividade.

A proposta de Spinoza é, então, tornarmo-nos senhores de nós próprios – não completamente livres de causas (o que é impossível). Estar sob o domínio das paixões é discordar da própria natureza (cf. IV, 32-35). Seguir a Razão é concordar com a própria natureza. A própria discórdia no indivíduo, bem como entre indivíduos, não é natural – pois não está na sua natureza. É enquanto se deixam dominar por factores exteriores que os homens discordam, quer de si mesmos, quer em relação a outros. Entregues à Razão concordariam com eles mesmos e entre eles.

A desocultação das inclinações permite ao homem esforçar-se por superar a sua dependência em relação ao que lhe é exterior. Cf. V, 3, corolário: “Quanto mais um afecto é conhecido, maior é o controlo que temos sobre ele”. Conhecer que tudo é necessário dá ao homem um maior controlo sobre as afecções.

Cf. V, 10. Se não estivermos sob ataque das afecções podemos conformar-nos à ordem do intelectuo. Mas o ataque das afecções não é qualquer coisa que se possa, simplesmente, suspender. O humano deve-lhes resistir, contudo não pode deixar de ser parte da natureza e, na natureza, ele é constantemente bombardeado por coisas que o afectam. Só o conhecimento das causas, o conhecimento daquilo que me move me permite distanciar do movimento para me assenhorear do caminho a seguir. Este aspecto irá ficar mais claro à frente.

Spinoza introduzirá a ideia de Deus e o amor a Deus como algo a que o homem se pode lançar activamente – e nisto parece constituir a liberdade autêntica, isto é, liberdade humana, por oposição à liberdade ilusória que, afinal, apenas impede a compreensão. A liberdade humana é qualquer coisa que se pode consumar maximamente apenas no amor a Deus, porque Deus é aquilo que se pode amar autenticamente. Tudo o mais que se ama sem conhecimento adequado apenas nos domina, não nos realiza. Na verdade, aquele que se conhece a si mesmo sabe que apenas pode amar autenticamente a Deus.

Independentemente da colocação da ideia de amor a Deus, parece-me que para compreender a noção de liberdade humana se deve atentar no que Spinoza diz sobre a ideia que um homem pode colocar como seu modelo: modelo que é o seu fim, mas também a sua medida. O humano coloca uma ideia de ser homem como fito da sua actividade e é em relação a essa imagem que ele se pode reconhecer como perfeito ou imperfeito. O homem mede-se pela sua execução disso que é a sua medida. Trata-se da identificação de uma estrutura fundamental do humano, que já é feita no Génesis, e que na Ética é recolocada: o humano como espelho/imagem.

Esta estrutura é origem de ilusões, mas é também o que permite identificar a possibilidade mais própria do humano (no caso, Deus, o amor a Deus).

Spinoza está a dizer que estamos habitualmente conformados com uma ideia de liberdade que, não só é aparente, como não podemos saber o que fosse de facto, porque não é nada de possível ou concebível. Poderíamos dizer que é um conceito irrealizado. O homem não pode deixar de estar na natureza. Só a natureza como um todo, só Deus não tem nenhuma causa, só Deus pode ser compreendido a partir apenas de si mesmo (a sua essência compreende a sua existência – isto não só significa que não pode deixar de ser, como também que todas as coisas que são, são instanciação, modo, atributo de Deus). Deus tudo contém, tudo sustem, é tudo, desde sempre. Deus é tudo o que há. Deus é toda a natureza. Na natureza tudo é eterno e necessário, nada de novo vem a ser sob o sol. O pensamento e a matéria são dois dos atributos de Deus. Mas há apenas uma substância. Sendo que tudo é Deus, e Deus é causa de si mesmo, na verdade tudo é necessário, o que é o mesmo que dizer que tudo é espontâneo. Não há uma razão outra para que o que é seja o que é, senão o poder infinito de Deus se expressar como tem necessariamente de se expressar. Deus é pura actividade, é tudo o que existe, e tudo o que existe existe desde sempre e para sempre. Não há verdadeiro começo, não há verdadeira criação na natureza. Há modos da substância. Quando o homem pensa que é livre apenas pensa algo que não sabe a que corresponde: o que seria ser a sua própria causa em sentido absoluto, o que seria ser completamente espontâneo? Afinal, isso seria ser Deus, mas não seria ainda ser livre no sentido em que o homem pensa que é livre. O que é mais espontâneo é precisamente o que é mais necessário. Portanto, a liberdade que cada um pensa que tem é pura ilusão. Mas mais do que isso: não se sabe minimamente o que seria, se fosse possível. A vontade humana é um modo do pensamento. O intelectuo é ter pensamento, é pensar, é ter ideias. Não há nada de livre nisso. Uma volição, tal como um estado mental, existe apenas na medida em que tem uma causa (cf. I, 32; II, 48).

