quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

O poeta e a acção

A propósito de poesia e acção.

«O homem de acção é sempre inconsciente.»
Goethe


O exercício poético é o da imaginação.
A actividade do poeta é a de imaginar ideais - ideais que não vive. O poeta é essencialmente um fingidor. Escreve longos poemas devotados ao amor platónico e logo a seguir vai ao bordel. Ou mesmo escreve sobre o amor platónico em pleno bordel.

Pessoa queixava-se de que a natureza não o talhara para a acção. 

"Mas ninguém pode ser julgado pelo que não fez, se a sua natureza o não talhou para homem de acção, ou se a sua lucidez não admite a parte de ilusão que toda a acção exige." (Jorge de Sena)


O que normalmente sobrevive ao poeta é a sua "obra". Não a sua acção. Desde os gregos que "poesis" se distingue de "práxis" (acção).

O campo do poeta é o estético, não o da "acção". A imaginação, não a "prática". 
O poeta cria. Há algo de divino no poeta. Já o homem de acção age. E há sempre algo de terreno em toda a acção. 

Os grandes poetas são sempre demasiado lúcidos e tal lucidez não admite a necessária inconsciência que toda a acção exige

Exaustão e depressão entre os alunos

A propósito de uma entrevista...

Quem quiser comparar os vários estudos/inquéritos aos alunos que têm sido feitos ao longo do tempo poderá confirmar o seguinte - ao longo dos anos:
- quanto mais se facilitam os conteúdos e o sistema de avaliação, mais os alunos se queixam de que a matéria é difícil, se queixam das notas e se consideram maus alunos;
- quanto mais se flexibilizam os conteúdos e se torna estes mais acessíveis e quanto mais se recorre a novas estratégias para fazer os conteúdos mais interessantes, mais os alunos a consideram aborrecida;
- quanto menos exames existem mais os alunos se dizem pressionados para os exames;
- quanto mais as escolas se enchem de actividades, de visitas de estudo, de mil e uma empreitadas destinadas a ocupar aulas sem ser a ter aula, mais os alunos se queixam de a matéria ser demasiada;

- em geral, quanto mais a escola se flexibiliza, mais os alunos se declaram pressionados; e quanto mais a escola facilita e se dinamiza, mais os alunos dizem não gostar da escola; e quanto menos exigente a escola é, mais tristes os alunos se declaram.

Antes de ter começado esta vaga que procura facilitar, flexibilizar, etc., os alunos diziam gostar mais da escola. Ou seja, ao longo dos últimos anos a escola tem procurado tornar-se mais agradável, e ao mesmo tempo os alunos dizem-se cada vez mais desagradados. Quando a matéria era mais difícil, mais rigorosa, mais extensa e não havia tantos malabarismos estratégicos, os alunos diziam - basta comparar as estatísticas - gostar mais da escola, gostar mais das matérias, e diziam que os conteúdos eram menos difíceis, menos chatos, etc. Quando a escola era mais rigorosa e menos flexível, os alunos diziam-se menos cansados, menos pressionados e menos depressivos. Nos anos em que houve mais exames e provas globais, os alunos diziam-se muito mais contentes com a escola do que hoje. E esta simultaneidade de dados (escola mais difícil, alunos mais satisfeitos) é consistente ao longo do tempo e nos vários países.

Curiosamente, no entanto...

Com tudo isto, alguns "entendidos" acham que aquilo que falta é flexibilizar mais, tornar a escola ainda menos exigente, tornar a escola numa brincadeira.

Seria interessante que os investigadores lessem alguma coisa sobre a sugestão de que, quanto mais se rebaixa um ideal, menos efeito dinamizador este tem.
Kierkegaard fala muito disto: os homens vão pondo a si mesmos ideais elevados e difíceis; depois vão esvaziando esses ideais, tornando-os mais fáceis, retirando-lhe o rigorismo, flexibilizando, etc., até que, por fim, o ideal se tornou uma bagatela acessível a qualquer bocejo; o resultado não é, contudo, que agora o sujeito se sente muito satisfeito com alcançar o ideal (que foi esvaziado do seu significado), mas sim que o sujeito se entedia com ele e cai na melancolia.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Os benefícios morais da estupidez

A propósito da estupidez


por INÊS ADRIANA AMADO DA SILVA


Esta tese aborda o problema moral da estupidez a partir do romance O Homem sem Qualidades, de Robert Musil. A partir do conceito de «homem sem qualidades» e da teoria de Musil acerca das qualidades humanas, identificam-se três tipos de pessoas e de problemas morais: o estúpido funcional, o génio disfuncional e o estúpido ocasional. A conclusão deste trabalho descreve os benefícios morais proporcionados pela estupidez a estes três tipos de pessoas.

This thesis approaches the moral problem of stupidity as it is described in the novel The Man without Qualities, from Robert Musil. Starting from the concept of «man without qualities» and from Musil’s theory about human qualities, three types of human being and their moral problems will be described: the functional stupid, the dysfunctional genius and the occasional stupid. The conclusion of this thesis describes the moral benefits that stupidity provides to each of these three types. 

Dissertação orientada pelo Professor Doutor Miguel Tamen, especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre em Teoria da Literatura

Em busca da felicidade

A propósito da obsessão pela felicidade


Em busca da felicidade: uma narrativa

por Luís Mendes

Em primeiro lugar, o nosso propósito, neste artigo, é mostrar que a ideia de que a felicidade constitui o fim último da vida humana corresponde a uma narrativa, isto é, a uma compreensão possível que admite alternativas. Em segundo lugar, pretendemos confrontar a narrativa da felicidade com uma alternativa ao seu núcleo duro. Assim, colocamos a hipótese de que a pior coisa que pode acontecer a um sujeito é viver feliz toda a vida. Para analisar esta hipótese estudaremos o episódio dos lotófagos, na Odisseia, de Homero, e o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley

Firstly, our purpose in this article is to show that the idea that happiness constitutes the ultimate end of human life corresponds to a narrative, that is, to a possible understanding which admits alternatives. Secondly, we will confront the narrative of happiness with an alternative to its hard core. Thus, we hypothesize that the worst thing that can happen to a human is to live happily all his life. With this hypothesis in mind, we will study the episode of the lotus-eaters, in Homer’s Odyssey, and the Aldous Huxley’s Brave New World.


Estudos em Comunicação nº 27, vol. 2, 79-101
DOI: 10.20287/ec.n27.v2.a06

O problema do mandarim revisitado

A propósito do problema do mandarim


problema do mandarim revisitado

por Luís Mendes

Portanto, é este o problema: a consciência moral tem poder de execução? Ou trata-se de um governo fantoche? De uma voz colocada em nós só para fingirmos que as nossas acções, quando agimos em conformidade com ela, estão revestidas de uma dignidade que nunca tiveram? Será que os homens evitam o mal apenas por cobardia e fraqueza?


ESC:ALA
Revista electrónica de estudos e práticas interartes
Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
ISSN 2183-1823

Os génios, os normais... e os outros!



Há três tipos de pessoas.

Há a maioria, os muitos, a grande maioria dos muitos normais. São a estrutura do mundo.
Há os génios. Os incompreendidos pela maioria, enquanto vivem. Que são admirados depois, mais tarde, frequentemente, depois de terem morrido. São os que são extraordinários e fazem coisas extraordinários. A maioria não os compreende. Mas admira os génios do passado. Admira os génios, desde que não viva com eles.

