domingo, 28 de julho de 2013

Apontamentos para uma leitura dos três porquinhos

A propósito de segurança e insegurança...


Na visão do mundo que podemos chamar de Utilidade cada actividade é para-algo, inserida numa cadeia de para-quês que, em última análise, é em-função do humano. Isto serve para aquilo, que por sua vez serve para aqueloutro, que por sua vez serve para... em que esta remissão sempre se dá em-função de uma possibilidade do humano. De algum modo, o humano busca abrigo e protecção nas coisas do mundo. Não é que primeiramente aí ocorram coisas e depois o homem nelas busque abrigo - o humano já sempre está vinculado a si mesmo, num cuidado consigo, de tal modo que as coisas já sempre vêm ao seu encontro determinadas pelo mor-de-si do humano. E a explicitação desta estrutura do mundo parece fixá-la com mais vigor: o homem percebe que o mundo inteiro está aí para o satisfazer, que as coisas servem para ser usadas - como é evidente. O mundo inteiro é o seu quintal. Mesmo quando percebe que o seu quintal deve ser cuidado, esta postura ecológica mais não é do que uma versão da mesma dialéctica...
Na Utilidade, o humano encontra-se a si mesmo no interior da cadeia, como um momento dela, habitando uma cadeia de regulações completamente determinadas. O humano abriga-se e protege-se nas coisas justamente porque já não está em condições de percorrer nenhum caminho sério, nem de correr qualquer risco para sequer considerar o único perigo que efectivamente sempre corre. O humano sente-se seguro e feliz, sente-se tão mais seguro e tão mais feliz, ou inseguro e infeliz, tão mais inseguro e infeliz quanto permanece cego para o verdadeiro perigo. Sente-se seguro sem saber relativamente a quê deveria sentir-se seguro - e não seguir muito mais "útil" sentir-se inseguro para que pudesse procurar em que se abrigar? Sente-se inseguro sem saber relativamente a quê deveria sentir-se seguro - e não seria muito mais "útil" estar seguro de que a segurança relativamente à qual se sente inseguro não é de facto nenhuma segurança? Mas sentindo-se seguro confia no que jamais lhe foi abrigo, sentindo-se inseguro procura segurar-se no que nunca poderia abrigá-lo. Como aquele porquinho que se sente seguro na casota de palha - como esse mesmo porquinho que, não tendo chegado a tempo a casa e, suspeitando vagamente de que o lobo mau ronda, se sentisse inseguro e desabrigado: não porque tenha percebido o risco que de facto corre, mas porque se imagina seguro e abrigado na sua casa de palha.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

O homem é um animal?

A propósito de animais e homens...


É o homem um animal?

A que corresponde exactamente a noção de animal? Um animal - e assim o considera a tradição - corresponde a uma forma natural de determinação de comportamento. O animal nasce já completo - e a aquisição das condições de viabilização da sua vida apenas corresponde à execução dessa determinação com que já nasceu, de tal modo que nunca é mais do que o mero desenvolvimento de algo que desde o primeiro momento estava definitivamente fixado. Isso é um animal e assim o compreende a tradição. Como FORMA natural, a forma animal pode desformalizar-se de diversas maneiras. Há animais que são gatos, burros, cães, etc. Será que os há, também, humanos? À primeira vista dir-se-á que sim. De um ponto de vista científico, ai do estudante que o não sabe. No entanto, temos pelo menos dois problemas para resolver.