Tudo o que acontece é necessário. Também o homem nada faz que não esteja necessitado pelas condições prévias, internas e externas. Mas o humano possui uma característica que o distingue – não no sentido em que lhe atribui algo que não seja da natureza, mas algo que lhe é próprio. Ao poder conhecer as causas do seu comportamento, o homem pode assumir um comportamento relativamente a essas causas. Não que isso seja fácil.

Como disse Ovídio, video meliora proboque, deteriora sequor, muitas vezes vemos o melhor e fazemos o pior (Cf. Prefácio à parte IV; e IV, 4: é impossível ao homem não ser parte da natureza, é impossível agir sempre de tal maneira que seja sempre a causa total das suas acções, ou seja, que as mudanças que opera possam ser sempre compreendidas apenas a partir da sua própria natureza). É mais fácil ser movido pela opinião do que pela razão (cf. IV, 17, nota a 14-17).

Mas o humano, ao conhecer-se a si mesmo, e ao conhecer as suas afecções, as paixões, as inclinações que de cada vez o afectam pode procurar agir de acordo com a sua própria natureza. Pode agir em função do melhor dos bens (cf. IV, 65). Nada disto significa que o humano se torne livre – o que há é apenas liberdade humana: a liberdade que convém à natureza humana. Não é mais nem menos perfeito enquanto coisa – mas pode compreender-se como mais ou menos perfeito em relação ao modelo. Não há de facto nenhuma causa final, mas o seu modelo é algo em vista do qual ele se compreende (não que isso seja um fim da natureza, ou um fim que Deus espere do humano, ou um fim que traga uma qualquer espécie de recompensa; não, o modelo, o fim é qualquer coisa a que o homem se vota, qualquer coisa que o homem ama, sem ter outra coisa, qualquer recompensa que seja, em vista). Isso nunca significa que o homem, ao determinar-se, se torne outra coisa, ou que, ao determinar-se, escape da ordem das causas. Entretanto, uma atitude possível face ao inevitável é a própria aceitação disso. Aceitar o inevitável parece não ser nada de extraordinário. Tendemos a considerar que quem aceitou o inevitável o fez porque não tinha opção, e desvalorizamos isso. Contudo, o inevitável é precisamente o mais difícil de aceitar. E o facto de que é inevitável não o torna mais fácil de aceitar, bem pelo contrário. Resistir perante o necessário é muito difícil. Tão difícil que a maioria das pessoas simplesmente desvirtua aquilo que é necessário e considera-o alternativo. Assim se tende a compreender uma tempestade como um castigo divino: como algo que bem poderia não ter ocorrido, se certas condições não tivessem ocorrido, mas nesta compreensão projecta-se sobre a ocorrência dessas condições um carácter condicional que elas mesmas não têm. Dizemos que se nos tivéssemos comportado bem perante Deus, Deus não nos teria castigado. Da mesma forma, dizemos que se não tivéssemos deixado a porta aberta o gato não teria fugido. E com isto entendemos que poderíamos ter agido de forma diferente, que a tempestade poderia não ter vindo, que o gato poderia não ter fugido. É muito difícil aceitar que tudo o que acontece, acontece por necessidade. Tão difícil que usamos mesmo o argumento de que: se tudo é necessário, então não vale a pena fazer nada - como se isto pudesse provar que as coisas não são como são por necessidade.

O sábio não pensa assim. Segundo Spinoza, a sabedoria consiste em aceitar o necessário – sem que esta aceitação seja menos necessária naquele que aceitou o necessário. Também este, ao aceitar o necessário, expressa uma necessidade. Querer fugir da necessidade é desejar o impossível, e desejar o impossível é algo que ninguém realmente deseja, se de facto se conhece e sabe o que lhe é impossível. Como diz Spinoza, ninguém fica triste pelo facto do bebé ser bebé enquanto é tempo de ser bebé, apesar de enquanto for bebé não saber falar nem agir racionalmente, porque toda a gente sabe que é necessário passar por essa fase. Mas é difícil ser sábio e aceitar a necessidade das coisas. Porque aceitar a sua necessidade é aceitar a sua espontaneidade. É aceitar que ordem e caos são o mesmo. Que o sentido de tudo é não haver sentido em nada.

