Queria começar
por explicar que ao utilizar o termo “desonesto” não quero, de modo nenhum, dizer
que alguns autores dizem X querendo dizer Y, ou que têm uma segunda agenda oculta. Isso também pode
acontecer, mas não é o que quero dizer.
Quando
Descartes, n’Os Princípios da Filosofia,
I, 5, afirma que há a possibilidade de sermos sempre enganados, coloca em cena
uma espécie de dúvida que não encontra restrições. Contudo, no artigo 6º seguinte, imediatamente
restringe a dúvida: « nous ne laissons pas d’éprouver en nous une liberté qui
est telle que, toutes les fois qu’il nous plaît, nous pouvons nous abstenir de
recevoir en notre croyance les choses que nous ne connaissons pas bien ». Este
artigo constitui uma restrição porque aquilo que Descartes diz no artigo 5º é o
mesmo que dizer que encontramos em nós « une
liberté qui est telle que, toutes les fois qu’il nous plaît, nous pouvons nous
abstenir de recevoir en notre croyance les choses ». Mas mais do que
dizer que nós podemos duvidar daquilo que bem entendermos, Descartes diz que devemos duvidar de tudo porque pode
acontecer que estejamos a ser enganados sempre que algo nos parece certo (por
exemplo, um Deus enganador poderia estar-nos a enganar). Este é um dos sentidos
em que uso o termo desonesto: quando
um autor se propõe um projecto que depois não cumpre – no caso, afirma que se
deve duvidar de tudo até encontrarmos evidências, mas depois não duvida de uma
coisa (esquecendo que, se começar sempre por duvidar daquilo que lhe parece nunca
encontrará nada de que não possa duvidar). Ou seja, começou o seu sistema
precisamente pela suspensão da dúvida
relativamente a algo, quando teve a pretensão de o sustentar na suspensão da crença. Descartes diz isso
expressamente no artigo 6º: irá duvidar de tudo aquilo que não conheça bem,
daquilo que lhe pareça ser duvidável. Mas o aspecto fundamental do artigo 5º é,
precisamente, que tudo o que nos parece ser certo pode resultar de um engano –
portanto, dever-se-ia duvidar de tudo.
Quando Descartes, n’As Paixões da Alma, artigo
145, reconhece que « nous devons souvent faire réflexion sur la Providence
divine, et nous représenter qu’il est impossible qu’aucune chose arrive d’autre
façon qu’elle a été déterminée de toute éternité par cette Providence ; en
sorte qu’elle est comme une fatalité ou une nécessité immuable qu’il faut
opposer à la fortune », dá notícia de algo muito interessante. Este
reconhecimento que ele faz pontualmente coloca em cena um ponto que poderia ter
consequências relevantes para o sistema. Mas, mais uma vez, imediatamente a seguir (art. 146), estabelece uma
limitação à interpretação: « tout est conduit par la Providence divine, dont le
décret éternel est tellement infaillible et immuable qu’excepté les choses
que ce même décret a voulu dépendre de notre libre arbitre, nous devons
penser qu’à notre égard il n’arrive rien qui ne soit nécessaire et comme fatal »
(sublinhado nosso). Esta é outra forma de desonestidade: reconhecer um
ponto que, no limite, teria consequências em todo o sistema, mas derivar apenas
as consequências relativas ao ponto concreto em questão (escolher um caminho
sem pensar naquilo que não depende da nossa vontade), colocando o resto sob a
nota de uma excepção já adquirida, como se o novo dado não pudesse ter
consequências sobre o que previamente parecia adquirido. Isto não quer dizer
que Descartes tivesse consciência disto. Ele pode ter sido sincero. Mas o
sistema filosófico é desonestamente desenvolvido: porque esbate os dados que
vão sendo adicionados, dando-lhe a forma do que previamente está adquirido, sem
submeter o que estava previamente adquirido ao escrutínio. O novo dado é
considerado simplesmente algo que deve ser interpretado à luz das certezas previamente estabelecidas.
Quando
Descartes, n’Os Princípios da Filosofia,
I, 3, afirma: « [c]ependant il est à remarquer que je
n’entends point que nous nous servions d’une façon de douter si générale, sinon
lorsque nous commençons à nous appliquer à la contemplation de la vérité »,
coloca de forma explícita a Filosofia ao nível de uma excepção da vida. A contemplação da verdade corresponde um
parêntesis no decurso da vida, cujo decorrer normal nos submete à urgência de
ter de decidir em tempo útil, apesar de não podermos estar mais certos acerca
de uma opinião do que de outra. Portanto, Descartes explicitamente diz que a
vida é outra coisa. Isto faz-nos lembrar Aristóteles que parece dizer algo de
semelhante na Metafísica 982β10-30.
Contudo, o sentido em que Aristóteles interpreta isso é bem diferente (cf. Ética a Nicómaco 1178β30-1179α10, a necessidade que o humano tem de bens exteriores é assumida,
mas sem que isso seja o fim, pelo contrário, os bens necessários são utilizados
em vista da excelência: come-se para se permitir a continuação da activação da
possibilidade de ser excelente). Descartes
diz que a dúvida não deve ter lugar na vida habitual « à cause que les occasions d’agir en nos affaires se passeraient presque
toujours avant que nous pussions nous délivrer de tous nos doutes ». A
lógica da excepção é levada ao limite aqui. O deve-se duvidar de tudo é uma actividade mental a que uma pessoa se
pode dedicar quando, sem mais negócios a conduzir, descansa da vida. E como
nada daí pode resultar que possa ser de facto levado a sério, não vale a pena
interromper o curso dos negócios. O duvidar de tudo, afinal, não é levado a
sério: não o é no método, como mostrámos atrás, e não o é na vida. É apenas uma
brincadeira que se pode fazer quando a correria da vida se suspende e nos dá
descanso. Mas mesmo que ficássemos pela dúvida e esta fosse levada a sério,
quando terminasse o tempo de lazer, lá se voltaria para os negócios.
Mas esta forma
de desonestidade intelectual mostra uma grande honestidade prática: a vida vem
em primeiro lugar. A dúvida metódica tinha desde início uma finalidade, e essa
finalidade estabelecia o seu âmbito. O escudo protector estava activado desde o
primeiro momento: a dúvida não poderia matar. Isso mesmo foi o que Pirro
descobriu quando foi perseguido por um cão e teve que fugir (cf. Diógenes
Laércio, A Vida dos Filósofos mais
Ilustres, IX,66).
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