O primeiro tornou-se recentemente evidente e não escapa aos homens da ciência moderna. Os cientistas repararam que quer se analise uma pedra quer se analise um caracol, é possível decompor ambos em elementos da mesma natureza, de tal modo que o animal pode ser decomposto no mesmo tipo de elementos em que podem decompor-se as rochas. E isto não fica pelos elementos pois o mesmo se deve dizer do funcionamento. Assim, por mais complexo que seja o organismo, por mais evoluído que seja o animal, este funcionamento pode ser reduzido a quatro forças básicas - as mesmas quatro a que se pode reduzir a pedra e o calhau. Contudo - e aqui reside o problema - o inverso não se consegue fazer. Isto é, embora qualquer estudante medíocre possa decompor uma rã ou uma pedra em elementos químicos, nem o mais genial dos mestres consegue fazer novamente a síntese e obter a rã, embora possa ser capaz de reconstituir a pedra. O mesmo se passa com as quatro forças. Por mais dotado que seja o mestre, por mais tempo que ele olhe para essas quatro forças nunca nelas encontra a rã, nem nenhuma da biologia celular que sabe e aprendeu. Assim, embora tudo seja composto de elementos químicos, nada com eles se pode fazer que nos restitua a rã, embora se possa restituir a rã ao pó. Se a rã é pó, e ninguém duvida disso, já não é tão evidente que o pó seja rã. E o mesmo se passa com as forças, a mecânica, o funcionamento das coisas. É certo que a rã funciona como rã por intermédio das forças básicas, mas olhando para essas forças nada nelas faria adivinhar uma rã. E se sabemos que o básico pode dar numa rã, só o sabemos porque primeiro vimos a rã - e ninguém parece ser capaz de ver no mais básico quais são os animais que existem e que nunca foram vistos, embora, quando os vir, saiba que esses animais também são feitos de átomos e que funcionam por intermédio das 4 forças básicas. E isto funciona a todos os níveis: o vento sopra e podem enunciar-se as leis da movimentação do ar. Mas embora a tempestade não viole nenhuma dessas leis mais básicas, essas leis não servem para compreender a tempestade. Ora, também isto se passa com o homem em relação ao animal: pode ser verdade que o homem veio do animal, como de facto o tornado vem do vento, mas nem o vento explica o tornado, nem o animal o homem.

Mas o problema anterior é, na verdade, o mais simples. Poderia acontecer que o homem estivesse para o animal como o animal para a planta e esta para a pedra. Ou como o tornado está para a movimentação do ar. Poderia acontecer que o humano fosse apenas uma forma mais restritiva da forma animal - como de facto o orgânico relativamente ao inorgânico. Mas não é só isso: o problema - neste caso, o segundo problema que, de uma assentada, lança luz sobre o problema anterior e ao mesmo tempo o faz desaparecer - é que, se tomarmos a forma animal e lhe dermos forma humano, então nada fica do animal, senão enquanto animal, e não enquanto humano. Se há uma forma que a forma humana vem restringir, então esta restrição, seja ela o que for, não restringe nada senão lhe muda o sentido - como se o tornado já não fosse movimentação de ar, como se o orgânico já não se compusesse de inorgânico. Mas se a rã continua a ser pó, o humano já nada tem de animal - senão, justamente, enquanto é animal. Então, quando no humano consideramos o animal, não consideramos o humano - e se o humano é um animal isso só pode acontecer se primeiro se decidiu não o tomar como humano. Porque no momento em que temos uma forma determinada previamente fixada, se é verdade que podemos ter um caracol, uma zebra ou uma andorinha, não podemos ter um humano senão na medida em que um humano possa ser um boi ou um carneiro: e na medida em que haja humanos bestas, nessa mesma medida se pode dizer que também o humano pode comportar-se como animal.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

A doença do espírito

A propósito de doenças...

Toda a gente percebe que se pode sentir de saúde e estar profundamente doente. A maioria da gente ouviu ou conhece histórias deste género: um sujeito foi ao médico por rotina e saiu do consultório com a má-nova de se saber doente. Da mesma maneira, toda a gente tem a noção de que há pessoas que se julgam doentes sem o estarem de facto: são os hipocondríacos. 

