quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O estereótipo da menoridade feminina, cont.2

A propósito do Afeganistão, a mulher...


Cap. 3

O aspecto feudal do estereótipo da menoridade feminina apresenta a mulher em relação de vassagem para com o homem, sobretudo, para com o seu marido o qual se apresenta na figura de senhor.

Como é óbvio, a relação que o senhor estabelece é uma relação de posse. O vassalo não é um escrava, nem se pretende aqui afirmar isso. Mas há como que uma relação de posse: o vassalo é possuído pelo seu senhor. Claro que o senhor tem a obrigação de proteger o seu vassalo. Tal como, na savana ou na selva, o babuino dominante protege o seu grupo de fêmeas. Aliás, existe aqui uma grande similaridade. Durante a idade média o senhor tinha jus primae noctis. Isto é, o direito de primeira noite, o qual lhe conferia a si o privilégio de tirar a virgindade às donzelas que se casavam (a primeira noite, a noite de núpcias, pertencia ao senhor). Portanto, o macho dominante não tinha apenas direitos sobre a sua esposa. A prerrogativa do senhor sobre todas as noivas em seu domínio é, claramente, uma noção medieval, de cariz feudal, mas que durou, em certos casos, até ao século XIX (nomeadamente, na Sicília). Esta noção não representa apenas a prioridade do senhor relativamente ao seu servo. Pelo contrário, esta noção traz ao de cima, sobretudo, a total irrelevância da vontade da mulher em toda esta questão. O direito do senhor relativamente ao seu servo implicava o direito do primeiro a estar com a mulher do último antes mesmo dele. Por outro lado não se esperava, obviamente, que a senhora fosse exigir estar com os seus servos na primeira noite do casamento destes. Como se vê, este direito é coisa que se passava entre homens, onde as mulheres não tinham voto na matéria, apesar de ser a sua perda da sua virgindade que estava em causa.

Este aspecto do não reconhecimento da voz (voto) da mulher não é apenas um pormenor, pelo contrário, manifesta um traço fundamental da menoridade feminina. Como diz o povo às crianças impertinentes, não sabem o que dizem. O que a mulher diz não tem consistência, assim se preconcebe. Todavia, não se trata aqui da negação de um direito. A questão deve ser colocada a montante: à mulher não eram reconhecidos direitos, ou pelo menos, a sua maioria. Não era uma questão de negar à mulher qualquer coisa. Não havia nada para negar.



Mais tarde, quando começaram os movimentos em prol da feminilidade e da afirmação da mulher, aí houve de facto uma resistência conservadora que tratou de negar certos direitos à mulher. No início, contudo, o estereótipo da menoridade da mulher não vê, tão pouco, que exista aí qualquer coisa a negar. Simplesmente, nem se tratava de qualquer coisa que se pudesse debater ou discutir. A mulher não tinha ainda direitos, por isso eles não eram negados. E as próprias mulheres não eram diferentes dos homens, neste aspecto. Também elas não achavam que existissem direitos associados à mulher.

Quando mais tarde a mulher começou a sua luta pelo reconhecimento dos seus direitos, um dos que mais demorou a ser instituído foi o direito a ter voz. A mulher foi tendo cada vez mais direito a alguma protecção institucional, todavia o direito a ter voz foi qualquer coisa que apenas muito lentamente ganhou consistência. Na maioria das vezes era o marido que falava pela esposa, eram os seus irmãos que lutavam pela sua honra, era o seu pai que a representava para determinar quem haveria de casar com ela. A voz da mulher não se deveria ouvir. Só muito a custo as nossas sociedades ocidentais lhe reconheceram o direito à voz, quer em privado, quer em público, quer em política: apenas há muito pouco tempo a mulher tem direito ao voto (o voto, mais não é que um modo da voz).

Todas estas características da menoridade feminina são mais ou menos claros, mas, como já foi dito, certas características deste estereótipo não são tão evidentemente manifestações dele. Destas formas de um (pre)conceito se manifestar de tal forma que não reconhecemos nelas uma apresentação dele, dizemos tratarem-se de modos sublimados. É, pois, da sublimação deste preconceito que iremos falar a seguir.

O homem e o abismo

A propósito do homem, o abismo...

O homem vive como que atravessando um abismo: tentando equilibrar-se numa corda bamba, cambaleia tendo por baixo um abismo imensurável e por cima um céu inantigível.

Ver

terça-feira, 25 de agosto de 2009

O estereótipo da menoridade feminina, cont.

A propósito do Afeganistão, a mulher...

