sábado, 20 de janeiro de 2018

Teoria da Relatividade Especial

A propósito do pressuposto de que a explicação mais simples é a mais verdadeira



Einstein elaborou uma teoria a que chamou da Relatividade Especial. Esta teoria analisa as consequências teóricas do movimento uniforme (em linha recta e com velocidade constante). Dito assim, parece simples-simples, mas na verdade leva a consequências (previsões) que contradizem, ou que são absurdas, do ponto de vista do senso-comum. Nesse sentido, ironicamente, Einstein sugeriu que o senso-comum mais não é do que o conjunto de preconceitos que vamos coleccionando até aos 18 anos de idade.

Ao contrário do que muitas vezes se pensa, o paradigma científico já não é o de Newton. A visão do mundo implicada pela teoria de Newton (pelas suas hipóteses e previsões com base nelas), implicava, por sua vez, a existência de um espaço e de um tempo, independentes entre si, e absolutos em si mesmos (que o espaço, por exemplo, fosse idêntico para qualquer observador; na verdade, o espaço deveria ser como que um grande "continente" onde caberiam vários "conteúdos", mas o "continente" seria sempre o mesmo - tal como acontece com uma caixa onde posso pôr um rato, ou uma maçã, e a caixa mantém sempre as suas dimensões, etc.). De modo geral, tudo isto coincide com aquilo que podemos observar da natureza e, por isso, não colide com o senso-comum: o universo e as coisas nele são o que são, independentemente do observador. Esse espaço e este tempo seriam, por isso, absolutos.

Ora, é precisamente esta visão newtoniana do mundo, bem ao jeito daquilo que nós já pensamos do universo, que a Teoria da Relatividade Especial vem derrubar.

Na verdade, diz Einstein, o mundo de Newton só existir de uma perspectiva divina, para a qual não houvesse sucessão, mas do ponto de vista humano não temos acesso a qualquer "perspectiva divina" que nos revelasse um espaço e um tempo absolutos. A única coisa que podemos fazer é medir as coisas da nossa perspectiva e comparar essas medições com as de outros observadores. O espaço e o tempo são, portanto, ambos relativos: não são coisas em si, imutáveis, nem são independentes um do outro, mas, pelo contrário, estão indissoluvelmente urdidos num tecido "espaço-tempo". Einstein vinha, de certo modo, transpor para a ciência as conclusões da filosofia categorial de Kant. O irónico é que Kant elaborou a filosofia categorial numa tentativa de acomodar à filosofia as conclusões científicas de Newton, as quais eram agora derrubadas por Einstein que, por sua vez, traduzia em equações matemáticas as conclusões kantianas.

O resultado desta visão, à qual se chama Relatividade Especial, é que o mundo físico é o que é sempre por referência a um observador. A relatividade do mundo físico é irredutível. Mas se o mundo é, por assim dizer, matematicamente relativo, é preciso saber "relativo a quê?" Não basta dizer "ao observador", porque se há medições diferentes que podem ser comparadas entre observadores, é preciso um denominador comum. Ora, esse denominador comum é o movimento uniforme da luz. Assim, postula a teoria, que a velocidade da luz no vácuo será sempre a mesma para todos os observadores, independentemente do seu movimento - na verdade, independentemente seja do que for. Isso significa que a velocidade da luz é uma constante universal - na verdade, a única constante fixa e inalterável, a única "constante" no verdadeiro sentido do termo. Assim, a teoria prevê que eenhum objecto possa viajar a uma velocidade maior que a da luz.

Ora, tudo isso significa que nenhuma informação pode viajar no universo a uma velocidade superior à da luz, e isto muda radicalmente a imagem do mundo conforma Newton a fazia. Por exemplo, se o Sol desaparecesse neste momento e, portanto, a sua gravidade deixasse de lá estar, isso não significaria que nesse preciso instante todos os planetas do sistema solar sairiam disparados: seria preciso esperar até que a informação do desaparecimento do sol chegasse até cada um dos planetas (lembremo-nos: não há pontos de vista absolutos, mas tão só relativos, de modo que a Terra só ficaria livre da gravidade do Sol quando tal informação lhe chegasse, mas esta informação não é instantânea, porque teria de viajar a uma velocidade não superior à da luz).

