sexta-feira, 18 de junho de 2021

Da impossibilidade da ética sem emoção

A propósito de ética e emoções

Parece mais ou menos claro para toda a gente que, sem o âmbito sentimental-emocional, não há movimento, por melhores que sejam as intenções e as razões. O sujeito pensa: vou fazer X; mas se não houver nele também o impulso para isso, deixa arrastar, arranja desculpas, e não faz X. A ética não fica imune a este problema, por isso mesmo Kant diz na parte da Doutrina da Virtude da "Metafísica dos Costumes" (não confundir com a "Fundamentação da Metafísica dos Costumes"), que aquele a quem faltasse o sentimento moral estaria moralmente morto.

O problema, o nó górdio, está na ideia de "apelar a que alguém se emocione melhor". Não parece nada claro que seja possível ao sujeito suscitar emoções nele próprio para quais não exista nele, à partida, pelo menos a susceptibilidade para tal. Quer dizer, não parece ser possível ao indiferente fazer com que se emocione com aquilo a que, justamente, é indiferente. Aliás, é essa a origem de grande parte das discussões em torno dos psicopatas: não sendo susceptíveis a uma grande parte dos sentimentos e emoções, não podem ser levados a conduzir-se de maneira aceitável apelando para elas: não vale a pena apelar para que se "emocionem melhor"...
Entretanto, há outro aspecto curioso. Num episódio do House, há um paciente que acaba por ser preso por práticas pedófilas, levando um dos estagiários a comentar que o sujeito em causa, de alguma forma, seria inocente, ou que as suas acções não lhe seriam imputáveis, dada a compulsão de que padecia. A isso o House responde que esse comentário era ele próprio injusto para todos aqueles que, sofrendo da mesma compulsão, resistiam a ceder-lhe. E isso é verdade. Parece que o âmbito sentimental-emocional pode ser, de algum modo, domado. Os sentimentos e as emoções podem ser corrigidos. Há mesmo pessoas que resistem às suas compulsões, que até procuram ajuda profissional para lhes resistirem, em vez de simplesmente as satisfazerem.
 
É possível pela razão fortalecer certos sentimentos e emoções, e enfraquecer outros. Isso sabe-se há muito, porque é assim que treinamos os animais há muito tempo, por via de incentivos e desincentivos. O mesmo pode o sujeito fazer sobre si próprio. Pode indulgenciar em satisfazer ou suscitar, e assim incentivar, certos sentimentos e emoções; e pode paulatinamente abster-se de incentivos, e assim enfraquecer outros. Mas aqui, em ambos os casos, estamos a falar de pessoas que têm receptividade a certos objectos, são susceptíveis de certos sentimentos e emoções - e só por isso esses sentimentos e emoções podem ser, ou incentivados, ou desincentivados. O problema maior é que não se sabe como fazer alguém sentir um sentimento ou emoção para o qual não tenha susceptibilidade.
 
Por exemplo: podemos dizer que não é possível uma ética sem compaixão. Ou, como Kant, que sem sentimento moral a moralidade não é possível (ou melhor, não é possível ética, pois só fica o direito). Até aqui tudo bem, a maioria dos filósofos concordaria com isto, até mesmo Kant. Mas se não é possível uma ética sem compaixão, o que fazer com aqueles que não são susceptíveis de sentir compaixão? Kant disse que sem sentimento moral o sujeito estaria moralmente morto, mas ele achava que não existia nenhum ser humano sem sentimento moral. Ele não sabia que havia psicopatas. Mas se sem certos sentimentos e emoções a ética não é possível, o que fazer com aqueles que são fisicamente incapazes de ter esses sentimentos e emoções?
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