Cap. 2

O estereótipo da menoridade feminina significa, pois, que, no início e na maioria da vezes, se considera a mulher como não sendo maior. Além disso, na maioria das vezes toma-se a menoridade da mulher como inalterável, sendo duvidoso que ela possa vir a atingir a maioridade. Aliás, nós podemos observar que muitas mulheres muita vezes reclamam que, para serem consideradas tão eficientes, eficazes e capazes como os homens têm de o ser mais, e mais recorrentemente, que os homens.

A mulher tem de dispender um esforço superior para ser reconhecida. Na maioria das vezes o macho adulto toma a sua maioridade por garantida, e a comunidade está pronta a assegurar essa confiança. No entanto, a mulher tem de merecer esse reconhecimento. Este pormenor faz toda a diferença. A comunidade habituou-se desde sempre a esperar que um homem esteja na posse de todas as faculdades exigíveis a um ser humano, ao mesmo tempo que espera que uma mulher esteja em falta relativamente a essa normalidade. Assim, o homem é o padrão para a norma. A mulher está sujeita a ser pesada segundo as regras previamente definidas pela masculinidade.

Por outro lado, a menoridade da mulher não é um mero juízo acerca da força física ou das capacidades motoras da mulher. A mulher não só é fraca e descoordenada, como também incapaz de dominar a sua sensibilidade e de seguir um raciocínio correctamente. Antes mesmo que uma mulher abra a sua linda boca a comunidade espera que ela vá dizer qualquer coisa lamechas ou ilógica. Claro que se aceita que a mulher seja melhor a fazer certas coisas. Aceita-se pacificamente que a mulher está apta a fazer tudo aquilo que se considera condizer com a sua personalidade: tudo o que exigir uma sensibilidade apurada, pouca força, paciência, tempo disponível para gastar. À mulher estão reservadas todas as tarefas com que o homem não deve perder tempo. Todas as tarefas que a longa e sinuosa história da civilização se habituou a, de uma forma ou de outra, desconsiderar, foram entregues à mulher. Mesmo que hoje se considere que cuidar e educar os filhos é uma tarefa difícil, complexa e extremamente importante, a todos os níveis, a verdade é que, ao longo dos tempos, não foi mais que uma tarefa perfeitamente marginal. Isto é, marginal àquilo que era interessante e importante: a guerra, a política. Quando a Filosofia e as Artes eram importantes, elas eram do domínio dos homens. Quantas filósofas se conhecem na História (até à 200 anos, por exemplo)? E se podemos dizer que houve quem considerou que a educação das crianças era importante, isso foi para logo recomendar que não fossem as mães a fazê-lo. Houve excepções, mas clado, as excepções são excepções porque fogem a uma regra instituída.

A mulher não está, pois, segundo o preconceito aqui analisado, na posse plena das faculdades humanas. Na mulher as faculdades parecem atrifiar-se. Ou melhor, na mulher as faculdades boas parecem estar atrofiadas. Não parece ser boa ideia deixar-lhes o poder de decisão, pois não só parecem incapazes de chegar a uma conclusão por um processo racional, mas mesmo que o fizessem, não parecem capazes de se manter firmes. Inconstantes, volúveis e frágeis, eis as mulheres. A menoridade significa, pois, fragilidade. O menor é frágil, facilmente se magoa, não sabe bem o que quer, as suas decisões não são de levar a sério. Por isso é preciso que decidam pelo menor, por isso é preciso que decidam pela mulher.

A forma originária da comunidade lidar com a mulher é decidir por ela. Assim, está desde há muito decidido qual é o papel da mulher na comunidade, na família e em casa. De forma idêntica, ao homem compete ser seu tutor: primeiro o pai, depois o marido e, para qualquer eventualidade, lá estão os seus irmãos ou os seus cunhados. Essa regra antiga de casar com a mulher do irmão que morreu não é um tópico isolado na História do povo hebreu. Pelo contrário, é uma manifestação desse modo originário de lidar com a mulher: tutoriá-la.

Ser tutor da mulher, confiná-la, definir o seu espaço, decidir por ela, protegê-la - são tudo formas do mesmo modo de lidar com a mulher. Claro que este tutoriar pode apresentar diversas intensidades e formas. Por exemplo, a mulher pode tornar-se aquela que se protege a um grau mais ou menos extremo. O petrarquismo não é mais do que isso mesmo: a sublimação do tutoriar a mulher. Aliás, podemos observar todos os dias este fenómeno na forma como as pessoas hoje, muitas vezes, lidam com as crianças: protegendo-as em demasia, acarinhando-as extremamente, e, até, apararicando-a fazendo-lhe todas as suas vontades. A criança tornou-se um pequeno imperador, mas não deixou de ser menor, aliás, tornou-se ditadora por um fenómeno de sublimação da sua menoridade (de resto, os pais jamais agiriam assim se o menor não fosse, precisamente, menor, de tal modo que, quando o menor começa a ser visto como devendo não mais comportar-se como menor os pais percebem que agiram mal, pois não educaram o menor para a maioridade).