Depois há um terceiro tipo de pessoas que compreende os génios, mas não são génios. Não são suficientemente geniais para serem extraordinários, mas são suficientemente inteligentes para compreenderem o que os génios dizem e fazem. Não são suficientemente extraordinários para serem geniais, mas são suficientemente anormais para não se enquadrarem nos muitos.

Este tipo de pessoas não fica na história, mas também não tem uma vida normal. Sabem que não são normais, mas não têm a originalidade necessária para fazer algo verdadeiramente importante.

Conseguem ler e compreender um livro escrito por um génio, e estão conscientes do que é a genialidade. Por isso mesmo sentem na pele a dor de não terem aquele tipo de ideias, aquela imaginação, aquele instinto que rege os génios.

Estas pessoas são o tipo mais infeliz. Porque, ao contrário dos normais, não são precisos para manter a estrutura do mundo no seu lugar. E, ao contrário dos génios, também não são precisos para fazer o mundo dar saltos. São suficientemente inteligentes para saber o quanto são desperdiçáveis e inúteis ao mundo, mas não são tão inteligentes que consigam encontrar a solução do problema.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Aporia: Sócrates e Platão

A propósito de aporia




A aporia era para os platónicos, e a começar pelo próprio Platão, a estrada para o conhecimento, o caminho para a sabedoria.
Mas em Sócrates parecia estar em causa, primeiramente, um outro sentido mais literal. De facto, o que estava em causa no termo "aporia", em grego, era o sentido de caminho sem saída, ou de onde só muito a custo se poderá sair.

Portanto, Sócrates olhava para a aporia como algo de onde dificilmente se poderia sair. Platão olhava para a aporia como algo que levava a outro lado.


O mesmo termo. Dois significados muito diferentes.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

É Natal: de onde vem o presépio?




A propósito do presépio.



O que é que do presépio está presente no Novo Testamento?

Na verdade, só a partir do século XIII alguém se haveria de lembrar de fazer um presépio.

No entanto, em Lc 2:7 encontramos uma referência a uma manjedoura, φάτνη. Envolvido em panos, o menino Jesus foi deitado in praesepio, ou seja, numa manjedoura. É, portanto, desta expressão em latim, in praesepio, que provém o termo presépio em português. Presépio significa manjedoura.

Lucas menciona também pastores e anjos (Lc 2:8-20).

Por sua vez, Mateus 2:1-12 fala de magos, μάγοι (mágoi). O termo grego μάγος (mágos), designa um homem sábio persa, da classe sacerdotal. Mas não há qualquer referência a quantos são nem à possibilidade de serem reis.

A referência a três reis magos, e aos nomes Gaspar e Melchior, aparece na Excerpta Latina Barbari (página 51v e 52) composta entre o século V e VI. 
Um outro texto do século VI, A Caverna dos Tesouros (página 40b, col. 2), apresenta nomes bastante diferentes (em siríaco). 
Um outro tratado do século VIII, traduzido do grego para o latim, Flores ex diversis, já enumera os três nomes hoje conhecidos: Melchior, Gaspar (ou Caspar) e Baltasar.

Quanto ao boi e ao burro encontra-se referência num escrito, talvez do século VII, a que se chama hoje Evangelho de Pseudo-Mateus (cap. XIV).

Finalmente, foi Francisco de Assis que, já no século XIII, fez o primeiro presépio.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

A injustiça social e a banalidade do mal

A propósito da Banalização da Injustiça Social



Injustiça social.
A injustiça social é a "injustiça perfeita". No sentido em que se fala de "crime perfeito": um crime cujo autor não pode ser apanhado.
A injustiça social é a mais perfeita, porque ninguém é efectivamente culpado, porque nenhum de nós se sente efectivamente culpado, porque as culpas são sempre de um "eles" indefinido com o qual nenhum sujeito individualmente se identifica.
A banalidade do mal é isto.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

A obtusidade

A propósito de entendimento comum

«pois, se é preciso um pouco mais do que honestidade para se dar bem neste mundo, já a obtusidade é sempre necessária para se ser verdadeiramente bem-sucedido e ser verdadeiramente entendido por muitos»
Johannes Climacus [Kierkegaard], Postscriptum


Ironia de Climacus, evidentemente. Pois, como se sabe, não é precisa a honestidade para um sujeito se dar bem no mundo - honestamente, a honestidade parece só atrapalhar. Mas há uma ironia ainda maior em afirmar que a obtusidade seja necessária para se ser entendido por muitos, pois obtuso é aquele que, normalmente, entende mal, ou não entende. Portanto, para que muitos se entendam uns aos outros é preciso que haja um desentendimento comum, ou um mal-entendido de fundo que suportem o entendimento superficial.

Neurociência e existencialismo

A propósito de,

Foi Libet que detectou o hiato entre decisão (tomada pelo cérebro) e consciência da decisão, lá para meados da década de 80... Tal hiato reduz a o livre-arbítrio a uma ilusão.
Desde então já houve estudos no mesmo sentido, e outros que o refutam ou que re-interpretam esse tipo de dados. 
A posição mais radical contra o livre-arbítrio nessa área é a de Blackmore, que vai ainda mais longe para negar também a existência de um "sujeito", de um "eu", de "alguém" - ficou conhecida a sua expressão "there’s nobody in there" (não existimos, por isso, também nem sequer faz sentido perguntar se somos livres). Mas não é verdade que todos os neurocientistas concordem que não temos livre-arbítrio.

Depois resta a perspectiva do existencialismo: mesmo que tudo isso seja verdade, nada disso muda o facto de, aqui e agora, ter de ser eu a tomar esta decisão. Do ponto de vista existencial, este estar condenado a ter de ser eu a arcar com a responsabilidade de decidir não é uma ilusão, mas precisamente a realidade da vida.

sábado, 27 de outubro de 2018

O homem concebido como se fosse um cão

A propósito da ideia segundo a qual é o professor que tem de motivar os alunos

Concordo completamente com a posição defendida por Carlos Fiolhais neste artigo de jornal.

Mais: parece-me que a principal razão (havendo, naturalmente, outras) para os alunos hoje andarem tão desmotivados é precisamente esta "modernice" de terem de ser os outros a motivá-los. Eles próprios já interiorizaram isto e, portanto, sentem que a responsabilidade à partida não é deles. A responsabilidade foi-lhes retirada. Não lhes compete esforçarem-se: só têm de esperar que os outros os motivem. Se não estudam porque não lhes apetece, a responsabilidade não é deles; se não estudam porque não gostam da matéria, a responsabilidade não é deles. Sabem muito bem que a responsabilidade será posta no professor: se o aluno não estuda porque não gosta da matéria a culpa é do professor que não o motivou.

Pobre concepção de "humano" que subjaz a esta "modernice". É conceber o humano como se ele mais não fosse do que um "cão de Pavlov".

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Determinismo físico e liberdade ética

A propósito dos estóicos

No âmbito físico, os estóicos conceberam um mundo rigidamente determinado. Mas no âmbito ético defenderam que a liberdade é a única característica que diferencia o homem dos outros entes.