Contudo, quanto à saúde do espírito cada um crê ser o mais habilitado a diagnosticar-se e não parece passar pela cabeça de ninguém que possa acontecer com a doença do espírito o que se passa com a doença do corpo: 

que justamente no achar-se de saúde possa residir o mal ou que, inversamente, aquele que diz que está doente possa não o estar - 
ou, o que é o mesmo, seja precisamente o julgar-se doente daquilo que se julga doente que seja a doença, e não esteja de facto doente por aquilo em que se acha doente, tal como, de verdade, o hipocondríaco está doente, sem estar doente como julga.

Visão do mundo

A propósito de convicções

As expressões "visão do mundo" e "visão da vida" não se referem a uma qualquer visão particular que se pode ter de uma garrafa ou de um calhau. Também não referem como que uma visão menos banal como pode ser a visão de um fantasma. Quando dizemos "visão do mundo" também não queremos dizer que estamos a fazer uma previsão do que está por vir, como se disséssemos que vemos para onde vamos ou que tivemos uma visão do que nos espera. Tão pouco, como é evidente, queremos dizer que o mundo tem olhos e pode ver, como quando falamos da visão das águias. Quando se diz "visão do mundo", tal como "visão da vida" não se quer dizer que há um mundo à frente dos olhos e que, por essa relação espacial, com os olhos chegamos a ver o mundo e assim a constituir uma visão. A visão do mundo não é como que um resultado da posição dos olhos frente ao mundo como pode acontecer com uma laranja que os nossos olhos abarcam toda numa visão de laranja. Também não se diz que temos uma soma das várias visões parciais do mundo, as quais juntamos e colamos numa grande imagem do mundo que depois podemos colar nas paredes do nosso quarto. A "visão do mundo" não é algo que se tem depois de ter um mundo e um sujeito que o vê de uma vez - nem um somatório das várias visões. Destas possibilidades nunca se chegaria a obter um mundo e muito menos a duvidosa e improvável visão inteira do mundo. Pelo contrário, qualquer estar e olhar para um ente do mundo, por exemplo, uma laranja, só é possível porque previamente se tem mundo que disponibiliza, entre outras coisas doces e amargas, laranjas. A visão do mundo é essa estrutura prévia de sentido que, existencialmente, pode ser descrita como um posicionamento que se tem e mantém por convicção, quer se trate de uma convicção desenvolvida por nós próprios, quer se trate de uma convicção bebida dos outros e que por mero acaso calha ser a nossa. A visão do mundo é, portanto, uma estrutura de sentido que mantemos por convicção mesmo quando tanto se poderia ser canibal como ecologista, conforme o acaso ditou que nascêssemos nesta ou naquela cultura, neste ou naquele tempo - e quanto mais nos encontramos absorvidos nesta estrutura, quanto mais nos atiramos com convicção a defendê-la ou simplesmente a deixamos fluir pelas nossas veias, mais esta convicção que temos por esta ou por aquela tese (temática ou atematicamente) poderia ser a mesma convicção mas por uma tese completamente oposta. De tal modo é assim que, para o dizer numa palavra, quanto mais convicção um "sujeito" tem acerca das suas convicções, mais ao acaso deve as convicções que tem; quanto mais acérrimo, fundamentalista e cego é este sujeito, mais facilmente poderia ser cego, fundamentalista e acérrimo em relação a um conjunto completamente de convicções. Assim, cada um vive pelas suas convicções - sejam estas tão vagas como o comodismo, sejam elas tão direccionadas e afuniladas como qualquer fundamentalismo - sem se dar conta ou sequer sonhar que, de um ponto de vista que de facto lhe é externo, tanto viveria pelas convicções que tem como por quaisquer outras. A "maioria da gente é outra gente" - e qualquer convicção lhe serviria muito bem, contanto que tivesse convicções.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Notas para uma Análise da Compreensão de Aquiles

