domingo, 8 de dezembro de 2013

O indivíduo e a manada - Uma sugestão compreensiva

A propósito da equivocidade da História e da Relatividade dos padrões culturais...

O estudo das culturas humanas transmite uma ideia ilusória do que significa ser humano. Primeiro observam-se diferentes povos para registar diferentes culturas. Depois, supõe-se que o humano é exclusivamente isso, essencialmente a cultura em que habita. A ilusão está na ideia que o homem vem a ser humano, que ser humano tem que ver com o processo de integração cultural no qual os indivíduos interiorizam padrões culturais e se tornam membros de uma comunidade, pensando de forma semelhante, pelo menos estatisticamente unificados. Assim, diz-se que o homem tem de tornar-se humano, como se tratasse de tratar os homens em manada, uma manada de cabras, uma manada de ovelhas, uma manada de vacas - e assim cada povo seria uma manada diferente, mas cada uma seria uma manada. A ilusão está em que, de facto, o homem deve tornar-se humano, ser humano não está, de modo algum, adquirido à partida. Que o homem deve tornar-se humano é uma constatação excelente que, no entanto, aqui desvia completamente o olhar, não porque ela esteja errada, mas justamente porque ela está certa. Ao observarem-se os povos para identificar as diferentes "formas de vida" aquilo que justamente fica ignorado, esquecido, é o aspecto individual da pessoa humana, e pode acontecer que seja precisamente na existência da pessoa individual que resida a essência do humano. Então, se já se esqueceu o indivíduo, de facto pode-se estudar este povo que sacrificava crianças aos milhares, aquele que consumia homens, outro ainda que matava os idosos - e em todos estes registos o que fica por registar ou, de qualquer forma, por receber atenção, é aquele indivíduo isolado, sofredor, corajoso que, a despeito daquilo que se passa ao lado de si, daquilo que todos à sua volta comemoravam, recusava, justamente, isso que os estudiosos dizem ser aquilo que faz um humano, a cultura que em manada tanto mata recém-nascidos como louva os direitos humanos. Se numa nota de rodapé um antropólogo faz notar os intrincados modos de uma cultura para castigar aqueles que recusavam participar nos procedimentos de massa desse povo - imediatamente a seguir esquece que esses procedimentos comprovam que havia quem recusava o ritual quando pretende desculpar as pessoas desse povo absolvendo o povo como um todo. Que interessante seria a investigação cuidada e demorada daqueles indivíduos que, em cada cultura, recusaram esses padrões, esses comportamentos aceites em manada! Que interessante seria registar não só o padrão, mas também o indivíduo que apesar da tendência para interiorizar padrões culturais, julgou pela sua consciência... aquele indivíduo que recusou o sacrifício de crianças a Tlaloc, ou aquele que poupou a vida de um inimigo em vez de o cozinhar... Não será também interessante que alguns que por nascerem num povo canibal seriam referidos como canibais também tenham sido capazes de recusarem ser canibais - e que alguns que tendo nascido numa época de caça às bruxas acabaram por ser caçados justamente porque defenderam as "bruxas"? Não será também interessante reparar que em todos esses tempos e povos houve aqueles indivíduos que não participaram ou até se rebelaram contra aquilo que se considera ser o "essencial" desses povos ou desses tempos? E em todos esses tempos e povos houve uma imensa maioria que se comporta como onda, de facto escurecendo e esbatendo, não esta ou aquela minoria com que o historiador também tanto gosta de se ocupar - mas este ou aquele indivíduo que, isolado, provavelmente com medo, talvez indeciso, foi ele mesmo, só, sem manada!


Cfr. Kierkegaard's Concluding Unscientific Postscript to Philosophical Fragments, ed. & transl. Hong & Hong, pp. 214-215:

"Será que o ser humano se tornou agora qualquer coisa diferente do que era antigamente, não é a condição a mesma: ser um ser individual existente, e não é o existir o essencial enquanto se é na existência?"

Não é mais fácil para o indivíduo existente actualmente ser autenticamente si mesmo do que era para o asteca, o grego, o homem da idade média - e se nesse tempo "o terror era sofrer ofensas físicas, o terror nos nossos dias é que não há terror", tudo parece tão fácil, e porque parece tão fácil ser-se indivíduo, ninguém perde realmente tempo a ocupar-se disso.

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