O carácter dogmático do ponto de vista da lógica

A propósito de Lógica e Filosofia



Fichte distingue o ponto de vista da filosofia do ponto de vista da lógica.

Mais, procura mostrar que estes são dois pontos de vista opostos. 

Ainda mais, que a influência extraordinária da lógica na cultura prejudica a filosofia, dado que os pressupostos dogmáticos da lógica levam a que as questões propriamente fundamentais da filosofia não sejam compreendidas: não é que tais questões estejam para além da compreensão humana, mas sim que a lógica, pelo seu carácter dogmático, identifica-se a si mesma com o ponto de vista humano, reduzindo este a um ponto de vista lógico, como se houvesse uma identidade perfeita entre ponto de vista lógico e ponto de vista humano; assim, a lógica declara como incompreensível tudo aquilo que ela mesma não compreende; por isso mesmo - dizemos nós - constitui um ponto de vista dogmático.
A questão central aqui é a de saber qual é o carácter fundamental do nosso ponto de vista humano.

sábado, 20 de outubro de 2018

A banalidade de não querer saber

A propósito de despolitização





A despolitização é uma característica daquilo a que Arendt chamava banalidade. Cria-se uma sociedade da banalidade. Então, a característica desta sociedade é que nela tudo - qualquer conteúdo - pode ser banalizado. A banalidade do mal está sempre presente como possibilidade, e se por acaso é o bem que se banaliza isso não deriva do conteúdo (de ser bem), mas do acaso (de circunstâncias que não dependem do facto de o conteúdo ser "bem" ou "mal", de modo que quer fosse um, quer fosse outro, qualquer um se poderia ter banalizado)... A banalidade destrói o significado das diferenças entre conteúdos (como já antes de Arendt dizia Kierkegaard, numa sociedade deste tipo a opinião de um marinheiro bêbado vale o mesmo que a do mais distinto dos homens, a opinião de leigo vale tanto como a de um bispo, e a opinião de um ignorante vale o mesmo que a de um especialista, porque tudo se tornou uma questão de opinião, e todas as opiniões valem o mesmo.
Não há apenas despolitização, mas também desmoralização, e não apenas desmoralização, mas também falta de estética, e etc., etc. Quer dizer, cria-se um ambiente cuja característica fundamental é a indiferença - e só porque essa é a característica essencial, de fundo, é que depois qualquer coisa se pode tornar o "assunto do dia", ou o "acontecimento da semana", ou a "opinião pública", ou a "tendência do eleitorado" - que, depois, também rapidamente pode mudar para o extremo oposto. Numa semana, Lula ganhava, mesmo preso; na outra ganha Bolsonaro. Como se nada se passasse. Arendt diz que o fenómeno de a Alemanha Nazi, depois da guerra, se converter instantaneamente numa democracia e voltar aos valores tradicionais com tanta facilidade é o mesmo fenómeno que permitiu que anos antes milhões transitassem da República de Weimar para o Nazismo sem dificuldade. De certo modo, os alemães, na sua maioria, não eram nazis. Como Eichmann não era realmente nazi, mas era responsável pelo programa de extermínio. Ele próprio sempre disse que não ligava nada para a política: foi uma oportunidade de emprego, e foi eficiente porque queria ser um bom funcionário e ter uma carreira de sucesso.

Trump no Montana e outras estórias

A propósito da natureza humana


Então Trump foi ao Montana dizer que quando um dos seus apoiantes deu uns sopapos num jornalista pensou "é pá, isto é capaz de ser mau para a sua campanha", mas depois logo reconsiderou: "ah, isto foi no Montana: até é capaz de o favorecer". E tendo dito isto, o público, gente do Montana, aplaude e ri-se.
Eu nem sei bem quantas camadas de ironia se sobrepõem neste episódio! Ainda falam da falta de cultura de Trump. A capacidade de Trump para as figuras de estilo suplanta os mais extraordinários escritores. Onde é que encontramos em Eça uma ironia com este nível de densidade??? Trump vai muito à frente!

Mas Trump revela, mais uma vez, aquilo que eu temia: ao contrário do que supõem muitos intelectuais, Trump conhece muito melhor a realidade Americana, e a realidade do povo, do que os intelectuais e classe dos comentadores.
Já perdi a conta àqueles que num momento ou noutro declararam que "não, as pessoas não votam nele por apoiarem a violência, ou por serem racistas", ou que "não, não, as pessoas não querem o que ele diz, apenas confiam que ele diz mas não faz".
Mas Trump, que não se deixa iludir com parvoíces pseudo-rousseaunianas, conhece muito melhor as pessoas do que os analistas. Trump não presume, como presumem os comentadores, que as pessoas do Montana são basicamente anti-violência e que iriam castigar nas urnas um candidato que desanca um jornalista!!! Trump sabia muito bem que as pessoas adoram esse tipo de espectáculo, e não só não condenam uns sopapos bem dados num jornalista, como logo se disponibilizariam para revesar o candidato e darem elas mesmas uns sopapos no jornalista.
Trump também não presume, como presumem os comentadores, que as pessoas do Montana não gostariam de ser vistas como adoradores de sopapos!!! Pelo contrário, ele diz na cara das pessoas do Montana que acha que elas são do tipo de pessoas que ficam contentes quando um candidato dá uns sopapos num jornalistas, e as pessoas do Montana acham piada e aprovam que o presidente fale com elas nestes modos familiares.

Trump sabe muito bem - como já sabiam Freud, Nietzsche, e até Schopenhauer - que o ser humano tem uma afinidade natural com a violência. E tem uma afinidade especial com o espectáculo, com a publicidade - porque, como dizia Kierkegaard, o humano tem uma tendência natural para ser "público". Ou, como dizia Heidegger, o humano, no início e na maioria das vezes, é "das Man". Como sabiam Óscar Wilde e Fernando Pessoa, o ser humano tem tendência para ser "a gente". O sujeito prefere ser "a gente" do que ser ele mesmo, quanto mais não seja porque sendo "a gente" pode-se ser o que quiser, sendo nada.
E Trump sabe todas estas coisas para as quais muitos, desde há muito, nos tentam alertar. Mas a classe dos comentadores de hoje, desde os jornalistas aos "especialistas políticos" e passando pelos intelectuais, esqueceu ou desconsidera essas lições profundas que encontramos em Freud, Nietzsche, Schopenhauer, Kierkegaard, Heidegger - porque o intelectual de hoje só acredita que o cidadão pode votar livremente num ditador, ou num fascista, ou num racista, depois dele ter ganho... e mesmo assim ainda tentará mostrar que, na verdade, as pessoas não queriam votar em Trump, ou em Bolsonaro, ou já agora em Hitler, foram mas é enganadas...

Nisto tudo tiro o meu chapéu a Trump: tem menos preconceitos do que muitos daqueles que o acusam de ser preconceituoso; e parece perceber muito melhor como funciona o ser humano do que todos os comentadores juntos.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

A democracia e outros regimes

A propósito de democracia...

Não penso que a democracia é um dogma. A democracia não constitui uma verdade auto-evidente, nem deve ser considerada a forma definitiva da política. Penso que a fórmula correcta continua a ser a de Churchill: "a democracia é o pior dos regimes, à excepção de todos os outros".