A propósito de Natureza Humana





Abstract:
The author analyses the understanding of human nature that underlies the words of Achilles in the Iliad, IX,318-320 and Odyssey, XI,489-491. According to the author, Achilles bears an interpretation of the human condition that reflects a certain understanding of what it means to be human. In order to bring to light the understanding of human nature present in the words of Achilles, the verses listed are analysed, using evidences found elsewhere in the Homeric works mentioned, and relating the concepts present in the two target texts. A diagnosis is made in order to identify the description of human nature that is presented by the situations involving the poetic subject. In short, the author seeks to identify which understanding of human nature is present in the speech of Achilles, and what is the concept of human nature that emerges from the changes happening through the verses. Thus, in the Iliad the author finds evidences of an understanding affected by anger, involving the human world in a wave of melancholy in which the recognition of injustice predominates. And in Odyssey the article finds an evaluation of life that sustains that any form of human existence is preferable when compared with death – compared with death, life is better. The article explores in particular the idea that Achilles’ interpretation of life is modulated by the changes he suffers in his life.

Keywords: Achilles, existence, human nature, life and death, moods, understanding






Resumo:

Neste estudo o autor procura analisar a compreensão da natureza humana que está subjacente às palavras de Aquiles, na Ilíada, IX,318-320 e na Odisseia, XI,489-491. Segundo o autor, Aquiles é portador de uma interpretação da condição humana que traduz uma determinada compreensão do que significa ser humano. De modo a deixar ver a compreensão da natureza humana presente nas palavras de Aquiles, o autor recorre a indícios encontrados noutros pontos das obras homéricas referidas, relacionando as concepções presentes nos dois textos alvo. Identifica-se ainda a descrição da natureza humana que é possível fazer a partir das situações que envolvem os versos em análise. Assim, por um lado procura-se identificar que compreensão da natureza humana está presente no discurso de Aquiles e, por outro, que natureza humana emerge das alterações que o seu discurso sofre. Na Ilíada o autor encontra indícios de uma compreensão afetada pela ira, envolvendo o mundo humano numa aura de melancolia, na qual predomina o reconhecimento da injustiça por toda a parte. Da Odisseia obtém-se uma avaliação da vida que considera qualquer forma de existência humana preferível a qualquer forma de morte. Finalmente, o artigo explora o modo como a sua interpretação acerca da vida é modulada pelas mudanças que de cada vez se abatem sobre ele.

Palavras-chave : Aquiles, compreensão, disposições afetivas, existência, natureza humana, vida e morte


Artigo disponível na RPF, Natureza Humana Em Questão I, Tomo 68, Fasc. 3, 2012, pp. 375-390

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Filosofia, actualidade e utilidade

A propósito da utilidade da Filosofia


Toda a gente (não, na verdade até pouca gente - excepto os profissionais da "área" - se dá ao trabalho) pretende perguntar qual é a utilidade da filosofia na Actualidade...

Eu perguntaria qual é o papel da actualidade na Filosofia.

Mais, se a pergunta que se deve fazer é qual é a utilidade da filosofia na actualidade, então eu sou plenamente de acordo com aqueles que dizem que a filosofia não serve para nada e que, a bem dizer, tudo o que ela faz de útil poderia muito bem ser feito em sub-secções de outras disciplinas.







Talvez a maioria das pessoas pense que a Filosofia não serve para nada. Aqueles que, vivendo da Filosofia e experimentando a utilidade dela para eles, pensam que ela é útil - ao defenderem a utilidade da filosofia só provam a sua inutilidade. Quando, finalmente, a filosofia se tornar mais uma província da utilidade estará a jeito de ser justamente extinta. E então estaria já, de facto, morta... Se alguém pode salvar a filosofia, se ela precisa de ser salva, serão aqueles que não precisam nada de que ela seja útil para precisarem da Filosofia.

sábado, 20 de julho de 2013

A Filosofia na Educação

A propósito de Pensamento Crítico...


Sou completamente a favor da introdução de uma disciplina de "Pensamento Crítico" no Ensino Básico.

Sugiro que esta disciplina seja obrigatória, pelo menos no 3º Ciclo, convenientemente a partir do 2º, idealmente desde o 1º

Ao nível do Secundário penso que a disciplina de "Filosofia" deveria estar em todas as vias desde a Profissional ao Ensino Regular. Aliás, isso não seria nenhuma novidade, se tivermos em atenção outros países.