Einstein procurou resolver este problema durante 10 anos, até que, finalmente, o conseguiu. O resultado foi a Teoria Geral da Relatividade que considera o movimento não uniforme, precisamente, à luz da constante universal proposta pela Teoria Especial (o movimento uniforme da luz). Assim, Einstein explicou que a Gravidade não é uma força de acção instantânea, como pensava Newton, mas uma deformação no tecido "espaço-tempo" provocada pela presência de matéria.



Quando a teoria da Relatividade foi proposta não havia como testá-la empiricamente. Acontecia apenas que as suas explicações matemáticas eram mais simples e "económicas" (havia outras teorias coincidentes com as observações até ao momento, mas eram mais complicadas e envolviam mais operações matemáticas para explicar as mesmas observações). Para ser testada, a teoria precisava de produzir experiências replicáveis que testassem as suas previsões para além da aplicabilidade às observações já conhecidas.
Ou seja, não bastava que explicasse as observações e os fenómenos conhecidos - porque isso muitas outras também faziam. Era preciso que as suas previsões não previstas por outras teorias fossem verificadas. Isto não "provaria definitivamente a teoria", mas permitiria confiar nas suas previsões, sobretudo se algumas das suas previsões mais "estranhas" e "fora do senso-comum" fossem verificadas. E até agora a teoria tem, de facto, superado os testes. Espera-se que assim continue e seja substituída apenas quando alguém encontrar uma hipótese que permita explicar tudo o que esta explica, mas precisando de menos operações matemáticas.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Cardápio religioso

A propósito de cristãos

Um sujeito entra no restaurante, senta-se e pede o menu. Estuda com cuidado a oferta e conclui que o frango assado com arroz custa 10 €, mas o bacalhau com batatas a murro custa 50 €. O prezado cliente bem que degustaria o bacalhau com as batatinhas, o prato que decididamente mais o cativa. Mas o facto de custar 50 € é uma grande desvantagem, por isso resolve o assunto chamando o empregando e pedindo:

- Olhe, eu quero o frango assado com arroz, mas se fizesse favor, troque-me o frango por bacalhau e, já agora, o arroz por batatas a murro.

Como é evidente, o empregado não aceitou a negociata, facto que indispôs terrivelmente o prezado cliente que imediatamente abandonou o restaurante queixando-se de que não tinha liberdade de escolha ali.

Ora, é mais ou menos isto que se passa com o cristão nos tempos de hoje: o sujeito quer ser cristão, mas não se contenta com a liberdade de poder escolher ser cristão ou não. Também quer decidir o que significa ser cristão. Então, diz que é cristão, mas ser cristão passa a ser outra coisa qualquer. Tal como o cliente que pede frango, mas depois quer comer bacalhau.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Espírito partidário

(texto original em: http://www.sks.dk/AaS/txt.xml)

«Há um vigoroso espírito partidário por todo o lado. Isto, claro está, não significa que nós temos apenas um partido que é vigoroso, pois isso, afinal de contas, não seria um vigoroso espírito partidário, mas um espírito vigoroso dentro de um partido. Não, há um vigoroso espírito partidário numa variedade de partidos. Temos liberais, ultra-liberais, conservadores, ultra-conservadores, e os do meio. Na política temos todos os valores concebíveis e inconcebíveis. Temos kantianos, schleiermacherianos e hegelianos; estes, por sua vez, estão divididos em dois grandes partidos: um que compreende aqueles que não se esforçaram para se tornar hegelianos, mas que são, apesar de tudo, hegelianos; outro que compreende aqueles que foram para além de Hegel, mas que são, apesar de tudo, hegelianos. O terceiro partido, os hegelianos genuínos, é muito pequeno. Temos cinco baptistas anti-crianças, sete baptistas, nove anabaptistas. Entre os baptistas há três que pensam que os adultos devem ser baptizados com água salgada, dois que pensam que devem ser baptizados com água doce, e um que faz a mediação entre as duas facções e insiste na água salobra. Temos dois straussianos. Temos um alfaiate que formou uma nova seita que consiste nele próprio e em dois aprendizes de alfaiate. Por algum tempo houve muito falatório de que teria ganho um terceiro discípulo de outra profissão, mas mesmo quando estava quase a capturá-lo houve uma disputa que levou o neófito a deixá-lo e a levar um dos aprendizes com ele, e a outra pessoa da outra profissão acabou também por desencantar uma nova fé. Neste preciso momento, em Pistolstrædet, é suposto alguém ter-se remetido à solidão para pensar numa nova religião, e as suas conclusões são expectantemente aguardadas nas ruas vizinhas [...]. O espírito partidário está por todo o lado. Brevemente, não haverá mão-de-obra suficiente para ter uma pessoa por cada partido. [...] Brevemente, bem que podemos acabar por ter de representar [cada um de nós] vários partidos, [...].»