A democracia não é um regime perfeito

Na verdade tem muitos defeitos e vícios, possibilidades de deturpação e corrupção. O objectivo da política não é, nem deve ser, a democracia. A política é um meio para outro fim (o fim da política não é a política; a política pela política não existe: queremos a política porque precisamos dela para outra coisa). Portanto, a democracia é um meio, não é o fim. Julgo que estamos já em erro se supomos que a democracia é um fim em si mesmo esquecendo que ela é um meio de que nos servimos. Ora, como tudo aquilo de que nos servimos podemos usá-la para o bem ou para o mal. Podemos usá-la para nos enriquecermos a nós mesmos, ou para procurar melhorar as condições dos nossos concidadãos, erradicar a pobreza, etc. Podemos usá-la para um conjunto significativo de objectivos, alguns deles são melhores do que outros.


Todos os outros regimes conhecidos são piores

Agora, o facto de a democracia não ser perfeita e de ter muitas perversões não significa que devamos adoptar alternativas com defeitos ainda mais graves. Pelo menos, sabemos que os outros regimes conhecidos até ao momento já se revelaram ainda piores do que a democracia no passado. Sabemos isso. Podemos não o querer saber. Podemos omitir certos aspectos negativos dos outros regimes para sobrevalorizar as suas vantagens, mas os outros regimes só conseguem aparecer como vantajosos omitindo aspectos significativos. Por exemplo, podemos considerar que o Nazismo foi extraordinariamente eficaz a resolver problemas económicos e de desemprego, e é verdade que teve um desempenho fantástico nesses domínios; mas para considerar o regime nazi melhor do que a democracia é preciso omitir que matou milhões de judeus e deflagrou uma guerra mundial; ou então é preciso arranjar uma boa teoria da conspiração que simplesmente negue tudo isso. Ou seja: o Nazismo só consegue aparecer como preferível numa consideração global para quem seja ignorante, fanático, psicopata ou de facto pense que certas "raças inferiores" devem ser eliminadas. Para todos os outros, os que não são ignorantes, nem fanáticos, nem psicopatas nem pensam que os judeus devem ser eliminados, o Nazismo não parecerá uma alternativa preferível à democracia numa perspectiva global, depois de pesados todos os prós e os contras. Por isso é que a democracia é o pior dos regimes, à excepção de todos os outros: sempre que se consideram os outros regimes acabamos em algo ainda pior. A democracia é, por isso, uma espécie de resposta por exclusão de partes: os outros são piores.


A democracia não é o fim da história

Pensar que a democracia é o fim da história parece-me ser não perceber nada de história. Aquilo que a história nos tem mostrado desde sempre é que coisas que num momento nem sequer se imaginavam se vêm a tornar a ordem estabelecida. 
Portanto, pode acontecer que se inventem regimes melhores, mais eficazes, preferíveis à democracia, mas sabemos que essas soluções não se encontram dentro do leque das opções do passado, pois essas já se revelaram piores do que a democracia. Por isso mesmo, havendo alternativa melhor do que a democracia, esta ainda terá de ser inventada. Recorrer ao fascismo, ou às ditaduras em geral, é apenas estupidez. Ou estupidez, ou ignorância. Ou banalidade (cf. Arendt). Em qualquer destes casos - estupidez, ignorância, banalidade - raramente, para não dizer nunca, sai algo de bom daí.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

O ser-se filósofo

A propósito do filosofar...


sempre em nós um modo de compreender em funcionamento, um conjunto ideal que permite reconhecer o mundo de uma determinada forma. Esses pressupostos estão já em vigor quando formulamos uma questão e a importância de cada questão, o modo como lhe respondemos e o critério para decidir o que é uma resposta própria à questão depende desses pressupostos. Este é o B-A-Bá antropológico, o facto de precisarmos sempre de ter, e de termos sempre , um regime de sentido em vigor, seja qual ele for. Nascemos nus, mas quando damos connosco estamos já sempre vestidos de alguma maneira, e é muito difícil distinguir esta roupa de nós mesmos, pois ela torna-se como que uma espécie de "segunda natureza", como diziam os medievais.

Não estou certo, contudo, de que isso signifique, em algum sentido, que todos somos um pouco filósofos. Suponho que dependa daquilo que se entenda por ser filósofo, mesmo que seja só um pouco. Parece-me que começamos a ser um pouco filósofos quando reconhecemos as vestes que trazemos e colocamos a hipótese de que poderíamos trazer outras, de modo que é preciso encontrar alguma justificação para envergar aquelas que envergamos.

Neste sentido, somos todos um pouco filósofos na medida em que todos nós, num ou noutro momento, por um ou outro motivo, nos sentimos inquietos e suspeitamos que "tudo poderia ser de outra forma". E, "neste sentido", a suspeita, a dúvida, a melancolia, a ironia e até mesmo o desespero são muito mais filosóficos do que a atitude plácida e serena perante o mundo que se limita a apontar para o rosto que as coisas insistem em "mostrar-nos". E, também "nesse sentido", somos todos um pouco filósofos, porque provavelmente nunca existiu um sujeito que nunca tenha sido afectado por esse tipo de inquietação, de mal-estar e de desassossego...

Quer dizer, o ser filósofo, mesmo que só um pouco, parece-me não ter tanto que ver com todos nós possuirmos alguma metafísica, alguma epistemologia e alguma ética, mas sim sobretudo com a atitude de colocar isso em questão. O ser-se filósofo não parece ter tanto que ver com já ter algumas respostas, mas sim com o de colocar questões onde pareceria já termos respostas.

Depois, é claro, há formas mais ou menos espontâneas, mais ou menos sistemáticas de ser "um pouco filósofo"...

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O carácter auto-destrutivo da vontade de verdade

A propósito da vontade de verdade em Nietzsche

Há entre os comentadores um mal-entendido relativamente a Nietzsche e à sua posição relativamente à "verdade".
Nietzsche não nega que exista no humano um requisito de verdade. Pelo contrário, ele insiste, justamente, na força dessa "vontade de verdade", no vínculo aparentemente inquebrável do humano à verdade.
Acontece que Nietzsche reconhece também que o humano não está em condições de satisfazer essa petição - que está incluída na sua própria estrutura - razão pela qual "a verdade mata à distância, como as setas de Apolo".
A verdade mata porquê? Porque a vontade de verdade foi sendo satisfeita ilusoriamente graças à pretensão de verdade: as ilusões, na medida em que têm a pretensão de verdade, na medida em que se apresentam como verdade, satisfazem a vontade de verdade - mas apenas na condição de o sujeito estar na inconsciência. Ou seja, a satisfação da vontade de verdade está dependente da permanência da ilusão de verdade. O problema é que a vontade de verdade quando atinge um certo desenvolvimento começa a desocultar o carácter ilusório e falso das pretensas verdades em que se sustenta. Por isso mesmo, a vontade de verdade é auto-destrutiva, porque o seu destino só pode ser descobrir-se incapaz de cumprir os seus próprios requisitos.
Ora, visto que Nietzsche admite que o sujeito humano não é capaz de se manter conscientemente numa ilusão que sabe ser ilusão, num sonho que sabe ser sonho, a vontade de verdade mata - porque deixa o sujeito entregue ao nihilismo, à morte dos seus ídolos, à morte de Deus, da Verdade, da Metafísica como um todo, e isso só pode significar a desorientação, o caos, o vazio, o nada.
Portanto, Nietzsche não nega que a verdade é algo absolutamente importante para o humano... E é precisamente por isso que começa toda aquela conversa acerca da superação do humano, do sobre-humano. É que o humano está tão dependente da verdade que só ultrapassando-se a si mesmo pode superar a vontade de verdade. Ou seja, a vontade de verdade é tão vinculativa, tão radical no humano que a sua ultrapassagem só pode ser conseguida através de uma transformação radical do modo-de-ser humano.

sexta-feira, 23 de março de 2018

"Fake news" are the new black

A propósito de embandeirar em arco...