Temos de reconhecer a honestidade de Spinoza. Neste artigo não pretendemos apresentar qualquer crítica. Pretendemos apenas mostrar o seu pensamento. Teríamos algumas críticas a fazer. Mas queremos, sobretudo, realçar que ele se move em terreno muito movediço, perigoso, íngreme. Foi fundo na compreensão das coisas e da própria natureza humana. É difícil encontrar um filósofo, e muito mais difícil encontrar um não filósofo, capaz de ser tão honesto. 

Spinoza redefine a noção de liberdade como liberdade humana, fundada na mente humana, na razão, na capacidade de compreender os processos da necessidade. A liberdade humana é compreensão das causas e é actividade. Ao compreender as causas que actuam sobre mim posso comportar-me relativamente a elas – por exemplo, perceber que a liberdade que julgava possuir ao seguir um apetite não é verdadeira liberdade permite-me não seguir esse apetite. Este é um poder que eu ganho. Poder é aquilo que eu, se me conhecer realmente, sei que quero. E só aquilo que eu sei que seguramente me traz uma vantagem deve ser considerado um bem. Devo libertar-me, por isso, daquilo que parece inicialmente um bem, mas que não o é. Compreender permite-me identificar os meus desejos mais autênticos e seguir por esse caminho, o caminho da minha natureza.

Dizer que alguém actua por virtude significa que o sujeito em causa vive conduzido pela razão, procurando a sua própria vantagem – mas esta vantagem deve ter sido esclarecida pelo próprio, tendo em conta a natureza do humano e a natureza das coisas. Dada a natureza do humano, há coisas que não representam nenhuma vantagem.

Há homens que se suicidam, com certeza procurando nisso uma vantagem – mas essa vantagem foi um erro de perspectiva, porque nada na natureza do homem o atrai para aí uma vez que nenhuma vantagem real lhe advém do suicídio. Se o homem perceber que não são as coisas que o atraem, mas que é ele que quer preservar-se, quer incrementar o seu poder, as suas possibilidades, então pode-se libertar da acção das causas exteriores. Por muito difícil que isso seja, e é de facto muito difícil. Mas isso pode ser conseguido pela força da natureza do sujeito – quanto maior for esta, mais o sujeito se poderá libertar. Quanto mais se libertar, mais poder tem. Assim, no limite, o que estabelece a condição da liberdade humana é a força do sujeito, o seu poder, não a força da causa exterior. Temos inclinações, mas algumas são prejudiciais, e apesar de serem fortes e muitas vezes nos dominarem, isso apenas significa que o nosso poder é mais reduzido que o poder das inclinações prejudiciais. Estas inclinações são provocadas por causas exteriores. O vinho é uma causa exterior. Mas não é o vinho que realmente me puxa. É a minha inclinação que me move. E saber dominar esta inclinação não é nada fácil. O sábio sabe que pela força da razão nós pode seguir sempre o melhor dos bens apresentados, segundo a natureza humana, não segundo as causas exteriores. Deseja grandes coisas, deseja as melhores e segue as melhores. Ser livre é, afinal, meditar na vida (cf. IV, 65-67).

A liberdade humana não é qualquer coisa com a qual o humano nasceu (cf. IV, 68): nem se nasce com a liberdade de não se ser necessitado, pois esta é apenas uma ilusão; nem se nasce com a liberdade autêntica de compreender tudo a partir da razão, pois esta é uma tarefa do humano. O homem livre é aquele que se esforça por se entregar a ser conduzido pela sua própria razão – ou seja, aquele que age de tal modo que, tanto quanto possível, as suas acções possam ser compreendidas a partir da sua própria natureza, e não a partir de causas externas. Nada disto significa que há duas naturezas, uma humana, outra natural – nem que o humano evolui para ser outra coisa que ele mesmo não era de início. Tornar-se livre não é tornar-se Deus, não é deixar de estar na natureza. Não é deixar de ser humano. Pelo contrário, é ser humano. É, na verdade, realizar um modelo de humano.

Penso que é por isso que o livro se chama Ética. Porque tem um percurso que indica um caminho. Faz a análise de diversas possibilidades. Identifica a possibilidade mais própria do humano tendo em conta os seus desejos mais próprios, tendo em conta a sua própria estrutura. Afinal, se o humano é uma imagem, como diz no Doença para a morte, Kierkegaard, não é a mesma coisa ser à imagem de uma vaca ou à imagem de Deus.