Kierkegaard, Confissão Pública

(cf. Kierkegaard, The Corsair affair, tradução de Howard Hong e Edna Hong, Princeton: Princeton  University Press, 1982, p. 6 ss.)

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Aprender com os psicopatas

A propósito de o que temos a aprender com os psicopatas


De entre os livros e estudos que sustentam que os psicopatas têm muito a ensinar-nos, há um aspecto que ainda não vi ser desenvolvido. Não se tem dado o devido valor ao facto de os psicopatas serem sempre reconhecidos como pessoas pacatas e, frequentemente, como pilares da sociedade. Um psicopata consegue combinar diversas formas de reconhecimento, sendo amíude visto como bom pai, bom vizinho e pessoa dedicada ao bem comum. Já nem vou falar do facto de um psicopata conseguir arranjar tempo para isto tudo, ser bom pai, bom marido, bom professor, praticar voluntariado e ainda, entre dar aulas de ginástica gratuitas e contar uma história de embalar ao filho, matar 13 adolescentes - e, o que é mais, conseguir fazer tudo isto muito bem e ser apreciado por isso; ao passo que o padeiro da zona, como toda a gente sabe, não liga aos filhos, põe sempre sal a mais no pão, vende bolos de ontem como se fossem de hoje, põe os cornos à mulher e ainda é caloteiro. O psicopata consegue escapar sempre a esta maledicência, pois toda a gente lhes reconhece os dotes para fazer muitas coisas e bem todas elas! Mas, como dizia, o aspecto que tem passado despercebido é, precisamente, o facto de conseguir esse reconhecimento das pessoas, sempre tão aptas a dizer mal, mas que nos psicopatas só conseguem encontrar pontos positivos - é certo que terá assassinado umas quantas pessoas pelo meio, mas isto apenas reforço o meu ponto: é que o paspalho do padeiro, com a sua pasmaceira quotidianeidade, só consegue ser recordado pelos cornos que põe na mulher, ao passo que o psicopata, apesar de serial killer, recebe os elogios rasgados da comunidade.


Portanto, aqui está mais um aspecto em que temos, de facto, muito a aprender com os psicopatas. Este aspecto tem sido esquecido pelos estudiosos do tema, que se têm concentrado em mostrar que temos muito a aprender com os psicopatas em termos de constituição psicológica, em termos de eficácia, etc. Ou seja, os estudiosos têm focado aquilo que temos a aprender com os psicopatas para atingirmos um reconhecimento profissional de topo, mas têm negligenciado aquilo que os psicopatas nos têm a ensinar em termos de reconhecimento dos nossos vizinhos. Se alguém quer ser bem visto na comunidade, é bom que aprenda com os psicopatas.

domingo, 14 de janeiro de 2018

A coragem como acção sobre si mesmo

A propósito de coragem


O conceito de "coragem" remete para um determinado adquirido, algo que se pode adquirir. Portanto, para algo cuja posse implica uma aquisição, e uma aquisição que implica uma prestação do sujeito. Neste sentido, o conceito de "coragem" remete para algo que se pode conquistar - ou não. Difere, por isso, de outras noções que, por vezes, se confundem com a de coragem. Por exemplo, a coragem distingue-se do temperamento intrépido, do sujeito que não tem medo. Quem não tem medo - absolutamente nenhum medo - também não pode ser corajoso, embora possa ser intrépido. Para se ser corajoso é preciso, primeiro, ter medo e, depois, ser corajoso. Ou seja, a coragem é uma forma de "edição": o sujeito "edita-se" a si mesmo, agindo sobre si mesmo, resistindo a uma tensão imediata de fuga. Isto facilmente pode ser confundido com outras noções, razão pela qual, por vezes, se diz que os psicopatas são corajosos. Um psicopata não é corajoso, e isto pela simples razão de que é incapaz de sentir medo.

