A
propósito das relações entre Jesus e a sua família...
A
tradição cristã delega na imagética da Sagrada Família uma importância
fundamental como sinal estruturante da sociedade. Neste contexto parece que
Jesus estabelecera com e na sua família laços de união fortes e simbólicos.
Contudo,
os textos lançam dúvidas sobre este relacionamento. Não é claro que a família
de Jesus tenha feito parte do grupo dos seus seguidores, pelo menos desde o
início da sua vida pública.
Os
pais de Jesus
Os
pais de Jesus são conhecidos a partir das fontes. Jesus é apresentado como o
filho de José (Jo 6:42, Lc 4:22: ὁ υἱὸς Ἰωσήφ), ou pelo menos
assim era costume indicá-lo (Lc 3:23: ὡς ἐνομίζετο).
Portanto, podemos com propriedade chamar-lhe Jesus de Nazaré, filho de
José (Jo 1:45: Ἰησοῦν υἱὸν τοῦ Ἰωσὴφ τὸν ἀπὸ Ναζαρέτ), o
carpinteiro (Mt 13:55: ὁ τοῦ τέκτονος υἱός).
O pai,
José
José
desaparece dos escritos a partir da infância de Jesus. Jesus não parece ter
sido acompanhado pelo pai. Talvez tenha falecido, talvez não aprovasse as vida
do filho e os evangelistas simplesmente o tivessem omitido. O certo é
que nada sabemos de José depois dos doze anos de Jesus (Lc 2:41-43). Depois do
episódio do desaparecimento de Jesus este foi descoberto no Templo. Os seus
pais andaram três dias preocupados à sua procura. Quando a sua mãe lhe pergunta
a razão para o seu desaparecimento, Jesus limita-se a dizer que obviamente
estivera em casa de seu pai (Lc 2:48-49). O termo grego para pai, πατήρ,
surge em Lucas 2:48, por referência a José, e no versículo seguinte, por
referência a Deus.
Depois
deste episódio José desaparece da história. As referências que lhe serão
doravante feitas não voltam a incluí-lo em acontecimentos. Da vida pública de
Jesus, José está totalmente ausente.
A mãe,
Maria
Maria,
pelo contrário, continua a fazer parte da história. Mas o seu envolvimento na
mesma e forma como Jesus se relaciona com ela não é aquele que esperaríamos. As
relações de Jesus com Maria não são pacíficas. Pelo contrário, os textos
deixam-nos registos de mal-estar entre ambos. Aliás, Jesus parece ter sido
confrontado com dificuldades relativas ao modo como os seus familiares acolhiam
o seu comportamento público.
Jesus
e a sua família durante a vida pública
Segundo
São João, a vida pública de Jesus começou nas bodas de um casamento
transformando água em vinho.
João 2:
1 Καὶ τῇ ἡμέρᾳ τῇ τρίτῃ γάμος ἐγένετο ἐν Κανὰ τῆς Γαλιλαίας, καὶ ἦν ἡ μήτηρ
τοῦ Ἰησοῦ ἐκεῖ· 2 ἐκλήθη δὲ καὶ ὁ Ἰησοῦς καὶ οἱ μαθηταὶ αὐτοῦ εἰς τὸν γάμον. 3 καὶ ὑστερήσαντος οἴνου λέγει ἡ μήτηρ τοῦ Ἰησοῦ πρὸς αὐτόν, Οἶνον οὐκ ἔχουσιν. 4 [καὶ] λέγει αὐτῇ ὁ Ἰησοῦς, Τί ἐμοὶ καὶ σοί, γύναι;
οὔπω ἥκει ἡ ὥρα μου. 5 λέγει ἡ μήτηρ αὐτοῦ τοῖς διακόνοις, Ὅτι ἂν λέγῃ ὑμῖν ποιήσατε.
1 E ao terceiro dia
houve um casamento em Canã da Galileia, e a mãe de Jesus estava lá. 2 Também
Jesus e os seus discípulos foram convidados para o casamento. 3 E começando a
faltar vinho a mãe de Jesus disse-lhe: “Não têm vinho!” 4 [E] disse-lhe Jesus:
“O que é comigo e contigo, oh mulher? Ainda não chegou a minha hora.” 5 Disse a
sua mãe aos servos: “Fazei do modo como ele vos disser.”
A
forma como Jesus se dirige a sua mãe não parece muito simpática. Transparece a
ideia de que Maria solicita a intervenção de Jesus. Não podemos saber ao certo
de que género de intervenção estaria à espera. Pretendia Maria que Jesus
realizasse um milagre? É isso que sugerem as suas palavras dirigidas aos
servos: Ὅτι ἂν λέγῃ ὑμῖν ποιήσατε, isto é, façam como ele vos
disser. Mas Jesus parece não ter apreciado a solicitação de Maria. Talvez
lhe parecesse que as suas intervenções estariam destinadas a melhores fins do
que salvar uma boda. Seja como for, e apesar da resposta aparentemente brusca
de Jesus, Maria assume que o seu pedido será atendido.
Por
outro lado devem ser feitas algumas notas. Em primeiro lugar pudemos supor que
o uso da palavra mulher não expressasse agressividade, mas
principalmente respeito. Trata-se de uma suposição, por mais que procuremos
encontrar usos semelhantes nas escrituras (ver Jo 4:21, 19:26 e 20:15; Mt 15:28;
1 Cor 7:16). Contudo, também não temos razão para pensar que em grego esta
expressão soasse tão brusca como soa em português. E, de facto, não sabemos o
tom com que foi proferida.
Em
segundo lugar, na verdade o grego não se encontra pontuado na sua versão
original. Temos, portanto, qualquer coisa como: τι εμοι
και σοι γυναι ουπω ηκει η ωρα μου. E
podemos tentar mudar a sinalização: τι εμοι και σοι; γυναι ουπω ηκει η ωρα
μου; Assim, poderíamos obter qualquer coisa como: o que se passa entre
mim e ti? Oh mulher, ainda não chegou a minha hora? E, nestes termos
teríamos o equivalente ao seguinte: mulher, por que te preocupas, não
sabes que posso remediar isso? Ao que Maria corresponderia dizendo aos
servos: façam o que ele disser. Mas também isto é uma forma de
tentar dar a volta ao texto. Fossem os indícios noutro sentido, poderíamos
admitir que a pontuação geralmente colocada deveria ser alterada. Mas a verdade
é que os indícios de incompreensão, da parte da sua família em relação a Jesus,
abundam.