Mas o mais importante de toda a Ética parece-me ser, precisamente, a última proposição (e respectivo escólio). A liberdade autêntica como liberdade da mente (Mentis Libertate) não pode estar dependente, se ela é alguma coisa, de determinações exteriores, de tal modo que a própria felicidade não pode ser compreendida, se ela tem algum sentido, como consequência ou recompensa. A liberdade e a felicidade são o mesmo, sendo a felicidade a perfeição da liberdade. Por isso mesmo, nos termos de Spinoza, são o mesmo. Essa igualdade corresponde à paz da mente, ao estar de acordo consigo, com a natureza, com Deus. Claro que, qualquer coisa como isto raramente se encontra e é muito difícil – Spinoza (Sed omnia præclara tam difficilia, quam rara sunt) lembra-me Simónides (PMG 542: ἄνδρ' ἀγαθὸν μὲν ἀλαθέως γενέσθαι χαλεπὸν, para um homem tornar-se verdadeiramente bom é difícil).

A liberdade é felicidade; a felicidade é um género de conhecimento; ser feliz é ser livre, porque ser feliz é compreender e compreender é ser livre. Coloco aqui a tradução inglesa: “Happiness is not •the reward of virtue; it •is virtue.[…] The more the mind enjoys this divine love = happiness, the more it understands (by 32), that is (by the corollary to 3) the greater its power over the affects, and (by 38) the less it is acted on by bad affects. So because the mind enjoys this divine love or happiness, it has the power to restrain lusts. And because human power to restrain the affects consists only in the intellect, no-one enjoys happiness because he has restrained the affects. Instead, the power to restrain lusts arises from happiness itself.” A felicidade só pode ser concebida como uma recompensa se o exercício da liberdade, se o exercício do poder de agir for concebido como um fardo. A maior parte das pessoas pensa assim: que limitar o poder dos seus apetites é um fardo, e por isso considera que, para agir segundo a moral, deve existir um qualquer prémio. Mas, segundo Spinoza,  a felicidade consiste no próprio poder de ser causa das próprias acções - nisto o homem pode ser imagem de Deus. Aumentar este poder é a própria felicidade.


O problema parece ser, então, que, dada a compreensão que Spinoza tem de Deus, da Natureza e do Homem, podemos sempre perguntar: afinal, para quê tudo isto, para quê uma ética? O próprio Spinoza respondeu que estas perguntas derivam de um erro de perspectiva. Na medida em que não há um para quê que enforme o humano, o homem não se deve compreender como um para quê, como se fosse mais um utensílio que pode ser usado com um fim. A ilusão consiste em pensar que Deus criou o Homem com um fim. Para Spinoza, pensar que, não havendo um fim, não havendo imortalidade da alma, nem recompensa nem castigo no depois-da-morte, isso significa que todas as possibilidades são igualmente válidas, corresponde a um absurdo: é como pensar que, uma vez que não há vida depois da morte, então é igual comer saudavelmente ou beber veneno. Esta objecção é um absurdo que nem merece resposta (V, 41, Scholium).


A única crítica que farei aqui é esta: mas, sendo assim, não poderemos de facto perguntar-nos por que não beber o veneno?

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Desonestidade: distanciamento

A propósito do devemos duvidar de tudo...


Queria começar por explicar que ao utilizar o termo “desonesto” não quero, de modo nenhum, dizer que alguns autores dizem X querendo dizer Y, ou que têm uma segunda agenda oculta. Isso também pode acontecer, mas não é o que quero dizer.

Quando Descartes, n’Os Princípios da Filosofia, I, 5, afirma que há a possibilidade de sermos sempre enganados, coloca em cena uma espécie de dúvida que não encontra restrições. Contudo, no artigo 6º seguinte, imediatamente restringe a dúvida: « nous ne laissons pas d’éprouver en nous une liberté qui est telle que, toutes les fois qu’il nous plaît, nous pouvons nous abstenir de recevoir en notre croyance les choses que nous ne connaissons pas bien ». Este artigo constitui uma restrição porque aquilo que Descartes diz no artigo 5º é o mesmo que dizer que encontramos em nós « une liberté qui est telle que, toutes les fois qu’il nous plaît, nous pouvons nous abstenir de recevoir en notre croyance les choses ». Mas mais do que dizer que nós podemos duvidar daquilo que bem entendermos, Descartes diz que devemos duvidar de tudo porque pode acontecer que estejamos a ser enganados sempre que algo nos parece certo (por exemplo, um Deus enganador poderia estar-nos a enganar). Este é um dos sentidos em que uso o termo desonesto: quando um autor se propõe um projecto que depois não cumpre – no caso, afirma que se deve duvidar de tudo até encontrarmos evidências, mas depois não duvida de uma coisa (esquecendo que, se começar sempre por duvidar daquilo que lhe parece nunca encontrará nada de que não possa duvidar). Ou seja, começou o seu sistema precisamente pela suspensão da dúvida relativamente a algo, quando teve a pretensão de o sustentar na suspensão da crença. Descartes diz isso expressamente no artigo 6º: irá duvidar de tudo aquilo que não conheça bem, daquilo que lhe pareça ser duvidável. Mas o aspecto fundamental do artigo 5º é, precisamente, que tudo o que nos parece ser certo pode resultar de um engano – portanto, dever-se-ia duvidar de tudo.