Na minha perspectiva, a disciplina deveria mesmo ser obrigatória nos três anos do Secundário - evidentemente, não penso que a "Filosofia" seja a única disciplina a merecer este lugar, mas é dela que falo aqui.

Veria com bons olhos a obrigatoriedade do exame de "Filosofia".


Uma sociedade que não vê nenhum emprego para a Filosofia está condenada. 
Não deve ser a Filosofia a adaptar-se à lógica da empregabilidade.


terça-feira, 16 de julho de 2013

Entre dois extremos...

A propósito de Pascal...

Estamos entre dois infinitos... segundo Pascal...

Bem, se estamos entre a ignorância e a sabedoria, então não estamos, de facto, completamente despojados de algum conhecimento - embora não estejamos na posse da sabedoria.

O problema, no entanto, imediatamente se complexifica se pretendemos esclarecer a situação em que nos encontramos.

Aparentemente não podemos definir os extremos: não podemos, de facto, dizer o que seja o conhecimento pleno, a posse da verdade, ou como se lhe quiser chamar. Da mesma maneira, não podemos saber exactamente a que corresponde a ignorância como tal, justamente porque qualquer tentativa disso exige uma não coincidência... encurtando de razões: estamos num ponto tal que não podemos determinar com rigor o que é o conhecimento pleno, nem o que é a ignorância pura.

O lugar em que estamos, portanto, é de tal modo que teria de ser determinado pela distância relativa aos extremos, para que assim se pudesse vir a saber se estamos mais próximos da sabedoria ou da ignorância. Mas não temos nenhum modo de o fazer, justamente porque para saber a que distância estamos da sabedoria teríamos sempre de saber onde ela está - mas nesse caso estaríamos na sua posse. Também não podemos saber se estamos muito afastados da ignorância, não só porque seria preciso determinar o grau de sabedoria, mas também porque a própria ignorância absoluta não é determinável.

A situação que estamos a tentar descrever é, então, de algum modo semelhante à ignorância, mas tem, de facto, um elemento de sabedoria. E o problema persiste porque se fala de semelhança relativamente àquilo que justamente não se sabe determinar... mas, seja como for, aquilo que esta descrição permite identificar é uma localização indeterminável na medida em que os extremos são indetermináveis. Mas o reconhecimento disto não é o mesmo que a ausência deste reconhecimento. Segundo Pascal este tipo de reconhecimento é o máximo de sabedoria humano...

terça-feira, 9 de julho de 2013

A pressuposição de evidência e a consciência do erro

A propósito de "pressuposição de evidência"...

A consciência é formal. O que quer isto dizer?

1. Quer dizer que qualquer conteúdo é um conteúdo consciente e nada existe para a consciência senão como conteúdo dela.

2. De 1. concluímos que a consciência normal é a "pressuposição" de evidência, de tal modo que o ente consciência É sempre, de algum modo consciente de alguma coisa na "pressuposição" de evidência disso de que está consciente.

3. De 2. concluímos que o ente consciente sempre se julga consciente - e que, em certo sentido, ele está certo nisso.

4. No erro há qualquer coisa de novo e isso NÃO É o colapso da pressuposição de evidência. O que há de novo na consciência do erro é, antes de mais nada, a explicitação de algo que estava em estado tácito, latente, INCONSCIENTE. O que é novo na consciência do erro é a consciência de algo de que não se tinha consciência - mas isto NÃO produz imediatamente nem necessariamente a consciência de que se está numa situação em que sempre se tem consciência de conteúdos explícitos de tal modo que a apresentação explícita depende dos conteúdos não explícitos. Isto é, reconhecer que se errou não produz necessariamente o reconhecimento de que se permanece num estado tal que pode ser idêntico ao estado em que se estava quando se estava em erro.