O episódio, já referido, relatado em Lc 2:48-50 mostra-nos que havia uma
incompreensão profunda desde cedo entre os seus pais, por um lado, e o
comportamento e sentido de missão de Jesus.
Lucas 2:
48 καὶ ἰδόντες αὐτὸν ἐξεπλάγησαν, καὶ εἶπεν πρὸς αὐτὸν ἡ μήτηρ
αὐτοῦ, Τέκνον, τί ἐποίησας ἡμῖν οὕτως; ἰδοὺ
ὁ πατήρ σου κἀγὼ ὀδυνώμενοι ἐζητοῦμέν σε. 49 καὶ εἶπεν πρὸς αὐτούς, Τί ὅτι ἐζητεῖτέ με; οὐκ ᾔδειτε ὅτι ἐν τοῖς τοῦ πατρός μου δεῖ εἶναί με; 50
καὶ αὐτοὶ οὐ συνῆκαν τὸ ῥῆμα ὃ ἐλάλησεν αὐτοῖς.
48 E vendo-o
espantaram-se, e disse-lhe a sua mãe: “Criança, por que nos fizeste isto? Vê
como o teu pai e eu te procurámos sofrendo.” 49 E ele disse-lhes: “Por que me
procurastes? Não sabíeis que eu deveria estar em casa do meu pai?" 50 E
eles não compreenderam a expressão que ele lhes disse.
A incompreensão textual reside nos diferentes referentes para a palavra pai.
Aliás, de um modo completamente literal, o que o grego nos diz é que os pais de
Jesus não juntaram o dito (οὐ συνῆκαν τὸ ῥῆμα) que este
lhes retorquíra. Não souberam juntar as peças para compreender o que
estava a ser dito. É esta a confusão. Nas palavras de Jesus o termo pai nãi
se referira a José, mas àquele de quem o Templo era a casa. Nas palavras de
Maria o pai que andara à procura do filho fora José.
Não é
necessário admitir que Jesus pressupunha um relacionamento especial com o deus
do Templo. Na verdade, é perfeitamente compreensível a ideia de que o
verdadeiro pai de todos é Deus, e que, estando em Sua casa, no Templo, se está
justificado, por oposição à dor de José, cuja vontade é claramente menos
relevante do que a vontade do Senhor do Templo. Jesus estava com Deus, e isso
seria superior a qualquer exigência mundana. É desnecessário depreender daqui
que Jesus se punha numa situação privilegiada perante Deus.
Este
trecho é relatado por Lucas, mas não o é por mais nenhum evangelista. Seja como
for, José desaparece da história e os indícios de tensão entre Jesus e a sua
família adensam-se.
Marcos 3
21 καὶ ἀκούσαντες
οἱ παρ’ αὐτοῦ ἐξῆλθον κρατῆσαι αὐτόν· ἔλεγον γὰρ ὅτι ἐξέστη.
21 E tendo os
seus ouvido [estas coisas] foram prendê-lo: pois diziam que estava fora de si.
Independentemente
de tentarmos perceber o que foi que os seus ouviram (teriam
ouvido falar da sua doutrina, dos milagres, das curas, das situações em
que entrara em conflito com os costumes e com leis, ou simplesmente do facto
de, segundo Marcos, reunir multidões à sua volta?), podemos supor que algum
mau-estar estava instalado entre os seus familiares. Não ficamos já a saber se
estes familiares eram próximos ou afastados, mas sabemos que lhes parecia que
ele estava louco.
Noutro
episódio, Marcos diz que a mãe e os irmãos de Jesus procuraram falar com ele,
mas que este aproveitou para não os reconhecer como seus familiares.
Marcos 2:
31 Καὶ ἔρχεται ἡ μήτηρ αὐτοῦ καὶ οἱ ἀδελφοὶ αὐτοῦ καὶ ἔξω στήκοντες ἀπέστειλαν πρὸς αὐτὸν καλοῦντες αὐτόν. 32 καὶ ἐκάθητο περὶ αὐτὸν ὄχλος, καὶ λέγουσιν αὐτῷ, Ἰδοὺ
ἡ μήτηρ σου καὶ οἱ ἀδελφοί σου [καὶ αἱ ἀδελφαί σου] ἔξω ζητοῦσιν σε.
33 καὶ ἀποκριθεὶς αὐτοῖς λέγει, Τίς ἐστιν ἡ μήτηρ
μου καὶ οἱ ἀδελφοί [μου]; 34 καὶ
περιβλεψάμενος τοὺς περὶ αὐτὸν κύκλῳ καθημένους λέγει, Ἴδε ἡ μήτηρ
μου καὶ οἱ ἀδελφοί μου. 35 ὃς [γὰρ] ἂν
ποιήσῃ τὸ θέλημα τοῦ θεοῦ, οὗτος ἀδελφός μου καὶ ἀδελφὴ καὶ μήτηρ ἐστίν.
31 E chegaram a
sua mãe e os seus irmãos e ficando lá fora mandaram chamar por ele. 32 E a
multidão estava sentada à sua volta, e dizia-lhe: “Eis que a tua mãe, e os teus
irmãos [e as tuas irmãs] procuram-te lá fora”. 33 E repondendo-lhes disse:
“Quem é a minha mãe e os meus irmãos?” 34 E, olhando em volta para os que
estavam sentados ao seu redor, disse: “Eis a minha mãe e os meus irmãos. 35
Pois quem faça a vontade de deus, esse é o meu irmão, e irmã e mãe.”
Este
episódio repete-se nos outros Evangelhos sinópticos:
Mateus 12:
46 Ἔτι αὐτοῦ λαλοῦντος τοῖς ὄχλοις ἰδοὺ ἡ μήτηρ καὶ οὶ ἀδελφοὶ αὐτοῦ εἱστήκεισαν ἔξω ζητοῦντες αὐτῷ λαλῆσαι. 47 [εἶπεν δέ τις αὐτῷ, Ἰδοὺ ἡ μήτηρ
σου καὶ οἱ ἀδελφοί σου ἔξω ἑστήκασιν ζητοῦντές σοι λαλῆσαι.] 48 ὁ δὲ ἀποκριθεὶς εἶπεν τῷ λέγοντι αὐτῷ, Τίς ἐστιν ἡ μήτηρ
μου καὶ τίνες εἰσιν οἱ αδελφοί μου; 49 καὶ ἐκτείνας τὴν χεῖρα αὐτοῦ ἐπὶ τοὺς μαθητὰς αὐτοῦ εἶπεν, Ἰδοὺ ἡ μήτηρ
μου καὶ οἱ ἀδελφοί μου. 50 ὅστις γὰρ ἂν ποιήσῃ τὸ θέλημα τοῦ πατρός μου τοῦ ἐν οὐρανοῖς αὐτός μου ἀδελφὸς καὶ ἀδελφὴ καὶ μήτηρ ἐστίν.