Isto do escândalo do facebook tem muito que se lhe diga.
No MIT, fizeram uma investigação sobre a razão pela qual as "notícias falsas" se propagam muito mais depressa do que as notícias verdadeiras.
A questão é muito curiosa, porque o facto de haver gente a produzir "notícias" falsas podia ser irrelevante em relação à propagação. Mas não é. As estatísticas mostram que as falsas são mais rápidas, convencem mais gente mais depressa do que uma notícia verdadeira.
Há um aspecto que é a circunstância de as pessoas preferirem embandeirar em arco em vez de queimar neurónios a "confirmar" uma notícia.
Mas também isto não explica porque as pessoas têm mais tendência a embandeirar em arco atrás das notícias falsas.


Há muitos aspectos a considerar, portanto. Mas há um que salta à vista. É que a produção de "notícias falsas" faz-se acompanhar de um plano selectivo de distribuição das mesmas... Uma "notícia falsa" é construída direccionalmente e a sua distribuição tem em conta o perfil dos consumidores. Ou seja, a "notícia falsa" não é apenas uma "notícia falsa", mas um conteúdo fabricado para um certo consumidor previamente inclinado para querer aceitar esse conteúdo...


O problema de base é, portanto, de facto, a nossa tendência para embandeirar em arco, porque nós queremos embandeirar em arco precisamente atrás daquilo para que tendemos, de modo que se alguém nos mostra um conteúdo que reforça as nossas opiniões, desejos e esperanças, tendemos a confiar nesse conteúdo e a assumirmos uma atitude prosélita em relação a ele.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Não-especismo e domesticação

A propósito da rejeição do especismo

Para se ser absolutamente claro: o movimento de defesa dos animais, de carácter anti-especista e libertário, para ser honesto, deve estender a sua crítica à domesticação, visto que esta consiste na sujeição de espécies não-humanas a formas subtis e dissimuladas de violência, transformando-as em instrumentos e meios para satisfazer as necessidades, os desejos e o gosto estético dos humanos. A domesticação transforma outras espécies, durante várias gerações ao longo de milénios em bibelôs dos caprichos humanos. É, por isso, inerentemente arbitrária - do ponto de vista não-especista.

Qualquer anti-especismo deve, por isso, condenar a domesticação. Não digo que deva condenar a domesticação tout court, mas deve condená-la por princípio. Por princípio, ter um gato de estimação apenas difere da tourada em grau, mas não essencial ou qualitativamente.

Para se ser absolutamente claro: do ponto de vista não-especista a diferença entre ter um felino de estimação e tourear um bovino é meramente graditiva, tal como agressão à estalada se diferencia de uma agressão à paulada.

A única razão pela qual uma pessoa pensa que tem direito de «adoptar» um qualquer animal, sem mais, e mantê-lo como animal de estimação, e pensar tudo isto como algo legítimo que merece aprovação chegando ao cúmulo de o considerar como dever, é, precisamente, o facto de se tratar de um animal de outra espécie... porque ninguém pensaria assim se, em vez de se tratar de outra espécie, se tratasse de um ser humano. Só o especismo, ou uma forma dissimulada dele, pode legitimar a domesticação de animais. Tal como só o machismo poderia legitimar o cavalheirismo para com as mulheres. Só um machista pode ser cavalheiro. A domesticação de animais de estimação é uma forma snob e dissimulada de especismo.

O crime de Eichmann

A propósito da noção de crime legalizado


Stricto sensu, não há «crimes legalizados». De facto, Eichmann obedecia a ordens superiores, mas também obedecia a leis. Assim, no seu julgamento, o próprio Eichmann refere-se ao Nazismo como «período de crime legalizado pelo Estado».
A expressão é curiosa e interessante, porque refere-se à situação em que certos comportamentos estão «legalizados», mas de algum modo são reconhecidos como «crimes». Daí, «crime legalizado». 
Mas a expressão é uma contradictio in terminis. Um crime é um acto ilegal, um acto que viola uma lei. Por isso, um acto legalizado, permitido pela lei, não pode ser um crime.
Acontece, porém, que quando se reconduz a ética ao direito e se pensa que «se é legal, posso», ou ainda pior: que, «se é legal, devo», fica-se sem modo de designar aquelas acções que são reconhecidas como indevidas mas que são legalizadas por um ordenamento jurídico. Daí, Eichmann referia-se ao «crime legalizado pelo Estado», porque lhe faltava a noção ética correspondente ao termo jurídico («crime»). Tinha o conceito de transgressão legal, mas não o de transgressão ética - e aqui procurava, precisamente, essa noção de uma «transgressão» perpetrada por um «acto legalizado pelo Estado».

sábado, 17 de março de 2018

Sobre a obrigação incondicional da existência futura da humanidade e o dever de reprodução


A propósito do dever de reprodução



Margaret Atwood, O Conto Da Aia

A humanidade atravessa uma das maiores crises da sua história: deixou de ser capaz de se reproduzir. Ou mais correctamente: as mulheres deixaram de ser capazes de procriar. Pelo menos, uma parte delas. Uma grande parte delas. A maior parte delas.
A maior parte das mulheres tornou-se infértil. Só uma pequena percentagem das mulheres ainda é capaz de se reproduzir.
Correspondentemente, surge um regime pragmático, prudencial, que rapidamente se apropria das mulheres férteis e as transforma em máquinas reprodutoras.

Hans Jonas, no livro O princípio da responsabilidade, defende que a existência não é um direito, mas sim um dever - um dever que inclui o dever de reprodução, pois a existência futura da humanidade é uma obrigação incondicional.

David Benatar: anti-natalismo


A propósito do significado de existir




«Each one of us was harmed by being brought into existence. That harm is not negligible, because the quality of even the best lives is very bad—and considerably worse than most people recognize it to be. Although it is obviously too late to prevent our own existence, it is not too late to prevent the existence of future possible people. Creating new people is thus morally problematic.»