5. De 4. concluímos que a própria consciência do erro é um processo cujo funcionamento visa, em primeiro lugar, manter em funcionamento a "pressuposição" de evidência.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Necessidade: o que é preciso?

A propósito de necessidades e políticas...


A ideia de que a salvação está em fazer o "necessário" é parva, pelo menos, por dois motivos.

1º. Saber o que é, de facto, preciso, "necessário", requerido - numa palavra, saber o que se há-de fazer é, justamente, o problema - não basta pôr-se uma pessoa a gritar que é preciso fazer o que é preciso, é também "preciso" saber o que é preciso, e neste âmbito parece que não se tem sido capaz de perceber o que era preciso, pois tem-se feito o que se tem dito ser preciso e isso tem-se revelado inútil (e o facto de haver algumas pessoas que acham que tem sido útil isso mostra apenas o que essas pessoas acham ser útil e que, invariavelmente, tem que ver com apresentar certos indicadores numéricos e gráficos às pessoas que passam fome ou estão em circunstâncias aflitivas para lhes dizer que as suas aflições são, afinal, pura ilusão);

2º. O problema parece residir precisamente no facto de se andar a fazer o "necessário" e ninguém mais pensar no que deve ser feito. Ou melhor, toma-se o necessário pelo que se tem de fazer: como se o que se deve fazer fosse uma necessidade, mas isso apenas mostra uma imensa ignorância acerca da natureza humana, pois nada na história nos mostra que aquilo que é necessário em cada circunstância se tenha revelado aquilo que se deveria ter feito: embora, não raras vezes, a história nos tenha mostrado que o necessário era precisamente o que não se deveria fazer. Claro que logo se pensa que contra o necessário nem os deuses podem nada, como já o diziam os Antigos. Mas, mais uma vez, é "útil" recorrermos à história, a qual nos mostra que, tão frequentemente como a chuva no Inverno, aquilo que se tinha por necessário se veio a revelar a maior estupidez. E, assim, caímos, novamente, no problema número um.

Ora, pode-se ser muito criativo e crítico relativamente a soluções para um determinado problema. Pode-se ser capaz de identificar as falhas, as fragilidades, os perigos desta ou daquela hipótese - sem ter de a percorrer para cair no abismo. Assim, há pessoas particularmente despertas para este tipo de vícios formais nas teorias - são pessoas raras, que me surpreendem sempre pela sua argúcia, e que eu gosto de ouvir e tomar nota. Essas pessoas são muito importantes na vida política, económica, etc.

Há, depois, outro tipo de pessoas. Essas pessoas, ainda mais estranhas do que as anteriores, são capazes de ver contra tudo o que está dado a ver. Nós, pessoas comuns, olhamos para os calhaus e vemos calhaus. Mas essas pessoas não. Essas pessoas são capazes de perceber que aquele problema -com o qual nos ocupamos, e relativamente ao qual os criativos e críticos (descritos no tópico anterior) são argutos e exímios em análise - afinal não existe senão em razão de um vício do olhar. Estas estranhas pessoas dizem-nos na cara que aquilo que está mesmo à nossa frente - por exemplo, o tal calhau - pode muito bem não ser o que parece e até pode nem existir: e dizem-nos isto mesmo que lhes demos com o calhau na carola. Este tipo de pessoas é ainda mais raro do que o anterior. A sua crítica é ainda mais "especiosa" e não se lhes consegue perceber o raciocínio enquanto se come tremoços e bebe uma bejeca. Têm a curiosa particularidade de serem pessoas sem qualquer relevância política e social, raramente ocupam cargos importantes. Passam absolutamente despercebidos e são estranhamente incapazes de escrever um artigo para um jornal - porque não são capazes de dizer nada sem terem de explicar uma carrada de dificuldades que nunca nos haviam passado pela cabeça. Quantas pessoas destas encontramos nós? Para mim é sempre uma surpresa ouvir alguém, ou ler alguém que faça este género de crítica. Não curiosamente, têm por "hábito" - hábito muito estranho - serem lidos e comentados apenas depois de mortos (aqueles que chegam a escrever alguma coisa, porque aparentemente estes estranhos seres não são atraídos pela escrita - nem pelo facebook, imagine-se). Pra este hábito de passar despercebido talvez contribua a noção de que, seja o que for que digam, isso será deturpado, transformado e defecado noutra coisa qualquer, de tal modo que talvez não se sintam atraídos por contribuir para o ruído de fundo. Uma pessoa encontra três ou quatro destas estranhas criaturas na sua vida (provavelmente porque também nos falta a capacidade para reconhecer um génio se ele não tiver trinta microfones à frente, um contrato milionário ou o nome antecedido por meia dúzia de títulos).