46 Enquanto
falava às multidões, eis que a mãe e os irmãos dele estavam lá fora procurando
falar-lhe. 47 [Mas alguém lhe disse: “Olha que a tua mãe e os teus irmãos estão
lá fora querendo falar-te.”] 48 Mas respondendo disse a quem lhe falou: “Quem é
a minha mãe e quem são os meus irmãos?” 49 E, tendo estendido a sua mão para os
seus discípulos, disse: “Eis a minha mãe e os meus irmãos.” 50 Pois quem quer
que faça a vontade do meu pai do céu, esse é meu irmão, e irmã e mãe.
Lucas 8:
19 Παρεγένετο δὲ πρὸς αὐτὸν ἡ μήτηρ καὶ οἱ ἀδελφοὶ αὐτοῦ καὶ οὐκ ἠδύναντο συντυχεῖν αὐτῷ διὰ τὸν ὄχλον. 20 ἀπηγγέλη δὲ αὐτῷ Ἡ μήτηρ σου καὶ οἱ ἀδελφοί
σου ἑστήκασιν ἔξω ἰδεῖν θέλοντες σε. 21 ὁ δὲ ἀποκριθεὶς εἶπεν πρὸς αὐτούς:
Μήτηρ μου καὶ ἀδελφοί μου οὗτοι εἰσιν οἱ τὸν λόγον τοῦ θεοῦ ἀκούοντες καὶ ποιοῦντες.
19 Mas vieram
até ele a mãe e os irmãos dele, e não puderam juntar-se-lhe através da
multidão. 20 Foi-lhe transmitido: “A tua mãe e os teus irmãos esperam lá fora
querendo ver-te.” 21 Mas respondendo disse-lhes: “Minha mãe e meus irmãos são
aqueles que escutam e fazem a palavra de deus.”
Jesus
estava com aqueles que o seguiam. Neste episódio em particular, os relatos
afirmam que uma multidão se reunira à sua volta. Provavelmente, este fora um
dos momentos de maior publicidade fora das muralhas de Jerusalém. Nessa altura,
chegam para lhe falar a sua mãe e os seus irmãos. Não sabemos ao certo se são
estes os familiares a que Marcos faz referência em 3:21. De qualquer forma,
Jesus não parece ter sentido especial vontade de se reunir com Maria e com os
irmãos. Na verdade, Jesus aproveita para afirmar que todos os que o
acompanhavam e rodeavam, cumprindo a vontade de Deus, esses mesmos é que eram
seus irmãos, irmãs e mãe.
Nas palavras de Jesus a sua própria mãe não tinha qualquer privilégio
relativamente àqueles que o seguiam enquanto discípulos.
Lucas 11:
27 Ἐγένετο δὲ ἐν
τῷ λέγειν αὐτὸν ταῦτα ἐπάρασά τις φωνὴν γυνὴ ἐκ τοῦ ὄχλου εἶπεν αὐτῷ, Μακαρία ἡ
κοιλία ἡ βαστάσασά σε καὶ μαστοὶ οὓς ἐθήλασας. 28 αὐτὸς δὲ εἶπεν, Μενοῦν
μακάριοι οἱ ἀκούοντες τὸν λόγον τοῦ θεοῦ καὶ φυλάσσοντες.
27 Mas tendo ele
dito isto uma mulher, levantando a voz de entre a multidão, disse-lhe: “Feliz o
útero que te carregou e os peitos em que mamaste.” 28 Mas ele disse: “Antes
felizes os que escutam a palavra de deus e a guardam.”
Jesus acabara de proferir palavras sábias sobre os espíritos maus e uma mulher,
de entre aqueles que o escutavam, elogiou a sua mãe por o ter trazido no útero.
Imediatamente corrige as palavras da mulher. Segundo Jesus, quem é
bem-aventurado não é tanto a sua mãe, mas sim aqueles que escutam e cumprem a
palavra de Deus.
Todos aqueles que seguem Jesus são irmãos e entre eles não há mestres. A
distinção entre eles não é feita. Há um só mestre, mas os seus discípulos são
todos irmãos, não devem querer ser tratados como mestres. E Jesus diz isto
claramente: "todos vós sois irmãos" (Mt 23:8: πάντες δὲ ὑμεῖς ἀδελφοί
ἐστε). O sentido de irmão é diferente do sentido que a palavra
tem para referir os seus irmãos que vêm com Maria e pedem para lhe falar. Aí,
Jesus estava com os discípulos e os seus irmãos vinham para lhe falar - mas
Jesus torna claro que, para ele, não são esses que vieram para lhe falar
(provavelmente para o "prenderem" por o julgarem louco), que são os
seus verdadeiros irmãos. Os seus verdadeiros irmãos já lá estavam com ele e
acompanharam-no depois. Embora muitas vezes os discípulos tenham demonstrado
incredulidade (e isto será motivo de uma outra exposição), apesar de tudo é a
esses que ele aponta como seus irmãos - tendo o cuidado de explicar porquê: os
seus irmãos são aqueles que escutam e cumprem a palavra de Deus. Não é o sangue
que estabelece o verdadeiro elo de irmandade, mas a confiança.
Está feito o reparo. É inegável o afastamento de Jesus relativamente à
concepção tradicional da família. Não que Jesus pense que a família não devesse
ser monogâmica, nem que Jesus não considerasse importante o respeito
entre os membros da família. Mas a importância das relações familiares estava
para ele aquém da da relação entre aqueles que o seguem e entre estes
e ele próprio. Ora, este reparo significa uma exigência de Jesus relativamente
àqueles que o pretendessem seguir. E, como noutras exigências que fez, também
esta é difícil e humanamente árdua.
