sábado, 7 de janeiro de 2017

O critério da opinião



A propósito de critérios


Há um chavão do senso-comum de que não há alegria sem tristeza, bem sem mal, verdade sem mentira, etc.

O problema filosófico aqui em causa é, evidentemente, o do critério. Com isto, o senso-comum, afirma que o critério para se saber de um dos pólos é a existência do outro pólo. Só se sabe o que é a doença por referência ao estado saudável. Assim, toda a escala valorativa não seria mais do que um jogo de contraste.

Claro que este assunto é complexo. O senso-comum limita-se a repetir algo que lhe soa bem e parece imediatamente evidente. Não está ciente, nem daquilo que está por detrás disto - o que fundamenta esta posição filosófica - nem está ciente das suas consequências - daquilo que significa levar esta posição às suas últimas consequências.

Levar uma posição às suas últimas consequências parece o melhor método para julgar a legitimidade de uma posição excluir as demais (quando, evidentemente, não se tem acesso directo à coisa ela mesma).

Porque levar uma tese ou teoria às suas últimas consequências significa: vamos ver o que significa realmente esta tese, vamos ver o que significaria se ela fosse verdadeira.

Este critério é muito importante. A razão pela qual nós temos todos tantas opiniões e tão diferentes entre si é que não temos de pagar o preço de as termos. Se houvesse um deus que, antes de um sujeito abrir a boca, lhe dissesse: "cuidado com a boca, cuidado com aquilo que afirmares: terás de viver o resto da tua vida num mundo em que isso é uma lei da natureza" - se houvesse um deus destes, que nos forçasse a suportar o peso da honestidade, penso que teríamos todos muito menos opiniões. Na verdade, penso que teríamos mesmo muito poucas e que aquelas que tivéssemos ainda coragem de ter seriam muito pouco diferentes umas das outras.


O senso-comum diz que não há positivo sem negativo.

A tradição filosófica, no entanto, diz o inverso: a verdade é o critério da falsidade; o bem é o critério do mal. Só há mal, porque há bem. Razão pela qual Santo Agostinho dizia que a verdade é a medida dela mesma e do seu contrário.

Aparentemente, o senso comum diz o contrário da tradição filosófica, mas a verdade é que o senso-comum limita-se a repetir algo que pertence a essa mesma tradição. Simplesmente, o senso-comum, ao repetir, corrompe.

O que a tradição percebeu, e muito bem, é que, do ponto de vista da consciência, é o negativo a condição de possibilidade da consciência do positivo. Por exemplo, a consciência da felicidade só se constitui pela consciência de um estado de infelicidade, porque a consciência da felicidade tem de começar pela tensão para a adquirir, caso contrário é apenas um pensamento vazio. Ou seja, por paradoxal que pareça, a consciência da felicidade começa por ser consciência da sua ausência - não há outra hipótese. E isto repete-se na consciência moral: a consciência moral tem de começar pela aversão relativamente à transgressão.

Ora, evidentemente, nada disto significa que é a infelicidade o critério da felicidade, ou que é o mal o critério do bem. Pelo contrário: o bem é que é o critério do mal. Paradoxalmente, do ponto de vista da consciência - isto é, do sujeito - a consciência moral, a constituir-se, tem de começar como consciência da ausência do Bem!!! Não há outra hipótese - como, aliás, Sócrates demonstrou muito bem e toda a tradição tem repetido desde então.

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