Eu devo dizer que não tenho nenhuma das habilidades ditas anteriormente -mas sinto-me fascinado por essas mesmas habilidades. E tomo-as em consideração. Na verdade, penso que essas pessoas devem ser levadas a sério - mesmo que isso tenha tendência para não acontecer.

Isto tudo para dizer o quê? Bem, para dizer uma coisa muito "simples": estamos na estranha circunstância em que nos tornámos escravos e deitamo-nos a apontar toda uma catrefada de algozes, quando afinal a nossa situação aflitiva talvez tenha como origem apenas a nossa própria fronha bovina. O problema parece ser que não sabemos identificar o que seja esta condição de escravatura, pois também não sabemos quando foi que nos tornámos escravos, ou se afinal sempre fomos escravos - de tal modo que talvez a nossa experiência, essa mesma experiência em que temos de confiar todos os dias e que é vital, seja justamente o problema: pode acontecer que estejamos de tal modo encarneirados numa experiência de carneiros, num hábito bobino, que todas as referências que procuramos para nos libertarmos sejam referências adquiridas à medida do carneiro e do bezerro.

Ora, então, que é que se passa connosco, que regime é o que temos, qual é o nosso papel, para que serve um regime, para que servem os mercados, o que são as pessoas, o que é uma pessoa? Por que temos de fazer o que os mercados dizem, o que a Alemanha diz? Se nos mandam enforcar, temos de nos enforcar? Se não nos deixam viver senão enforcando-nos por que raio devemos enforcar-nos?

Todas estas perguntas são, evidentemente, parvas, porque já se sabe que há um problema e há que arranjar uma solução, e há um regime, e os partidos são o que são, se não queremos o passos temos de querer o seguro, e se um e outro são reles, a ditadura não seria melhor, e precisamos de dinheiro, porque sem dinheiro passamos fome, e para o Estado ter dinheiro, temos de passar fome, e acabamos por ir para o matadouro como as ovelhas com as nossas boas razões, porque temos por certo que ir para o matadouro é necessário para o problema em que estamos.

Resumindo: também não é sair para a rua que nos salvará por si só. E ficar parado também não. Esses comportamentos, por si só, são neutros. Pode-se sair à rua, como se fez no Egipto, e metermo-nos numa situação igual ou pior. Há qualquer coisa que se deve aprender com todos esses povos - estranhos para o português - que marcham contra exércitos e polícias e fazem cair regimes à custa do sangue, ou que, como os brasileiros, forçam o governo a fazer o que deveria ter feito sem que o obrigassem. Há uma lição que é esta: vale a pena sair do sofá. Mas também há uma lição a aprender com o Egipto: é preciso mais, é preciso muito mais do que fazer cair um Governo ou um Regime, é preciso muito mais do que votar. É preciso consciência. E a consciência aqui não é a simples notificação das coisas: pensar numa frase, por exemplo, "é preciso que o governo se vá embora", não garante que saibamos o que isso significa - sobretudo, o que isso significa em relação AO NOSSO PAPEL. Porque toda a gente parece convencida que basta mandar embora o Passos e esperar que a situação se resolva sem a gente ter de fazer nada em particular. Mas, justamente por isso, muito provavelmente, as coisas vão continuar simplesmente na mesma.
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