Este modo de tutoriar a mulher de forma a apaparicá-la, a protegê-la execivamente, a colocá-la numa redoma não deve ser visto como uma modo menos grave do preconceito da menoridade feminina. Pelo contrário, o apaparicar tende a eternizar essa mesma menoridade pois gera no menor o desejo de permanecer menor. Do mesmo modo como o pequeno imperador/ditador não aceita crescer e, quando os pais lhe exigem alguma responsabilidade, ele se recusa a largar a sua menoridade - também as mulheres não aceitam deixar de ser tratadas como menores quando o cavalheirismo entra em decadência. Mas o cavalheirismo é apenas uma forma de decidir pela mulher, de fazer coisas por ela: abrir-lhe a porta, pagar-lhe a conta, jamais a tratar como um igual. Para o cavalheiro a mulher é uma pequena relíquia a conquistar, ou uma frágil flor a colher, mas jamais um ser humano na posse de todas as suas faculdades. Mais do que isso, para o cavalheiro a mulher é algo de que pode tomar posse, algo que pode possuir.

Este aspecto da menoridade pode ser considerado o seu aspecto feudal: a mulher é o vassalo, o homem é o senhor; o senhor protege o vassalo, o vassalo deve obdiência ao senhor; o senhor possui vassalos, os quais lhe prestam vassalagem. A forma como a mulher se torna vassalo pode ser mais ou menos evidente, mas a vassalagem da mulher perante o homem vem de tempos imemoriais.

domingo, 23 de agosto de 2009

O espírito do portuga

A propósito de Albufeira, o portuga...

O portuga é naturalmente crente no destino.

Fatum: o fado.

O portuga está certo da incerteza do seu destino. Mas, como com tantos outros conceitos, o portuga relaciona-se com o destino de uma forma peculiar.

Para o portuga o facto de não sabermos que uma arriba nos vai cair em cima significa que ela não vai cair. Mesmo depois da tragédia que ocorreu, é possível encontrar muitos portugas a dormir à sombra das arribas que ostentam avisos como o que ficou enterrado na dita tragédia.

"A verdade é que podemos estar em casa e cair-nos um avião em cima", afirma alguém à sombra de uma arriba.

Na verdade este é o espírito do portuga presto em abandalhar os velhos do Restelo. Poderemos dizer que este é o mesmo espírito que nos lançou da Europa aos confins do mundo abrir novos mundos ao mundo. Ou não?

Bem, talvez seja necessário que uma pessoa tenha uma boa dose de aventurismo. Neste mundo, os velhos do Restelo, não morrem de velhice: mas ficam velhos mais cedo.

Por outro lado, a capacidade de prever o futuro (e seria interessante discutir esta noção), embora não nos revele o fatum de cada um, permite-nos visar um objectivo, um destino para a nossa viagem), permite-nos preparar as armas e as bagagens necessárias à viagem, permite-nos então precavermo-nos para aqueles perigos que podemos prever.

Ou seja, não estou a contradizer aquele que afirma que, mesmo em casa, nos pode cair um avião em cima. Isso é uma possibilidade. Estou apenas a dizer: já que há tantos perigos que nos apanham de surpresa, pelo menos tenhamos a conveniência de nos precavermos daqueles de que estamos prevenidos.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O estereótipo da menoridade feminina

A propósito do Afeganistão, a mulher...

Cap. 1

O estereótipo da menoridade feminina significa o quê? Ou melhor, que significa afirmar que a história da civilização se deixa permear pelo preconceito da menoridade da mulher?

Bem, se está a ler esta mensagem provavelmente essa é a questão que deseja ver satisfeita.

Habitualmente, o senso-comum aplica a noção de menoridade de modo negativo: na maioria das vezes consideramos a menoridade como um estádio do desenvolvimento em que a maioridade ainda não foi atingida. Deste modo, a menoridade é, no início, um "ainda não" relativamente à maioridade que será, eventualmente, atingida. Na maioria das vezes, portanto, a noção de menoridade é aplicada para designar uma situação particular de negação, a saber, de omissão. O menor é aquele no qual a maioridade está omissa por ainda não ter sido tempo de se adquirir.

Numa primeira abordagem, a maioridade é algo de positivo. Tomamos a maioridade como algo de verificável num certo sentido: ao contrário da menoridade, a maioridade atinge-se quando se verifica a aquisição de determinada(s) característica(s). O menor torna-se maior num certo ponto. A característica mais visível da noção de maioridade é, precisamente, a visibilidade. Assim, os vários povos que existem no mundo têm os seus mais diversos ritos de passagem, de amostragem daquilo que, precisamente, se quer fazer ver. Atingir a maioridade é um dar-se a ver, um mostrar-se de uma nova forma, para uma nova vida. A maioridade representa a subsistência daquele que, de ora em diante, vem ao de cima, vem à tona. A maioridade é, pois, mais que uma nova forma de existência em sociedade. A maioridade é a existência.