Mateus 10
34 Μὴ νομίσητε ὅτι ἦλθον βαλεῖν εἰρήνην ἐπὶ τὴν γῆν· οὐκ ἦλθον βαλεῖν εἰρήνην ἀλλὰ μάχαιραν. 35 ἦλθον γὰρ διχάσαι ἄνθρωπον κατὰ τοῦ πατρὸς αὐτοῦ καὶ θυγατέρα κατὰ τῆς μητρὸς αὐτῆς καὶ νύμφην κατὰ τῆς πενθερᾶς αὐτῆς, 36 καὶ ἐχθροὶ τοῦ ἀνθρώπου οἱ οἰκιακοὶ αὐτοῦ. 37 Ὁ φιλῶν πατέρα ἢ μητέρα ὑπὲρ ἑμὲ οὐκ ἔστιν μου ἄξιος καὶ ὁ φιλῶν υἱὸν ἢ θυγατέρα ὑπὲρ ἐμὲ οὐκ ἔστιν μου ἄξιος·
34 “Não penseis
que vim pela paz na terra. Não vim trazer a paz, mas a espada. 35 Pois vim
separar o humano do seu pai, e a filha da sua mãe e a noiva da sua sogra, 36 e
os inimigos do humano [serão] os da sua casa. 37 Aquele que amar o pai ou a mãe
sobre mim não é digno de mim, e aquele que amar o filho ou a filha sobre mim
não é digno de mim.”
Disse Jesus que os inimigos do humano (ἀνθρώπου) seriam
os da sua casa. Esta afirmação está em consonância com Mc 3:21. Estas palavras
têm um potencial profundo e podem ser facilmente mal interpretadas, quer por
quem parte de dogmas religiosos, quer por quem permaneça preso a preconceitos
ateístas. Não é aqui o lugar de explorar completamente o sentido que estas
palavras possam ter, mas notamos que a ideia de que a família pode constituir
um impedimento à autenticidade, seja ela religiosa ou filosófica, é um motivo
que se pode encontrar noutras culturas. Lembramos o mito de Narada,
o mensageiro. Neste mito, Narada pede a Visnu que lhe revele a verdade, mas
entretanto casa-se, adquire terras e tem filhos. Entretanto, vem a compreender
que a situação familiar em que se encontrava radicava numa sensação ilusória de
segurança.
Normalmente,
o humano tende a avaliar a sua situação a partir da sua zona de conforto.
Quanto maior for a sua zona familiar de conforto e quanto mais conforto esta
lhe proporcionar, mais feliz se chama a si mesmo. Jesus, por seu lado, afirma
que a casa de um homem pode ser, precisamente, o lugar onde se encontram os
seus inimigos. Mas, para o humano, conseguir separar-se da sua zona de
conforto, é uma tarefa difícil. Jesus sabe muito bem disso e diz com toda a
clareza que não vem trazer facilidades. Pelo contrário, o que ele traz é a
espada, a separação, a guerra.
Aquilo
que Jesus traz é a discórdia entre os membros da família. Podemos
imaginar que falava por experiência própria. Talvez a sua família tivesse
representado um obstáculo ao cumprimento daquilo que entendia ser a sua missão.
Um homem com espírito de missão não pode dar-se ao luxo de ficar pela sua zona
de conforto. Se tem ideias próprias que representam um risco e as quer pôr em
prática, é provável que tenha de enfrentar a oposição da sua família. É
provável que Jesus tenha compreendido isto quando os seus o consideraram fora
de si. Por isso ele exige um compromisso da parte dos seus discípulos, e
este compromisso passa por se separarem daquilo que pode significar um entrave
à missão que os espera.
Estas palavras parecem muito forte. E são-no. Mas Mateus é uma versão leve de
Lucas:
Lucas 14:
26 Εἴ τις ἔρχεται πρός με καὶ οὐ μισεῖ τὸν πατέρα ἑαυτοῦ καὶ τὴν μητέρα καὶ τὴν γυναῖκα καὶ τὰ τέκνα καὶ τοὺς ἀδελφοὺς καὶ τὰς ἀδελφάς ἔτι τὲ καὶ τὴν ψυχὴν ἑαυτοῦ, οὐ δύναταί εἶναι μου μαθητής.
26 Se alguém
vier até mim e não odiar o próprio pai e a mãe, e a mulher e os filhos, e os
irmãos e as irmãs, e ainda a própria alma, não poderá ser meu discípulo.
Algumas
traduções pretendem aligeirar as palavras de Lucas aproximando-as de Mateus,
mas o que está em Lucas é diferente. O texto utiliza o verbo grego μισέω,
o qual se encontra na composição de palavras como misógino (que tem
ódio às mulheres), ou misógamo (que tem ódio ao casamento).
Portanto, o texto diz claramente que, para se poder ser discípulo de Jesus, se
tem de odiar o próprio pai, mulher, filhos e irmãs. É possível que Jesus
estivesse a falar influenciado por alguma altercação recente com a sua própria
família. Seja como for, a ideia subjacente é a de que aquele que tem família
não está em condições de ser seguidor de Jesus.
Paulo,
no capítulo 7 da Primeira Carta aos Coríntios faz uma exposição que poderia ser
uma explicação destas palavras de Jesus. Segundo Paulo, aquele que não é casado
está livre para aquilo que pertence ao Senhor, enquanto que aquele
que está casado se ocupa das coisas do mundo. Enfim, se não se for capaz de
resistir ao apelo da carne, então que o homem e a mulher se casem, mas o melhor
é permanecerem solteiros, em celibato.
Uma das vantagens dos textos canónicos em relação aos textos apócrifos é que os
primeiros são inteligíveis. Mesmo quando sugerem acontecimentos ou nos pedem
comportamentos que nos parecem impossíveis ou inexplicáveis, na maior parte dos
casos podemos dizer e descrever claramente o que nos está a ser dito ou pedido
pelos textos. Claro que há partes mais abertas à discussão, mas regra geral os
textos canónicos são inteligíveis. Ou, pelo menos, dão-nos uma ideia por onde começar, embora possamos não perceber bem como chegar a cumprir o que nos é pedido, ou não entender bem que significado pode ter o acto concreto que é sugerido. Neste caso, podemos facilmente perceber o
que é que Jesus está a pedir. A exigência é clara: aquele que queira ser
discípulo de Jesus deve separar-se da sua família. Não há aqui nenhum apelo ao
desrespeito entre filhos e pais. A questão é outra: a fidelidade total a um
compromisso com Jesus, com a palavra de Deus. E neste contexto a família
representa um desvio.
Entre os seguidores de Jesus todos são irmãos entre si. Este é o vínculo que
deve vigorar. Os irmãos de carne, irmãos desde que nasceram, irmãos em sua
casa, devem quebrar esse vínculo e encararem-se como irmãos no
discipulado. Não interessa se duas pessoas são pai e filho: como discípulos são
irmãos entre si e irmãos igualmente com todos os outros discípulos. Irmãos em
igual irmandade. Não há predilectos, nem preferências. Claro que em Jo 19:26 se
fala de um discípulo que Jesus amava (ἠγάπα), mas essa seria outra discussão.