Por tudo isto, a coragem terá sempre a forma de uma acção do sujeito sobre si mesmo. Portanto, o decisivo na coragem não é a consideração daquilo que mete medo, etc., pois nunca se trata de uma acção externa, de um agir sobre o mundo exterior. A coragem pode ter, e tem efectivamente, efeitos sobre o mundo exterior, como podemos observar por todos os actos heróicos, todas as formas de resistência, todas as formas de resiliência. Mas, essencialmente, a coragem é uma acção interior do sujeito consigo mesmo. No limite, em teoria, um sujeito poderia ser corajoso sem ser reconhecido externamente como tal. Isto é assim, porque, como se disse, a coragem é uma acção interior - embora, normalmente, nós reconheçamos a coragem apenas pelos seus efeitos externos, quando os tem.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

A confusão hegeliana

A propósito de Kierkegaard e Hegel

Kierkegaard considera que Hegel é incapaz de lidar metafisicamente com o conceito de "movimento". Não que Hegel diga algo de errado. 

Simplesmente, Hegel não distingue a noção de movimento da representação do movimento enquanto objecto. Hegel confunde conceito e ente - confunde o facto de haver um conceito de movimento com o facto de haver movimento, e esta confusão entre conceito e ente marca continuamente a sua análise do ser.

Por isso, toda a reflexão ontológica de Hegel sustenta-se numa confusão ôntica.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

O ético é em si mesmo tautológico

A propósito de ética

«Não devemos fazer aquilo que consideramos incorrecto.»
Isto é uma tautologia. «Devemos fazer as coisas que consideramos incorrectas.» Isto seria uma contradição.
«Não devemos fazer aquilo que achamos que não devemos fazer.»
«Não devemos fazer aquilo que não devemos fazer.»
Tudo tautologias.
Mas o ponto de que se trata de uma tautologia não é irrelevante.
O ponto é: «Se há algo que consideras ser incorrecto não deves ceder a qualquer tipo de pressão que te incentive a fazê-lo.» A resposta à pergunta «porquê?» será sempre e apenas «porque não devo». Qualquer acrescento será apenas uma tautologia ou uma obliteração do âmbito ético enquanto tal.
Não há qualquer razão que fundamente um comportamento ético, excepto o seu carácter ético.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

O mito da criação do humano

A propósito da natureza indeterminada do humano

Depois da guerra contra os Titãs, os deuses olímpicos ficaram condenados a uma pasmaceira de morte, o que era particularmente grave dado que eram imortais. Assim, Zeus pediu a Prometeu e Epimeteu que criassem mortais para os deuses se distraírem. Nada como assistir a um bom espectáculo para passar o tempo.
Epimeteu começou, então, a criar animais. Com terra e água criou imensas formas e variados atributos, desde garras a asas, etc. Para cada animal criou um modelo e atribuiu a cada modelo determinados atributos, colocando cada espécie num lugar específico, fosse no ar, na terra ou no mar.
Estando Epimeteu muito embrenhado nisto e contente da sua arte em combinar formas, atributos e capacidades, chegou Prometeu para ver como se saíra o irmão. Mas ao chegar apercebeu-se que o irmão já distribuíra todos os modelos, todos os atributos e esgotara os lugares do mundo, o ar com as aves, a água com os peixes, a terra com os mamíferos, etc. Contudo, esquecera-se do humano.
Foi assim que o humano acabou lançado no mundo sem um lugar próprio para habitar, sem um modelo específico para viver, sem atributos e sem capacidades naturais. Deste modo, o humano não é nada, e precisamente porque não é nada, precisa de se tornar alguma coisa, de adquirir uma forma para si mesmo, de criar as suas ferramentas, de desenvolver as suas capacidades, de tomar um lugar do mundo para si. Mas, por natureza, o humano não está modelado, e qualquer que seja a configuração que vier a ter, terá de a adquirir em vida. 
Tudo isso porque Epimeteu se distraiu e acabou por dar tudo aos restantes animais deixando o homem entregue à míngua, à escassez, à falta e à inospitalidade do mundo.
O que nos valeu ainda foi a extrema compreensão que Prometeu desde logo demonstrou para com o humano, começando por roubar o fogo para lhe oferecer - episódio que espoletou a saga da civilização.
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