Mateus
12:
46 Ἔτι αὐτοῦ λαλοῦντος τοῖς ὄχλοις ἰδοὺ
ἡ μήτηρ καὶ οὶ ἀδελφοὶ αὐτοῦ εἱστήκεισαν ἔξω ζητοῦντες αὐτῷ λαλῆσαι. 47 [εἶπεν
δέ τις αὐτῷ, Ἰδοὺ ἡ μήτηρ σου καὶ οἱ ἀδελφοί σου ἔξω ἑστήκασιν ζητοῦντές σοι
λαλῆσαι.] 48 ὁ δὲ ἀποκριθεὶς εἶπεν τῷ λέγοντι αὐτῷ, Τίς ἐστιν ἡ μήτηρ μου καὶ τίνες
εἰσιν οἱ αδελφοί μου; 49 καὶ ἐκτείνας τὴν χεῖρα αὐτοῦ ἐπὶ τοὺς μαθητὰς αὐτοῦ εἶπεν,
Ἰδοὺ ἡ μήτηρ μου καὶ οἱ ἀδελφοί μου. 50 ὅστις γὰρ ἂν ποιήσῃ τὸ θέλημα τοῦ
πατρός μου τοῦ ἐν οὐρανοῖς αὐτός μου ἀδελφὸς καὶ ἀδελφὴ καὶ μήτηρ ἐστίν.
46
Enquanto falava às multidões, eis que a mãe e os irmãos dele estavam lá fora
procurando falar-lhe. 47 [Mas alguém lhe disse: “Olha que a tua mãe, e os teus
irmãos estão lá fora querendo falar-te.”] 48 Mas respondendo disse a quem lhe
falou: “Quem é a minha mãe e quem são os meus irmãos?” 49 E, tendo estendido a
sua mão para os seus discípulos, disse: “Eis a minha mãe e os meus irmãos. 50
Pois quem quer que faça a vontade do meu pai do céu, esse é meu irmão, e irmã e
mãe. ”
As referência aos irmãos de Jesus são imensas. Não é necessário enunciá-las todas. Mas antes de tentar-mos responder à questão se Jesus teve irmãos, devemos perguntar qual a razão de ser da pergunta. Perante os indícios textuais, não haveria lugar a dúvidas sobre este ponto. O número de referências que existe seria suficiente para nem fazer sentido perguntar se Jesus teve ou não irmãos. Então, por que é que esta pergunta tem lugar?
Bem, em primeiro lugar porque a ideia da virgindade de Maria se impôs ao longo dos séculos. Apesar de apenas em 1854 a virgindade de Maria ser tornada em Dogma, pela bula Ineffabilis Deus, esta ideia há muito se vinha impondo à reflexão cristã. Esta ideia, com origem na citação de Isaías 7:14, feita pelo Evangelho Segundo São Mateus 1:23, a partir da Septuaginta (ver discussão aqui), criou o problema da leitura das referências aos irmãos de Jesus. A virgindade de Maria, segundo a Igreja Católica, não foi um carácter volúvel. Não só Jesus foi concebido sem a intervenção humana masculina, como também permaneceu virgem após o nascimento. O conceito de virgindade seria qualquer coisa mais do que a mera ausência de acto sexual. A virgindade de Maria poderia ter-se perdido fisicamente após o nascimento de Jesus, tal como certas actividades poderão comprometer o hímen de uma jovem - mas segundo a noção de virgindade aplicada a Maria, também isso não aconteceu. Finalmente, segundo a mesma noção, Maria não deve ter tido qualquer filho ou filha que pudesse, antes ou depois de Jesus, ter comprometido a sua virgindade perpétua. Ou seja, quando a religião cristã afirma que Maria é a Virgem não pretende apenas afirmar que Jesus foi concebido sem cópula, mas também que nem depois de Jesus ter nascido houve outra qualquer mácula. Desta forma seria inaceitável que Maria tivesse tido outro filho, pois se o caso extraordinário de Jesus se justificara pela sua própria natureza, tornar-se-ia indefensável que Maria tivesse depois dado à luz outros filhos, também eles, sem cópula. Por isso a única tese autorizada seria a de que Maria não tivera nenhum outro filho, além de Jesus.