Mas não basta um despego aos próprios familiares. Aliás, este despego é
insuficiente se o pretendente a ser discípulo não odeia a própria alma (τὴν
ψυχὴν ἑαυτοῦ). Seguir Jesus significa deixar para trás os elos anteriores que
uniam a pessoa à sua família e abdicar dos seus interesses pessoais. Ora,
previsivelmente, esta entrega total à missão de seguir Jesus atrairá a
antipatia e os juízos recriminadores da própria família. Aquele que deixa o seu
lar e os seus para abraçar um destino revolucionário, diferente das
expectativas normalmente instituídas, com certeza que nem sempre é bem
compreendido, e na maioria das vezes enfrenta a resistência daqueles que lhe
são mais próximos. Compreende-se que Jesus afirme que vem trazer a espada, a
separação, a guerra entre familiares.
Ao contrário do que pudesse parecer, a divergência entre Jesus e os seus não
foi um episódio sem lastro que rapidamente tenha resultado num entendimento
mútuo. Pelo contrário, parece ter sido algo que perdurou. Pelo menos, o
mal-estar instalado ter-se-á verificado em outras ocasiões. Podemos supor que
nem todas elas foram eliminadas. Aliás, a permanência de alguns exemplos claros
de desconfiança entre as partes é suficiente para supormos que possa ter sido
mais abrangente do que aquilo que ficou registado. À partida existiria interesse
entre os que relatavam os acontecimentos da vida de Jesus em omitirem
desentendimentos deste com a sua família, bem como para omitirem a falte de
crédito que os seus lhe confiavam.
João 7:
2 ἦν δὲ ἐγγὺς ἡ ἑορτὴ τῶν Ἰουδαίων ἡ σκηνοπηγία. 3 εἶπον οὖν πρὸς αὐτὸν οἱ ἀδελφοὶ αὐτοῦ, Μετάβηθι ἐντεῦθεν καὶ ὕπαγε εἰς τὴν Ἰουδαίαν, ἵνα
καὶ οἱ μαθηταί σου θεωρήσουσιν σοῦ τὰ ἔργα ἃ ποιεῖς· 4 οὐδεὶς γάρ τι ἐν κρυπτῷ ποιεῖ καὶ ζητεῖ αὐτὸς ἐν παρρησίᾳ εἶναι. εἰ ταῦτα ποιεῖς, φανέρωσον
σεαυτὸν τῷ κόσμῳ. 5 οὐδὲ γὰρ οἱ ἀδελφοὶ αὐτοῦ ἐπίστευον εἰς αὐτόν.
2 Mas estava
perto a festa dos Judeus dos Tabernáculos. 3 Então os seus irmãos
disseram-lhe: “Parte daqui e vai para a Judeia, para que os teus discípulos possam
ver de ti as obras que fazes. 4 Pois ninguém que procure tornar-se a si mesmo
conhecido faz as coisas em segredo. Se fazes isto, torna-te a ti mesmo visível
ao mundo.” 5 Pois nem os seus irmãos confiavam nele.
Estas palavras mereceriam análises que não iremos fazer. Por exemplo, será que
os discípulos de Jesus estavam já na Judeia, em Jerusalém, separados de Jesus e
dos seus irmãos? Porque, de facto, os irmãos dizem-lhe que é lá, na Judeia, que
poderá mostrar aos discípulos aquilo que faz. Em grego, μαθητής,
discípulo, é aquele que aprende, um aprendiz. Será, então, que os seus
aprendizes não o seguiam neste momento? Sendo como for, quem registou estas
palavras dos irmãos de Jesus achou que não deveria omitir que nem os
seus irmãos confiavam nele. O verbo que aqui vertemos para confiar pode
ser entendido como acreditar, dar crédito, depositar fé. O
evangelista comenta por sua iniciativa as palavras que registou dizendo-nos que
nem os irmãos de Jesus davam crédito às suas obras. Daqui depreende que não
eram apenas os seus irmãos que, de alguma forma, duvidavam de Jesus. Outros
duvidavam também (ver Jo 6:61 - os discípulos de Jesus mostravam-se muitas
vezes reticentes perante as palavras deste), e parece que os seus discípulos já
nem o acompanham. Podemos supor que as dúvidas entre os discípulos se adensavam
e que talvez tivesse havido algum tipo de separação recente. Neste sentido, os
irmãos de Jesus parecem sugerir que este fosse para um local mais público
mostrar a todos, de forma bem manifesta, a sua obra. Contudo, estas palavras,
segundo João, eram algo irónicas como se dissessem: com o devido
respeito, tanta gente duvida de ti (até mesmo os teus discípulos), mas se
realmente és capaz daquilo que afirmas ser capaz, então demonstra-o bem à
frente de todos, num local bem visível, ou então deixa-te destas andanças e não
nos envergonhes mais.
Por outro lado, aparentemente, a dúvida recaía sobretudo sobre as suas obras.
Talvez os seus irmãos duvidassem de que Jesus fizesse realmente as obras que se
dizia que ele fazia. Temos indícios de que Jesus era mais bem sucedido em
terras onde fosse desconhecido.
Marcos 6:
1 Καὶ ἐξῆλθεν
ἐκεῖθεν καὶ ἔρχεται εἰς τὴν πατρίδα αὐτοῦ, καὶ ἀκολουθοῦσιν αὐτῷ οἱ μαθηταὶ αὐτοῦ.
2 καὶ γενομένου σαββάτου ἤρξατο διδάσκειν ἐν τῇ συναγωγῇ, καὶ πολλοὶ ἀκούοντες ἐξεπλήσσοντο
λέγοντες, Πόθεν τοὐτῳ ταῦτα, καὶ τίς ἡ σοφία ἡ δοθεῖσα τοὐτῳ, καὶ αἱ δυνάμεις
τοιαῦται διὰ τῶν χειρῶν αὐτοῦ γινόμεναι; 3 οὐκ οὗτος ἐστιν ὁ τέκτων, ὁ υἱὸς τῆς
Μαρίας καὶ ἀδελφὸς Ἰακώβου καὶ Ἰωσῆτος καὶ Ἰούδα καὶ Σίμωνος; καὶ οὐκ εἰσὶν αἱ ἀδελφαὶ
αὐτοῦ ὧδε πρὸς ἡμᾶς; καὶ ἐσκανδαλίζοντο ἐν αὐτῷ. 4 καὶ ἔλεγεν αὐτοῖς ὁ Ἰησοῦς ὅτι
Οὐκ ἔστιν προφήτης ἄτιμος εἰ μὴ ἐν τῇ πατρίδι αὐτοῦ καὶ ἐν τοῖς συγγενεῦσιν αὐτοῦ
καὶ ἐν τῇ οἰκίᾳ αὐτοῦ. 5 καὶ οὐκ ἐδύνατο ἐκεῖ ποιῆσαι οὐδεμίαν δύναμιν, εἰ μὴ ὀλίγοις
ἀρρώστοις ἐπιθεὶς τὰς χεῖρας ἐθεράπευσεν. 6 καὶ ἐθαύμασεν διὰ τὴν ἀπιστίαν αὐτῶν.