David Benatar, Better never to have been: The harm of coming into existence

quarta-feira, 14 de março de 2018

O universo não tem uma existência independente

A propósito de Stephen Hawking


«Segundo a concepção tradicional do universo, os objectos deslocam-se segundo trajectórias bem definidas e têm histórias precisas: a cada momento, podemos especificar a sua posição exacta. [...]
[...] À medida que formos procurando as nossas respostas, iremos explicar a abordagem de Feynman em pormenor e utilizá-la para explorar a ideia de que o próprio universo não tem uma única história, nem sequer uma existência independente, o que, mesmo para muitos físicos, poderá parecer uma ideia radical.»
Stephen Hawking, O Grande Desígnio

=É sempre refrescante ler Stephen Hawking... sobretudo, depois de lermos ou ouvirmos os cientistas habituais, e os filósofos da ciência tecerem as suas certezas epistemológicas acerca do universo e do conhecimento científico... Hawking repõe os problemas no sítio, sem descurar a filosofia inerente.=

Evolução do pensamento

A propósito da ideia de que o conhecimento evolui num sentido determinado


«Os jónicos não eram senão uma das muitas escolas da filosofia grega antiga, [...]. Infelizmente, a visão da Natureza dos jónicos (a ideia de que a Natureza pode ser explicada através de leis gerais e reduzida a um conjunto de princípios) só exerceu uma influência significativa durante alguns séculos.»
Stephen Hawking, O Grande Desígnio


Que isto nos sirva de aviso. No passado, a ideia naturalista da natureza exerceu influência durante alguns séculos. Depois, desapareceu do mapa durante mais de um milénio.

Lembremo-nos disto sempre que vemos crescer à nossa volta movimentos anti-ciência, anti-vacinas, da terra plana, da pós-verdade, dos factos alternativos, das ciências alternativas, etc...

Natureza indiferente

A propósito da indiferença da natureza


«Os sucessores cristãos dos gregos rejeitaram a ideia de que o universo pudesse ser regido por uma lei natural indiferente.»
Stephen Hawking, O Grande Desígnio

Portanto, os pensadores cristãos adoptaram, jubilosamente, o bom princípio pagão de que a natureza tem estados de alma e carácter moral!!! Resta saber como teria sido a história humana dos últimos 2000 anos se a noção jónica não tivesse sido eliminada pelos pensadores cristãos! Provavelmente, a nossa evolução científica e tecnológica teria sido imensamente mais rápida, e hoje estaríamos muito mais frente.

Ou seja, muito provavelmente, por esta altura, já teríamos dado cabo disto tudo e mandado a vida na Terra para o galheto! Quem sabe se a razão pela qual ainda há vida na Terra não é o descrédito em que a ciência/física teórica caiu no período de emancipação cristã?

segunda-feira, 12 de março de 2018

Quem tem cu tem medo

A propósito de como antigamente se pensava de modo tão diferente


"qui potest mori, non potest cogi"
«quem pode morrer, não pode ser coagido»



"qui non potest mori, non potest non cogi"
«quem não pode morrer, não pode evitar ser coagido»



"cogi qui potest nescit mori"...
«aquele que pode ser coagido, não aprendeu a morrer»


Hoje pensa-se que é porque se pode morrer que se pode ser coagido, pois, como se sabe, quem tem cu tem medo.

Mas antigamente pensava-se exactamente o oposto: qui potest mori, non potest cogi...

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Virtude e felicidade

A propósito de virtude e felicidade

«O estóico afirmava que a virtude é todo o soberano bem, e a felicidade constitui apenas a consciência da posse da mesma virtude enquanto inerente ao estado do sujeito. O epicurista alegava que a felicidade é todo o soberano bem, e a virtude é somente a forma da máxima a ela conducente, consistindo no uso racional dos meios para a conseguir»
Kant, Crítica da Razão Prática

Bem, e ainda estamos nisto. Ainda se encontram hoje estas duas perspectivas.

Uns acham que o bem mais alto a alcançar é a felicidade e que, por isso, a virtude é o modo de vida que nos leva à felicidade, ou que nos traz felicidade. Estes são epicuristas, mas acham que têm uma perspectiva muito "moderna" e "revolucionária". Quase se engasgam quando descobrem que esta é uma perspectiva tão antiga como o cagar na história da Filosofia.

Outros acham que o bem mais alto a alcançar é cumprir o dever, é ser-se virtuoso, é fazer-se o bem, e que ter a consciência de que se fez o bem, de que se cumpriu um dever, de que se é virtuoso é a própria felicidade. Quantas vezes ouvimos isto: "ser feliz é ajudar os outros", ou "ajudar os outros torna-nos felizes". E pronto, também estes acham que têm uma perspectiva "revolucionária" e muito "moderna". Mas é mais uma perspectiva tão velha como a fome.

Eu concordo com Kant: tão parvo é achar que "ajudar os outros" nos faz felizes, como é estúpido achar que o Bem é ser feliz. Nem cumprir o dever, fazer o bem ou ser virtuoso é equivalente a sermos felizes; nem sermos felizes é equivalente a fazer o bem, cumprir o dever ou ser virtuoso.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Quais os Requisitos Formais da Noção Kierkegaardiana de Querer Uma Só Coisa?

A propósito de querer uma só coisa...




O autor beneficia de uma bolsa de doutoramento FCT (SFRH/BD/133923/2017)

sábado, 20 de janeiro de 2018

Teoria da Relatividade Especial

A propósito do pressuposto de que a explicação mais simples é a mais verdadeira



Einstein elaborou uma teoria a que chamou da Relatividade Especial. Esta teoria analisa as consequências teóricas do movimento uniforme (em linha recta e com velocidade constante). Dito assim, parece simples-simples, mas na verdade leva a consequências (previsões) que contradizem, ou que são absurdas, do ponto de vista do senso-comum. Nesse sentido, ironicamente, Einstein sugeriu que o senso-comum mais não é do que o conjunto de preconceitos que vamos coleccionando até aos 18 anos de idade.

Ao contrário do que muitas vezes se pensa, o paradigma científico já não é o de Newton. A visão do mundo implicada pela teoria de Newton (pelas suas hipóteses e previsões com base nelas), implicava, por sua vez, a existência de um espaço e de um tempo, independentes entre si, e absolutos em si mesmos (que o espaço, por exemplo, fosse idêntico para qualquer observador; na verdade, o espaço deveria ser como que um grande "continente" onde caberiam vários "conteúdos", mas o "continente" seria sempre o mesmo - tal como acontece com uma caixa onde posso pôr um rato, ou uma maçã, e a caixa mantém sempre as suas dimensões, etc.). De modo geral, tudo isto coincide com aquilo que podemos observar da natureza e, por isso, não colide com o senso-comum: o universo e as coisas nele são o que são, independentemente do observador. Esse espaço e este tempo seriam, por isso, absolutos.

Ora, é precisamente esta visão newtoniana do mundo, bem ao jeito daquilo que nós já pensamos do universo, que a Teoria da Relatividade Especial vem derrubar.

Na verdade, diz Einstein, o mundo de Newton só existir de uma perspectiva divina, para a qual não houvesse sucessão, mas do ponto de vista humano não temos acesso a qualquer "perspectiva divina" que nos revelasse um espaço e um tempo absolutos. A única coisa que podemos fazer é medir as coisas da nossa perspectiva e comparar essas medições com as de outros observadores. O espaço e o tempo são, portanto, ambos relativos: não são coisas em si, imutáveis, nem são independentes um do outro, mas, pelo contrário, estão indissoluvelmente urdidos num tecido "espaço-tempo". Einstein vinha, de certo modo, transpor para a ciência as conclusões da filosofia categorial de Kant. O irónico é que Kant elaborou a filosofia categorial numa tentativa de acomodar à filosofia as conclusões científicas de Newton, as quais eram agora derrubadas por Einstein que, por sua vez, traduzia em equações matemáticas as conclusões kantianas.