É neste contexto que se deve colocar a pergunta: Jesus teve irmãos? E sem esta contextualização - aqui meramente indicada - não nos seria possível respondermos à mesma.
Tendo em conta o contexto referido na reflexão cristã, colocou-se o problema da leitura dos termos irmão, ἀδελφός, e irmãos, ἀδελφοί.
Uma das formas mais óbvias de eliminar a dificuldade e de integrar os textos na doutrina foi a leitura do termo irmão no sentido de companheiro de missão, ou se preferirmos, seguidor de Jesus Cristo. É o próprio Jesus que afirma esta postura no pequeno trecho citado acima: “Eis a minha mãe e os meus irmãos. 50 Pois quem quer que faça a vontade do meu pai do céu, esse é meu irmão, e irmã e mãe. ”
Ora, essa leitura é descartada por uma análise descomprometida do texto (Mt 12:46-50). Jesus dirige-se àqueles que o escutam, ou àqueles que o informam de que os seus irmãos, com a sua mãe, estão a perguntar por ele. E diz que esses que estão à sua volta é que são seus irmãos, não os irmãos que o procuram lá fora. Portanto, há uma utilização claramente dupla do termo irmão, ora num sentido, ora noutro. Jesus não pode estar a utilizar, em ambos os casos, o termo no sentido de companheiros de missão, ou discípulos.
Então, tentou-se afirmar que o termo irmão, naquele tempo, tal como hoje, poderia ser usado para designar outros laços familiares. Nesta leitura pretende-se que ἀδελφός possa ser compreendido no sentido de primo. Talvez os primos de Jesus tivessem o costume de acompanhar Maria. Ora, esta leitura não parece fazer sentido porque não é clara a razão pela qual os primos de Jesus acompanhassem habitualmente a mãe de Jesus e não a própria mãe deles. Não temos qualquer indício nos textos que nos permitam fazer esta leitura. Os primos de Jesus deveriam acompanhar os seus pais, não os pais de Jesus. Por outro lado, o grego possuía um termo para designar um primo: ἀνεψιός (ver Colossenses 4:10), por isso não havia razão para utilizar tanta vez o termo irmão para designar um primo.
Uma outra leitura comum e também muito antiga parte de uma conjuntura prévia. Supõe que José, marido de Maria (mas não pai verdadeiro de Jesus), tinha filhos de uma outra mulher, da qual era viúvo. Assim, admite-se que as referências visam irmãos de Jesus, mas irmãos apenas pelo lado de José. Os defensores desta interpretação procuram justificar o uso do termo irmão, contudo, na verdade, afirmam que estes irmãos são chamados de irmãos por serem filhos de um homem ao qual não reconhecem a paternidade de Jesus. Afirmam que Jesus não é filho de José, mas que José teve filhos de outro casamento, e que os textos chamam irmãos de Jesus a estes que, afinal, não são irmãos de Jesus.
As leituras que pretendem que Jesus não teve irmãos procuram, de uma forma ou de outra, mostrar que os textos de que dispomos chamam de irmãos aqueles que não são de facto irmãos. Todavia, chegam a esta conclusão com base em crenças que não estão devidamente fundeadas nos próprios textos de que dispomos. Não temos nada que nos permita afirmar que, de uma forma geral, o termo irmão seja utilizado para designar outra coisa senão um irmão. Podemos identificar situações claras onde o termo é usado noutro sentido, como por exemplo na citação de Mateus feita acima, mas a diferença é que nestes casos há uma utilização de irmão que o próprio autor se esforça por determinar e esclarecer como distinto do conceito habitual de irmão. Todas as referências onde esta clareza não existe não suscitam qualquer dúvida sobre ser mais provável que o autor queira dizer precisamente aquilo que diz. Se para o autor fosse premente clarificar que Jesus não tinha irmãos, provavelmente não teria afirmado tantas vezes que ele os tinha - sem esclarecer que não queria afirmar que se tratavam de irmãos no sentido habitual.
O trecho de Mateus é muito claro neste aspecto. Há um sentido habitual para o termo irmão, e há outro sentido, não habitual, que Jesus lhe atribuía. Jesus pretendia que este sentido prevalecesse sobre o primeiro. Mas o autor do texto afirma sem hesitação que Jesus tem irmãos nesse sentido habitual.
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