Καὶ περιῆγεν τὰς κώμας κύκλῳ διδάσκων.
1 E saiu dali e
foi para a sua terra, e os seus discípulos seguiram-no. 2 E à chegada do Sábado
começou a ensinar na sinagoga, e muitos, ouvindo-o, espantavam-se dizendo: “De
onde lhe vêm estas coisas, e por quem lhe foi dada a sabedoria, e tais poderes
que faz acontecer através das suas mãos? 3 Não é este o carpinteiro, o filho de
Maria e irmão de Tiago, e José, e Judas e Simão? E não estão as suas irmãs aqui
connosco?" E ofendiam-no. 4 E disse-lhes Jesus: “Um profeta não é
desonrado se não na sua terra e entre os seus familiares e em sua casa.” 5 E
não foi capaz de ali fazer qualquer poder, apenas curou alguns doentes deitando
as mãos sobre eles. 6 E admirou-se com a falta de confiança deles. E foi
ensinar para uma aldeia das redondezas.
Segundo Marcos, aqueles que o escutavam pareciam espantar-se pela sabedoria que
Jesus manifestava. O texto refere ainda as coisas que fazia com as suas mãos.
Contudo, podemos supor que Jesus não fizera muitos milagres ali, como logo
reconhece o próprio Marcos: "não foi capaz de ali fazer qualquer
poder". O grego diz claramente que Jesus não foi capaz, não
teve poder (οὐκ ἐδύνατο). É certo que curou alguns doentes - talvez
seja a essas curas que as pessoas que escutavam Jesus na sinagoga se referem
quando mencionam os "poderes que faz acontecer através das suas
mãos".
Segundo Marcos, Jesus ficou admirado com a falta de confiança daquelas pessoas.
O mesmo episódio é relatado por Mateus 13:53-58. No entanto, para Mateus foi
devido à falta de confiança dos Nazarenos que Jesus não fez milagres.
Mateus 13:
58 καὶ οὐκ ἐποίησεν
ἐκεῖ δυνάμεις πολλὰς διὰ τὴν ἀπιστίαν αὐτῶν.
58 E não fez ali
muitos poderes devido à falta de confiança deles.
Marcos e Mateus dizem que as pessoas da terra de Jesus tinham dúvidas quanto a
Jesus, sobretudo porque resistem à ideia de que alguém cuja família conhecem
tenha os poderes que ouvem dizer que ele tem. É essa a razão apontada por
Marcos e por Mateus para a desconfiança dos Nazarenos. E Mateus explica que,
devido a essa desconfiança, Jesus não fez ali milagres (ou, pelo menos, fez
poucos).
Marcos é um texto bastante preocupado em testemunhar os milagres de Jesus. Por
isso é significativo que admita que Jesus não os fez em Nazaré. Diz ele que
apenas curou alguns enfermos, o que é diferente de operar milagres propriamente
ditos. Por seu lado, Mateus está mais preocupado em legitimar Jesus, quer
enquanto Cristo, quer nas suas acções. Por isso Mateus não poderia deixar de
esclarecer a razão pela qual Jesus não fez milagres na sua terra, apesar de os
ter feito longe dali. Podemos supor que Jesus não sentisse apelo em fazer
maravilhas quando exigiam que o fizesse para acreditar nele. Talvez Jesus
preferisse fazer milagres com aqueles que o acreditassem, e não tanto para que
acreditassem nele.Também não se mostrou claramente satisfeito quando a sua mãe
lhe deu a entender que deveria fazer alguma coisa relativamente à falta de
vinho num casamento.
Seja como for, Lucas 4:14-30 relata o mesmo evento mas com mais pormenores. De
acordo com Lucas, Jesus regressou à Galileia, a Nazaré e, como de costume,
pôs-se a ler as Escrituras. Começa a ler Isaías (o texto citado por Jesus segue
a tradução da Septuaginta). O trecho citado,
que bem poderia ter saído originalmente da boca de Jesus, é o
seguinte:
Lucas 4:
18 Πνεῦμα κυρίου
ἐπ’ ἐμὲ οὗ εἵνεκεν ἔχρισεν με εὐαγγελίσασθαι πτωχοῖς, ἀπέσταλκεν
με, κηρύξαι αἰχμαλώτοις ἄφεσιν καὶ τυφλοῖς ἀνάβλεψιν, ἀποστεῖλαι τεθραυσμένους
ἐν ἀφέσει, 19 κηρύξαι ἐνιαυτὸν κυρίου δεκτόν.
18 O Espírito do
senhor está sobre mim porque me ungiu para anunciar as boas novas aos pobres,
enviou-me a proclamar aos prisioneiros a libertação e a dar aos cegos a visão,
a deixar os oprimidos em liberdade, 19 a proclamar o ano aceitável do senhor.
Este
trecho de Isaías tem tudo que ver com Jesus, sobretudo tem tudo que ver com o
que veio a compreender-se por Cristianismo. Termos caros a esta religião surgem
aqui. Evangelho, εὐαγγέλιον, que se lê euangélion (depois
de passar ao latim, o -u-, υ, transformou-se em -v-), significa boa
nova, isto é, boa notícia. E apóstolo, ἀπόστολος, que se
lê apóstolos, significa enviado, embaixador,
ou mesmo mensageiro.
Além
disso, o trecho de Isaías faz um conjunto de anúncios em favor dos socialmente
mais fracos e oprimidos - que é também o horizonte de actuação de Jesus. Parece
que Jesus estava de facto a falar de si mesmo e não simplesmente a ler um texto
das escrituras.