O resultado desta visão, à qual se chama Relatividade Especial, é que o mundo físico é o que é sempre por referência a um observador. A relatividade do mundo físico é irredutível. Mas se o mundo é, por assim dizer, matematicamente relativo, é preciso saber "relativo a quê?" Não basta dizer "ao observador", porque se há medições diferentes que podem ser comparadas entre observadores, é preciso um denominador comum. Ora, esse denominador comum é o movimento uniforme da luz. Assim, postula a teoria, que a velocidade da luz no vácuo será sempre a mesma para todos os observadores, independentemente do seu movimento - na verdade, independentemente seja do que for. Isso significa que a velocidade da luz é uma constante universal - na verdade, a única constante fixa e inalterável, a única "constante" no verdadeiro sentido do termo. Assim, a teoria prevê que eenhum objecto possa viajar a uma velocidade maior que a da luz.

Ora, tudo isso significa que nenhuma informação pode viajar no universo a uma velocidade superior à da luz, e isto muda radicalmente a imagem do mundo conforma Newton a fazia. Por exemplo, se o Sol desaparecesse neste momento e, portanto, a sua gravidade deixasse de lá estar, isso não significaria que nesse preciso instante todos os planetas do sistema solar sairiam disparados: seria preciso esperar até que a informação do desaparecimento do sol chegasse até cada um dos planetas (lembremo-nos: não há pontos de vista absolutos, mas tão só relativos, de modo que a Terra só ficaria livre da gravidade do Sol quando tal informação lhe chegasse, mas esta informação não é instantânea, porque teria de viajar a uma velocidade não superior à da luz).

Einstein procurou resolver este problema durante 10 anos, até que, finalmente, o conseguiu. O resultado foi a Teoria Geral da Relatividade que considera o movimento não uniforme, precisamente, à luz da constante universal proposta pela Teoria Especial (o movimento uniforme da luz). Assim, Einstein explicou que a Gravidade não é uma força de acção instantânea, como pensava Newton, mas uma deformação no tecido "espaço-tempo" provocada pela presência de matéria.



Quando a teoria da Relatividade foi proposta não havia como testá-la empiricamente. Acontecia apenas que as suas explicações matemáticas eram mais simples e "económicas" (havia outras teorias coincidentes com as observações até ao momento, mas eram mais complicadas e envolviam mais operações matemáticas para explicar as mesmas observações). Para ser testada, a teoria precisava de produzir experiências replicáveis que testassem as suas previsões para além da aplicabilidade às observações já conhecidas.
Ou seja, não bastava que explicasse as observações e os fenómenos conhecidos - porque isso muitas outras também faziam. Era preciso que as suas previsões não previstas por outras teorias fossem verificadas. Isto não "provaria definitivamente a teoria", mas permitiria confiar nas suas previsões, sobretudo se algumas das suas previsões mais "estranhas" e "fora do senso-comum" fossem verificadas. E até agora a teoria tem, de facto, superado os testes. Espera-se que assim continue e seja substituída apenas quando alguém encontrar uma hipótese que permita explicar tudo o que esta explica, mas precisando de menos operações matemáticas.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Cardápio religioso

A propósito de cristãos

Um sujeito entra no restaurante, senta-se e pede o menu. Estuda com cuidado a oferta e conclui que o frango assado com arroz custa 10 €, mas o bacalhau com batatas a murro custa 50 €. O prezado cliente bem que degustaria o bacalhau com as batatinhas, o prato que decididamente mais o cativa. Mas o facto de custar 50 € é uma grande desvantagem, por isso resolve o assunto chamando o empregando e pedindo:

- Olhe, eu quero o frango assado com arroz, mas se fizesse favor, troque-me o frango por bacalhau e, já agora, o arroz por batatas a murro.

Como é evidente, o empregado não aceitou a negociata, facto que indispôs terrivelmente o prezado cliente que imediatamente abandonou o restaurante queixando-se de que não tinha liberdade de escolha ali.

Ora, é mais ou menos isto que se passa com o cristão nos tempos de hoje: o sujeito quer ser cristão, mas não se contenta com a liberdade de poder escolher ser cristão ou não. Também quer decidir o que significa ser cristão. Então, diz que é cristão, mas ser cristão passa a ser outra coisa qualquer. Tal como o cliente que pede frango, mas depois quer comer bacalhau.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Espírito partidário

(texto original em: http://www.sks.dk/AaS/txt.xml)

«Há um vigoroso espírito partidário por todo o lado. Isto, claro está, não significa que nós temos apenas um partido que é vigoroso, pois isso, afinal de contas, não seria um vigoroso espírito partidário, mas um espírito vigoroso dentro de um partido. Não, há um vigoroso espírito partidário numa variedade de partidos. Temos liberais, ultra-liberais, conservadores, ultra-conservadores, e os do meio. Na política temos todos os valores concebíveis e inconcebíveis. Temos kantianos, schleiermacherianos e hegelianos; estes, por sua vez, estão divididos em dois grandes partidos: um que compreende aqueles que não se esforçaram para se tornar hegelianos, mas que são, apesar de tudo, hegelianos; outro que compreende aqueles que foram para além de Hegel, mas que são, apesar de tudo, hegelianos. O terceiro partido, os hegelianos genuínos, é muito pequeno. Temos cinco baptistas anti-crianças, sete baptistas, nove anabaptistas. Entre os baptistas há três que pensam que os adultos devem ser baptizados com água salgada, dois que pensam que devem ser baptizados com água doce, e um que faz a mediação entre as duas facções e insiste na água salobra. Temos dois straussianos. Temos um alfaiate que formou uma nova seita que consiste nele próprio e em dois aprendizes de alfaiate. Por algum tempo houve muito falatório de que teria ganho um terceiro discípulo de outra profissão, mas mesmo quando estava quase a capturá-lo houve uma disputa que levou o neófito a deixá-lo e a levar um dos aprendizes com ele, e a outra pessoa da outra profissão acabou também por desencantar uma nova fé. Neste preciso momento, em Pistolstrædet, é suposto alguém ter-se remetido à solidão para pensar numa nova religião, e as suas conclusões são expectantemente aguardadas nas ruas vizinhas [...]. O espírito partidário está por todo o lado. Brevemente, não haverá mão-de-obra suficiente para ter uma pessoa por cada partido. [...] Brevemente, bem que podemos acabar por ter de representar [cada um de nós] vários partidos, [...].»


Kierkegaard, Confissão Pública

(cf. Kierkegaard, The Corsair affair, tradução de Howard Hong e Edna Hong, Princeton: Princeton  University Press, 1982, p. 6 ss.)

