De facto, o fenómeno da "nova ignorância" não é um fenómeno novo. Já escrevi aqui, no facebook, sobre o assunto. Os fenómenos de pós-verdade, que tanto se têm discutido graças a Trump, não muito antigos.
De resto, parece ser isso que está em causa em algumas descrições antigas da "doxa" (opinião).
Como é evidente, a opinião distingue-se da ignorância. A ignorância consiste em não ter assegurados os requisitos do conhecimento. Na verdade, já é uma tarefa hercúlea perceber quais são os requisitos do conhecimento - o que significa que é difícil perceber o que é o conhecimento, pois sem que os requisitos estejam reunidos, a coisa permanece incompleta. Assim, por maioria de razão, é muito difícil assegurar os requisitos do conhecimento, em primeiro lugar porque não sabemos bem quais são, em segundo lugar porque é difícil cumpri-los.
Portanto, a condição imediata e mais comum parece ser a da ignorância, da qual só com dificuldade se sai. Contudo, isto não prejudica o carácter da verdade, nem o estatuto do conhecimento. De facto, eu posso ser ignorante sem errar, pois basta que suspenda o julgamento sobre as coisas que não sei. De igual modo, posso instaurar processos de averiguação e de investigação acerca daquilo que desconheço. Assim, a ignorância, por si mesma, não diminui a dignidade da verdade, nem o estatuto do conhecimento, pois não tolhe a petição de cumprimento dos requisitos deste, nem anula a tensão para isso. Por estas duas excelentes razões, pode encontrar-se na ignorância uma espécie de esclarecimento - a famosa douta ignorância que sabe que não sabe e, por isso, está permanentemente em tensão para adquirir conhecimento.
A opinião, pelo seu lado, tem efeitos muito mais devastadores. Por várias razões, mas a primeira das quais é que aquele que tem uma opinião também não assegurou os requisitos do conhecimento, mas ao contrário do ignorante, contenta-se com a opinião. Quer dizer, quando se tem uma opinião mantém-se essa opinião, justamente, porque se lhe atribui validade. Se alguém diz ter uma opinião é porque a considera válida. Caso contrário, abandoná-la-ia. O problema é que a validade da opinião - a razão pela qual é opinião, e não conhecimento - é que aquilo que a está a validar é exclusivamente o facto de ser a opinião do sujeito. Nada mais, nada menos. E a razão pela qual este modo de validação é insuficiente é que ele não exclui a validade de nenhuma opinião. Ou seja, a validade da opinião que se tem não exclui a validade de todas as outras opiniões possíveis.
Evidentemente, isto corresponde à falência completa da dignidade da verdade e da intenção de conhecer. É isso mesmo que se diz quando se afirma que "é a minha opinião e pronto". Com isto sugere-se, justamente, que cada sujeito pode ter a opinião que for e, por isso mesmo, qualquer que ela seja é válida. Ora, os gregos presumiam, precisamente, o inverso: que a razão pela qual a opinião não está dotada de validade é que se pode ter qualquer uma.
A pós-verdade e aquilo a que Pacheco Perreira chama nova ignorância corresponde a esta forma de opinião: à opinião daqueles que acham que, justamente porque se pode ter a opinião que calha, qualquer opinião é válida - e isto inverte completamente o que está em causa na noção de douta ignorância, pois esta coloca o requisito de anular a arbitrariedade da opinião colocando sobre esta o ónus de excluir a validade de todas as alternativas.
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