O facto não terá passado despercebido. Segundo este evangelista, Jesus afirmou
que tudo aquilo que acabara de citar estava a acontecer. Então, as pessoas que
o escutavam davam testemunho a seu favor. Que é que significa isto? O verbo
grego é μαρτυρέω, e significa dar testemunho a favor, ser testemunha
favorável a alguém. Lucas deve ter pretendido registar que as pessoas
assentiam, aceitavam, confirmavam as palavras de Jesus. Como é costume nas
assembleias em que, depois de um deputado falar, os da mesma bancada dizem
"apoiado". Mas Lucas, diz também que as pessoas ficaram admiradas por
aquelas palavras de graça (χάριτος) serem proferidas pelo
filho de José. Portanto, não é certo que o sentimento de admiração tenha sido
favorável a Jesus. Pelo contrário, parece que se admiraram de que o filho de
José ousasse dizer, ou pretender saber tais coisas. Podemos supor que, tendo já
ouvido falar do que Jesus fizera por outros lados, os nazarenos percebessem
imediatamente que Jesus falava de si próprio. Isso pode ter parecido uma
afronta demasiado grande para poder ser cometida por alguém que lhes era, ou
fora tão próximo.
E é
neste contexto que Lucas coloca a referência à dificuldade que os profetas têm
em serem bem-vindos na sua própria terra.
23 καὶ εἶπεν πρὸς
αὐτοὺς, Πάντως ἐρεῖτε μοι τὴν παραβολὴν ταύτην· Ἰατρέ, θεράπευσον σεαυτόν· ὅσα ἠκούσαμεν
γενόμενα εἰς τὴν Καφαρναοὺμ ποίησον καὶ ὧδε ἐν τῇ πατρίδι σου. 24 εἶπεν δὲ, Ἀμὴν
λέγω ὑμῖν ὅτι οὐδεὶς προφήτης δεκτός ἐστιν ἐν τῇ πατρίδι αὐτοῦ.
23 E disse-lhes:
“Certamente me falareis desta parábola: ‘Médico, cura-te a ti mesmo: tudo
quanto ouvimos ter acontecido em Cafarnaum faz também aqui na tua terra’”. 24
Mas ele disse: “Em verdade vos digo que nenhum profeta é bem-vindo na sua
terra.”
A
inserção deste trecho aqui, por Lucas, parece descontextualizada num primeiro
olhar. Afinal, tudo o que havia sido comentado pelas pessoas que o ouviam era
que ele era filho de José. Contudo, Jesus imediatamente se justifica pelo facto
de não fazer milagres em Nazaré. Mas ninguém falara em milagres.
Segundo
Lucas, Jesus refere outros profetas, Elias e Eliseu, como exemplos de quem fez
obra longe de casa. Claramente, Lucas está preocupado em explicar por que é que
Jesus não fez milagres em casa, apesar de os ter feito longe de Nazaré.
As
pessoas que escutavam Jesus enquanto este referia Elias e Eliseu ficaram
descontentes com o que ouviram, levaram-no para fora da cidade e tentaram
atirá-lo do monte abaixo. Mas Jesus limitou-se a passar entre aqueles que o
levaram e foi-se embora. Este é o relato de Lucas. Portanto, este evangelista
conta o episódio de Marcos e Mateus, mas com mais pormenores. Contudo, os
pormenores que tem permite-nos supor que não fica tudo dito.
Enfim, tentando ler os três evangelhos sinópticos em conjunto podemos admitir
que Jesus teve dificuldades em adquirir a confiança das pessoas da sua própria
terra. Há aspectos que não analisamos porque não estão directamente
relacionados com o nosso tema aqui, como por exemplo a relação entre o
provérbio referido por Jesus, "Médico, cura-te a ti próprio", e a
ausência de milagres em casa. Mas estamos em condições de perceber que a
desconfiança estava relacionada com o facto de Jesus não realizar milagres ali,
em Nazaré. Marcos nota que Jesus ficou muito admirado com a falta de confiança
daquelas pessoas, e Mateus explica que Jesus só não fez milagres porque não
houve confiança. Podemos supor que as pessoas com quem Jesus fora criado
apresentassem relutância em aceitar a palavra de Jesus e em confiar no que
ouviam dizer dele. Menos predispostas a
acreditar, psicologicamente estariam numa situação em que lhes seria
mais difícil de ver milagres. Se existe uma predisposição psicológica
favorável, um crente facilmente pode ver um milagre. Os evangelistas tratam de
dar a sua própria explicação para essa ausência de milagres. E Lucas coloca o
próprio Jesus a justificar-se. É provável que estes relatos estejam
fundeados naquilo que de facto ocorreu. Aqueles que registaram estes episódios
estariam interessados em não ter que explicar esta ausência. O facto de ter
chegado até nós este registo indicia que provavelmente é verdadeiro. Ou seja, é
provável que tenha de facto existido uma desconfiança acentuada por parte dos
nazarenos em relação à pessoa de Jesus e ao seu comportamento. Podemos supor
que quem se dirigisse a Nazaré e questionasse aquelas pessoas que viram Jesus
ser criado, não obtivesse da sua parte mais do que um relato insípido sobre uma
infância normal e uma convivência nunca sobressaltada por milagres ou curas de
leprosos.
É legítimo admitir que Jesus desde o início da sua actividade pública teve
dificuldade em se relacionar com os seus, seja com a sua mãe, seja com os seus
irmãos, seja com os da sua terra. O seu envolvimento no templo, nas leituras e
talvez mesmo os seus comentários e interpretações da lei e das escrituras deve
ter criado alguma indisposição que se foi paulatinamente agravando. Tendo
saído da sua terra e ido para Cafarnaum, e outros locais, ensinar,
curar doentes e realizar milagres, é provável que alguma desta actividade se
tenha tornado conhecida em Cafarnaum (note-se que não pretendemos com isto
afirmar que Jesus fez de facto milagres). A dado momento, a
sua mãe e os seus irmãos julgam necessário procurá-lo, talvez com a ideia de o
chamarem à razão, pois tornara-se evidente para eles que estava fora de
si. Parece ter havido, a certa altura, algum mal estar sério.
Aparentemente, Jesus não os recebe nem os reconhece como autênticos familiares.
Os seus verdadeiros irmãos são os seus discípulos. Talvez mais tarde (note-se
que segundo Marcos e Mateus, primeiro aconteceu o episódio de a família o
procurar, e depois, mais tarde, volta a Nazaré - segundo Lucas, é o inverso,
isto é, primeiro voltou a Nazaré, depois, mais tarde, acontece o episódio
de a família o procurar) tenha decido voltar à sua terra, mas também então não
conseguiu ser bem recebido pelos nazarenos. Provavelmente porque os
ensinamentos de Jesus lhes parecessem demasiado revolucionários ou fora do
comum e exigissem, por isso, um sinal mais substancial de que Deus o apoiava.
Quando Jesus não realizou os milagres que esperavam como sinal, poderão ter
pensado que estavam perante um falso profeta ou um charlatão.