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Aprender com os psicopatas

A propósito de o que temos a aprender com os psicopatas


De entre os livros e estudos que sustentam que os psicopatas têm muito a ensinar-nos, há um aspecto que ainda não vi ser desenvolvido. Não se tem dado o devido valor ao facto de os psicopatas serem sempre reconhecidos como pessoas pacatas e, frequentemente, como pilares da sociedade. Um psicopata consegue combinar diversas formas de reconhecimento, sendo amíude visto como bom pai, bom vizinho e pessoa dedicada ao bem comum. Já nem vou falar do facto de um psicopata conseguir arranjar tempo para isto tudo, ser bom pai, bom marido, bom professor, praticar voluntariado e ainda, entre dar aulas de ginástica gratuitas e contar uma história de embalar ao filho, matar 13 adolescentes - e, o que é mais, conseguir fazer tudo isto muito bem e ser apreciado por isso; ao passo que o padeiro da zona, como toda a gente sabe, não liga aos filhos, põe sempre sal a mais no pão, vende bolos de ontem como se fossem de hoje, põe os cornos à mulher e ainda é caloteiro. O psicopata consegue escapar sempre a esta maledicência, pois toda a gente lhes reconhece os dotes para fazer muitas coisas e bem todas elas! Mas, como dizia, o aspecto que tem passado despercebido é, precisamente, o facto de conseguir esse reconhecimento das pessoas, sempre tão aptas a dizer mal, mas que nos psicopatas só conseguem encontrar pontos positivos - é certo que terá assassinado umas quantas pessoas pelo meio, mas isto apenas reforço o meu ponto: é que o paspalho do padeiro, com a sua pasmaceira quotidianeidade, só consegue ser recordado pelos cornos que põe na mulher, ao passo que o psicopata, apesar de serial killer, recebe os elogios rasgados da comunidade.


Portanto, aqui está mais um aspecto em que temos, de facto, muito a aprender com os psicopatas. Este aspecto tem sido esquecido pelos estudiosos do tema, que se têm concentrado em mostrar que temos muito a aprender com os psicopatas em termos de constituição psicológica, em termos de eficácia, etc. Ou seja, os estudiosos têm focado aquilo que temos a aprender com os psicopatas para atingirmos um reconhecimento profissional de topo, mas têm negligenciado aquilo que os psicopatas nos têm a ensinar em termos de reconhecimento dos nossos vizinhos. Se alguém quer ser bem visto na comunidade, é bom que aprenda com os psicopatas.

domingo, 14 de janeiro de 2018

A coragem como acção sobre si mesmo

A propósito de coragem


O conceito de "coragem" remete para um determinado adquirido, algo que se pode adquirir. Portanto, para algo cuja posse implica uma aquisição, e uma aquisição que implica uma prestação do sujeito. Neste sentido, o conceito de "coragem" remete para algo que se pode conquistar - ou não. Difere, por isso, de outras noções que, por vezes, se confundem com a de coragem. Por exemplo, a coragem distingue-se do temperamento intrépido, do sujeito que não tem medo. Quem não tem medo - absolutamente nenhum medo - também não pode ser corajoso, embora possa ser intrépido. Para se ser corajoso é preciso, primeiro, ter medo e, depois, ser corajoso. Ou seja, a coragem é uma forma de "edição": o sujeito "edita-se" a si mesmo, agindo sobre si mesmo, resistindo a uma tensão imediata de fuga. Isto facilmente pode ser confundido com outras noções, razão pela qual, por vezes, se diz que os psicopatas são corajosos. Um psicopata não é corajoso, e isto pela simples razão de que é incapaz de sentir medo.

Por tudo isto, a coragem terá sempre a forma de uma acção do sujeito sobre si mesmo. Portanto, o decisivo na coragem não é a consideração daquilo que mete medo, etc., pois nunca se trata de uma acção externa, de um agir sobre o mundo exterior. A coragem pode ter, e tem efectivamente, efeitos sobre o mundo exterior, como podemos observar por todos os actos heróicos, todas as formas de resistência, todas as formas de resiliência. Mas, essencialmente, a coragem é uma acção interior do sujeito consigo mesmo. No limite, em teoria, um sujeito poderia ser corajoso sem ser reconhecido externamente como tal. Isto é assim, porque, como se disse, a coragem é uma acção interior - embora, normalmente, nós reconheçamos a coragem apenas pelos seus efeitos externos, quando os tem.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

A confusão hegeliana

A propósito de Kierkegaard e Hegel

Kierkegaard considera que Hegel é incapaz de lidar metafisicamente com o conceito de "movimento". Não que Hegel diga algo de errado. 

Simplesmente, Hegel não distingue a noção de movimento da representação do movimento enquanto objecto. Hegel confunde conceito e ente - confunde o facto de haver um conceito de movimento com o facto de haver movimento, e esta confusão entre conceito e ente marca continuamente a sua análise do ser.

Por isso, toda a reflexão ontológica de Hegel sustenta-se numa confusão ôntica.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

O ético é em si mesmo tautológico

A propósito de ética

«Não devemos fazer aquilo que consideramos incorrecto.»
Isto é uma tautologia. «Devemos fazer as coisas que consideramos incorrectas.» Isto seria uma contradição.
«Não devemos fazer aquilo que achamos que não devemos fazer.»
«Não devemos fazer aquilo que não devemos fazer.»
Tudo tautologias.
Mas o ponto de que se trata de uma tautologia não é irrelevante.
O ponto é: «Se há algo que consideras ser incorrecto não deves ceder a qualquer tipo de pressão que te incentive a fazê-lo.» A resposta à pergunta «porquê?» será sempre e apenas «porque não devo». Qualquer acrescento será apenas uma tautologia ou uma obliteração do âmbito ético enquanto tal.
Não há qualquer razão que fundamente um comportamento ético, excepto o seu carácter ético.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

O mito da criação do humano

A propósito da natureza indeterminada do humano

Depois da guerra contra os Titãs, os deuses olímpicos ficaram condenados a uma pasmaceira de morte, o que era particularmente grave dado que eram imortais. Assim, Zeus pediu a Prometeu e Epimeteu que criassem mortais para os deuses se distraírem. Nada como assistir a um bom espectáculo para passar o tempo.
Epimeteu começou, então, a criar animais. Com terra e água criou imensas formas e variados atributos, desde garras a asas, etc. Para cada animal criou um modelo e atribuiu a cada modelo determinados atributos, colocando cada espécie num lugar específico, fosse no ar, na terra ou no mar.
Estando Epimeteu muito embrenhado nisto e contente da sua arte em combinar formas, atributos e capacidades, chegou Prometeu para ver como se saíra o irmão. Mas ao chegar apercebeu-se que o irmão já distribuíra todos os modelos, todos os atributos e esgotara os lugares do mundo, o ar com as aves, a água com os peixes, a terra com os mamíferos, etc. Contudo, esquecera-se do humano.
Foi assim que o humano acabou lançado no mundo sem um lugar próprio para habitar, sem um modelo específico para viver, sem atributos e sem capacidades naturais. Deste modo, o humano não é nada, e precisamente porque não é nada, precisa de se tornar alguma coisa, de adquirir uma forma para si mesmo, de criar as suas ferramentas, de desenvolver as suas capacidades, de tomar um lugar do mundo para si. Mas, por natureza, o humano não está modelado, e qualquer que seja a configuração que vier a ter, terá de a adquirir em vida. 
Tudo isso porque Epimeteu se distraiu e acabou por dar tudo aos restantes animais deixando o homem entregue à míngua, à escassez, à falta e à inospitalidade do mundo.
O que nos valeu ainda foi a extrema compreensão que Prometeu desde logo demonstrou para com o humano, começando por roubar o fogo para lhe oferecer - episódio que espoletou a saga da civilização.
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