De início, a menoridade é, então, o ainda-não disso tudo. A criança, menor, é um adulto em potência, mas sobretudo, ainda não é um adulto. E durante milénios, e para muitos povos ainda hoje, isso significa, de facto, não ser plenamente. A noção de menoridade começa o seu sentido precisamente num jogo ontológico, o qual não apresenta em si mesmo uma grande consistência metodológica, mas que tem muito poder pois hierarquiza entes em níveis de ser: o menor apresenta um nível ontológico mais fraco.

Neste sentido, a menoridade feminina tem que ver com uma desconsideração ontológica da mulher, por comparação ao homem, e em si mesma ela é menos que poderia ser se fosse um homem. Ora, como sempre, o senso-comum é rápido a transferir para o plano axiológico aquilo que concebe no plano ontológico. Ou seja, na maioria das vezes, quando o senso-comum fala em menores, assume a omissão de valor do menor. O menor é um ser inferior e, por isso, vale menos.

Neste sentido, no início e na maioria das vezes, o menor é menos que... A mulher é, pois, considerada como um ser que é menos e vale menos que o homem. Mas a menoridade da mulher não é como a menoridade da criança porque o carácter negativo do ser menor da criança vem cunhado com a noção de circunstâncialidade: a criança ainda-não é um adulto, mas é-o em potência. A criança encontra-se a caminho de vir a ganhar a sua maioridade, ou se quizermos, a maioridade encontra-se em semente na criança: daqui a um tempo, a criança tornar-se-á um adulto, um ser pleno, visivelmente activo. O carácter negativo da menoridade da criança parece, pois, ser de natureza activa. Potencialmente, o menor é um adulto. E por isso a criança vive a sua criancice lançando-se para a sua maioridade, projectando-se nela. A criança lança-se na sua maioridade estando já lá onde planeia o que será quando for grande. A mulher, por seu turno, por mais que cresça será sempre menor. É constitutivo do seu ser não se tornar maior. Enquanto que a criança salta ontologicamente para adulto, a mulher varia os seus modos de ser mulher: filha, esposa, dona de casa, mãe.

A menoridade da mulher significa no início uma inferioridade que a rebaixa e subalterniza. A menoridade da mulher não lhe permite ser vista por si, pois ela está sempre dependente do homem uma vez que se caracteriza por ser menos que ele. A menoridade da mulher reflecte, como um espelho, a atenção dela para a sua alegada inferioridade. A mulher está submersa na invisibilidade e não tem nenhum rito de passagem à maioridade que a venha resgatar desse fosso. É isso que as mulheres contemporâneas afirmam aos quatro ventos: dizem ter que trabalhar o dobro daquilo que um homem teria para verem reconhecidas as mesmas competências. A razão está na menoridade com que a mulher é vista. No antigamente, a voz da mulher, o trabalho da mulher, etc., valia metade da voz do homem, do trabalho do homem, etc.. Com a liberalização do espaço público e a diversificação dos olhares, aparentemente, foi permitido à mulher soltar-se. Se, no início, a mulher não podia mostrar o corpo, hoje ela pode mostrá-lo. Ela mostra o corpo, ela sai de casa, ela vai trabalhar, e tudo isso serve para reflectir a atenção. Se num lado a burca mantém a mulher na sua invisibilidade, no outro é o seu corpo, a sua língua ágil, a sua impertinência que a continuam a fazer resvalar para o invisível. Todos estes aspectos da mulher emancipada (aspecto que a burca vela para que não se evidenciem) chamam os olhares, atraiem as atenções, distraindo os olhares e as atenções de si própria.




A mulher chega a ser atraiçoada pelas próprias armas. A imagem parece conferir à mulher poderes imensos. No entanto, a imagem feminina só pode ter o seu alcance enquanto a mulher permanecer refém da sua menoridade. Deve aqui afirmar-se que não se diz isto com qualquer recriminação. Pensamos que as mulheres podem e devem continuar a abusar do cuidado com o corpo. Não nos queixamos. Mas o cuidado que o corpo feminino exige é exigido pela predominância social e cultural do olhar masculino. Tal como quando uma criança faz uma cara laroca porque a mãe tem o poder de lhe comprar um brinquedo novo. Se o mundo tivesse sido dominado até hoje pelas mulheres, provavelmente os homens usariam batôn.



Ler cap. 2

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