Os
familiares de Jesus não se mostram contentes com a sua actuação pública,
provavelmente porque não acreditavam na sua missão, nas suas palavras ou no que
se dizia acerca dele. Por outro lado, temos indícios de que alguma espécie de
reconciliação, em maior ou menor grau, mais tarde ou mais cedo, acabou por
ocorrer.
Perto
da morte de Jesus, já depois da sua condenação, parece que a sua mãe o
acompanhava.
Marcos 16
1 Καὶ διαγενομένου τοὺ σαββάτου Μαρία ἡ Μαγδαληνὴ καὶ Μαρία ἡ [τοῦ] Ἰακώβου καὶ Σαλώμη ἠγόρασαν ἀρώματα ἵνα ἐλθοῦσαι ἀλείψωσιν αὐτόν.
1 E tendo
passado o Sábado, Maria Magdalena e Maria a mãe de Tiago e Salomé compraram
perfumes para que fossem ungi-lo.
Este trecho refere três mulheres: Maria de Magdala; Maria, mãe de Tiago;
Salomé. A identificação que por vezes se faz de Tiago (Menor) com Tiago, irmão
de Jesus, coloca a hipótese de aqui se fazer referência à mãe de Jesus.
Na
nossa opinião, os relatores não teriam nenhuma razão para, ao registarem as
notícias sobre Jesus, mencionarem a sua mãe ligando-a a um outro filho, e não a
Jesus. Por vezes tenta-se ver aqui uma referência a Maria, mãe de Jesus, com a
justificação de que o nome Tiago se refere a um irmão de Jesus, e logo depois
se diz que esse irmão não é verdadeiro irmão, mas sim um primo, ou talvez um
meio-irmão de Jesus, filho de José, mas não filho de Maria, de modo a garantir
a virgindade desta. Ora, tentaremos apenas encontrar referências explícitas à
presença de Maria, mãe de Jesus - referências que não estejam dependentes de
outras teses e teorias que não podem ser comprovadas textualmente. E essas
referências existem, ainda que sejam escassas.
João 19:
25 εἱστήκεισαν δὲ
παρὰ τῷ σταυρῷ τοῦ Ἰησοῦ ἡ μήτηρ αὐτοῦ καὶ ἡ ἀδελφὴ τῆς μητρὸς αὐτοῦ, Μαρία ἡ
τοῦ Κλωπᾶ καὶ Μαρίαμ ἡ Μαγδαληνή. 26 Ἰησοῦς οὖν ἰδὼν τὴν μητέρα καὶ τὸν μαθητὴν
παρεστῶτα ὃν ἠγάπα, λέγει τῇ μητρί, Γύναι, ἴδε ὁ υἱός σου. 27 εἶτα λέγει τῷ
μαθητῇ, Ἴδε ἡ μήτηρ σου. καὶ ἀπ’ ἐκείνης τῆς ὥρας ἔλαβεν ὁ μαθητὴς αὐτὴν εἰς τὰ
ἴδια.
25 Mas estavam
junto à cruz de Jesus a sua mãe, e a irmã da sua mãe, Maria, a mulher de
Clopas, e Maria, a Madalena. 26 Então Jesus, vendo a mãe e a seu lado o
discípulo que amava, disse à mãe: “Mulher, olha o teu filho.” 27 A seguir disse
ao discípulo: “Olha a tua mãe.” E desde essa hora o discípulo tomou-a para si
próprio.
Portanto, segundo João, a mãe de Jesus estava junto dele pouco antes da sua
morte. Podemos supor que qualquer divergência que se tivesse instaurado entre
eles se diluísse perante a condenação à morte de Jesus. Não sabemos se a
reconciliação antecedeu a sua prisão.
De
qualquer modo, após a morte de Jesus a sua mãe parece ter desempenhado um papel
no movimento cristão dos primeiros anos. Logo depois da morte
de Jesus, Maria é incluída no grupo.
Actos 1
14 οὗτοι πάντες ἦσαν
προσκαρτεροῦντες ὁμοθυμαδὸν τῇ προσευχῇ σὺν γυναιξὶν καὶ Μαριὰμ
τῇ μητρὶ τοῦ Ἰησοῦ καὶ σὺν τοῖς ἀδελφοῖς αὐτοῦ.
14 Todos esses
perseveraram de comum acordo na oração com as mulheres e com
Maria, a mãe de Jesus, e com os seus irmãos.
Maria,
a mãe de Jesus, comungava com os que acreditavam. O grupo parece ter sido muito
unido e conviver familiarmente, repartindo o que os seus membros tinham. Jesus
subordinara a lógica familiar à da missão. Mas Maria parece ter integrado o seu
movimento, pelo menos depois da sua morte. Contudo, não deixa de ser curioso
que, tendo Jesus ressuscitado aparecido a tanta gente, conforme nos indicam as
fontes, nenhum relato afirme que apareceu a sua mãe.
Podemos
também admitir que, pelo menos, parte dos seus familiares se reconciliaram com
Jesus ou com o seu movimento, se não antes, talvez depois da sua morte. Neste
sentido há diversas hipóteses em aberto. O próprio Clopas, cuja esposa é
mencionada em Jo 19:25 pode ter sido um dos familiares de Jesus a integrar o
movimento. A tradição atribui a Carta segundo Judas ao irmão de Jesus com o
mesmo nome. Mas o indício mais claro e que nos parece mais consistente é o caso
de Tiago, irmão de Jesus (Gl 1:19), referido por Paulo como um daqueles a quem
o ressuscitado apareceu ( 1 Cor 15:7). Podemos supor que essa experiência possa
estar na base da sua adesão ao movimento.
Portanto,
a família de Jesus deve ter sido surpreendida pelo seu comportamento e,
provavelmente, pelas suas palavras. Contudo, essa perplexidade parece ter
sido superada, mesmo que isso tivesse acontecido apenas depois da sua morte. De
qualquer modo, a família de Jesus parece envolvida no movimento cristão inicial
que começou a crescer depois da sua morte. É provável que a morte de Jesus, bem
como a persistência do movimento dos seus seguidores e a difusão da
sua mensagem, os relatos do seu aparecimento posterior, ou experiências
pessoais com o ressuscitado tenham sido mais do que suficientes para vergarem
os seus familiares àquilo que muitos outros já aceitavam como evidências.
Também não deve ser descurado que a ligação familiar a Jesus deveria trazer
consigo um lugar de destaque na hierarquia do movimento - de resto, Tiago
parece ter pertencido à liderança tripartida do mesmo em Jerusalém.
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