quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Quanto vale um dia de vida?

A propósito do parecer do Conselho Nacional de Ética relativo à distribuição de medicamentos e cuidados de saúde


O parecer pode ser lido aqui.

O documento sugere "a avaliação dos cuidados disponíveis para tratar quem se encontra em fase de final de vida e em fase terminal".

Apesar de o parecer não ser tão claro como se poderia desejar que fosse, em matéria de ética, onde as interpretações são tão díspares, a verdade é que deixa a ideia de que os cuidados de saúde, a utilizar em caso de doentes terminais ou idosos ("em fase de final de vida e em fase terminal" - seria necessário perceber se o "e" na frase implica aqueles que estão, simultaneamente, em fase de final de vida e em fase terminal, ou se, pelo contrário, este "e" foi usado no sentido de um "ou nesta situação, ou naquela, ou em ambas") deverão ser avaliados tendo em conta, por um lado, o custo, por outro, os seus efeitos previsíveis.

Dito de uma forma rápida: o parecer sugere que os cuidados de saúde apenas sejam ministrados quando o seu efeito compensa o seu custo.

Aparentemente, esta ideia parece-nos razoável, sobretudo porque parecemos estar completamente seduzidos pela mentalidade economicista dos nossos dias. Mas, na verdade, esta é uma posição que revela muito pouca ética.

Que a vida humana seja pesada em termos de valor económico, é muito discutível, mas sobretudo não é uma posição claramente ética - e teríamos aqui de discutir o que faz de uma posição que ela seja ética, mas também não o faremos!

O parecer rodeia-se de termos muito relativos e pouco precisos, ou seja, que parecem muito razoáveis, mas não se sabe a que correspondem de facto. Por exemplo: "maior bem possível". Já é muito difícil avaliar o que é o "maior bem", mas este parece quer que saibamos o que é o "maior bem possível".

E quem é que decide o que é o maior bem, e já agora, quem é que decide se ele é possível?

"uma vez que não é possível dar o melhor a todos, tornando, assim, imperativo que a configuração das prioridades deva ser analisada de forma justa, permitindo distribuir os recursos possíveis pelo maior nú-mero de pessoas"

Mas o que é isso de "forma justa"? Distribuir os recursos pelo maior número de pessoas? Mas não é isso que tem sido feito? Se não é, deveria. Ou será que o parecer pretende, na verdade, dizer que quando um doente está a ficar muito caro mais vale é deixar-se morrer?

Não quero esmiuçar aqui o parecer. Resta-me dizer que isto é um indício de que algo muito grave está a suceder na nossa sociedade: corre-se um grande perigo quando se introduz no sistema de valores de uma sociedade um critério como "custo/benefício" quando estão em causa vidas humanas - objectiva e concretamente, vidas humanas frágeis, doentes, a precisar da sociedade e esta responde-lhes com um cego "custo benefício"... Quem é que vai dizer qual é o benefício que justifica o custo?

Um medicamento que poderá dar mais dois meses de vida poderá ser fornecido se custar até quanto? 10€? 100€? 1000€?

EXAMINEMO-NOS A NÓS MESMOS... Quanto estaria disposto a pagar por mais um ano de vida?

Quem é que vai dizer ao doente: "olhe, você poderia viver mais dois anos se estivéssemos dispostos a gastar 40.000€... mas, sejamos honestos, você não vale tanto."

Mas se o cuidado em causa só custar 10.000€? Já é um custo aceitável? QUANTO VALE UM DIA DE VIDA?

Mas o princípio que assim se introduz é mais grave do que isto. Afinal está-se a dizer, pela voz de um Conselho de Ética, que é eticamente legítimo tomar decisões que têm implicações directas sobre a vida e a morte com base em duas coisas: uma conjectura (porque poderia acontecer que os médicos pensassem que o medicamento iria dar dois meses de vida ao doente e, afinal, este viver dez anos); uma equivalência entre vida humana (em tempo e/ou qualidade) e custo.

Este parecer introduz este princípio perigosíssimo que é aquele que diz que a vida humana pode ser traduzida num valor monetário.

"Olhe, este medicamento poderá dar-lhe mais seis meses de vida, por isso tem que encontrar uma farmácia que lhe faça um preço a baixo dos 7500€..."

A questão ética aqui envolvida é importante e deve ser analisada com cuidado. A opinião pública é facilmente influenciável por formas mais ou menos redutoras de colocar as questões. Se perguntarmos a um português médio o que ele faria se tivesse dinheiro apenas para salvar duas pessoas, uma delas com 70 anos e uma esperança de vida, após tratamento, de apenas mais 3 anos, a outra com 15 anos e uma esperança de vida, após tratamento, de mais 30 anos, provavelmente responderia que usaria o dinheiro para salvar o jovem. Mas a facilidade com que esta sensibilidade desponta nas pessoas não torna a resposta mais ética. O facto de eu preferir salvar o meu filho do que o filho do meu vizinho, não torna a minha decisão mais ética. Há um perigo gravíssimo em não apresentar convenientemente os problemas à opinião pública...










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