Quando Descartes, n’As Paixões da Alma, artigo 145, reconhece que « nous devons souvent faire réflexion sur la Providence divine, et nous représenter qu’il est impossible qu’aucune chose arrive d’autre façon qu’elle a été déterminée de toute éternité par cette Providence ; en sorte qu’elle est comme une fatalité ou une nécessité immuable qu’il faut opposer à la fortune », dá notícia de algo muito interessante. Este reconhecimento que ele faz pontualmente coloca em cena um ponto que poderia ter consequências relevantes para o sistema. Mas, mais uma vez, imediatamente a seguir (art. 146), estabelece uma limitação à interpretação: « tout est conduit par la Providence divine, dont le décret éternel est tellement infaillible et immuable qu’excepté les choses que ce même décret a voulu dépendre de notre libre arbitre, nous devons penser qu’à notre égard il n’arrive rien qui ne soit nécessaire et comme fatal » (sublinhado nosso). Esta é outra forma de desonestidade: reconhecer um ponto que, no limite, teria consequências em todo o sistema, mas derivar apenas as consequências relativas ao ponto concreto em questão (escolher um caminho sem pensar naquilo que não depende da nossa vontade), colocando o resto sob a nota de uma excepção já adquirida, como se o novo dado não pudesse ter consequências sobre o que previamente parecia adquirido. Isto não quer dizer que Descartes tivesse consciência disto. Ele pode ter sido sincero. Mas o sistema filosófico é desonestamente desenvolvido: porque esbate os dados que vão sendo adicionados, dando-lhe a forma do que previamente está adquirido, sem submeter o que estava previamente adquirido ao escrutínio. O novo dado é considerado simplesmente algo que deve ser interpretado à luz das certezas previamente estabelecidas.

Quando Descartes, n’Os Princípios da Filosofia, I, 3, afirma: « [c]ependant il est à remarquer que je n’entends point que nous nous servions d’une façon de douter si générale, sinon lorsque nous commençons à nous appliquer à la contemplation de la vérité », coloca de forma explícita a Filosofia ao nível de uma excepção da vida. A contemplação da verdade corresponde um parêntesis no decurso da vida, cujo decorrer normal nos submete à urgência de ter de decidir em tempo útil, apesar de não podermos estar mais certos acerca de uma opinião do que de outra. Portanto, Descartes explicitamente diz que a vida é outra coisa. Isto faz-nos lembrar Aristóteles que parece dizer algo de semelhante na Metafísica 982β10-30. Contudo, o sentido em que Aristóteles interpreta isso é bem diferente (cf.  Ética a Nicómaco 1178β30-1179α10, a necessidade que o humano tem de bens exteriores é assumida, mas sem que isso seja o fim, pelo contrário, os bens necessários são utilizados em vista da excelência: come-se para se permitir a continuação da activação da possibilidade de ser excelente). Descartes diz que a dúvida não deve ter lugar na vida habitual « à cause que les occasions d’agir en nos affaires se passeraient presque toujours avant que nous pussions nous délivrer de tous nos doutes ». A lógica da excepção é levada ao limite aqui. O deve-se duvidar de tudo é uma actividade mental a que uma pessoa se pode dedicar quando, sem mais negócios a conduzir, descansa da vida. E como nada daí pode resultar que possa ser de facto levado a sério, não vale a pena interromper o curso dos negócios. O duvidar de tudo, afinal, não é levado a sério: não o é no método, como mostrámos atrás, e não o é na vida. É apenas uma brincadeira que se pode fazer quando a correria da vida se suspende e nos dá descanso. Mas mesmo que ficássemos pela dúvida e esta fosse levada a sério, quando terminasse o tempo de lazer, lá se voltaria para os negócios.

Mas esta forma de desonestidade intelectual mostra uma grande honestidade prática: a vida vem em primeiro lugar. A dúvida metódica tinha desde início uma finalidade, e essa finalidade estabelecia o seu âmbito. O escudo protector estava activado desde o primeiro momento: a dúvida não poderia matar. Isso mesmo foi o que Pirro descobriu quando foi perseguido por um cão e teve que fugir (cf. Diógenes Laércio, A Vida dos Filósofos mais Ilustres, IX,66).