sábado, 22 de dezembro de 2012

COR, coração, coragem, recordação

A propósito de RECORDAR


"Recordare" vem de "re-" + "cordis",...
"cordis", de "cor", isto é: coração.

Recordar, trazer novamente, fazer passar mais uma vez pelo coração. O cor-ação é a sede da cor-agem. Só um cor-ação pode re-cordar, não basta ter memória, não basta lembrar: é preciso cor-agem.


quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O que é um anti-cristo?

A propósito de anti-cristo...


Curioso o conceito de anti-cristo de Nostradamus. Nada que o Novo Testamento não faça notar: os falsos profetas. Há a pretensão de identificar Hitler com um dos anti-cristos e diz-se que ainda falta vir um. Ora, qual é o problema com os falsos profetas? Podem atingir grande poder e mover exércitos humanos. Mas porquê? Quem era o exército do Hitler, quem são os seguidores dos falsos profetas? Seriam seres de outro mundo, espíritos trazidos pelo anti-cristo para este mundo?
O problema com os falsos profetas é que não são reconhecidos como tal pelas pessoas. O problema é que o anti-cristo, se o for, não é reconhecido como tal. E quem não se rever nas suas ideias será rejeitado. Não será o anti-cristo a ir de casa em casa, serão as pessoas, os homens e mulheres que tanto medo têm do anti-cristo que executarão a vontade do anti-cristo. E executarão a vontade dele com vontade.
O problema com o anti-cristo é que as suas palavras viriam ao encontro da maioria dizendo-lhe aquilo que elas querem ouvir, aquilo que elas querem acreditar. O problema é que quando se fala de anti-cristo as pessoas imaginam um ser com cornos, príncipe da fealdade, horrível, mal-disposto, com palavras agressivas. Mas um ser com cornos não é de temer porque as pessoas unir-se-ão contra ele. Mas essa forma de representar o anti-cristo afasta a atenção para o que é mais perigoso: aquela figura agradável que nos diz palavras melífluas, que parece ser um salvador, que é agradável e que facilmente convence. E é desse ser que é de ter medo, porque a vir um falso profeta mundial a sua característica principal não seriam os cornos, mas com toda a certeza a sua beleza, de figura ou de palavras. E enquanto se procuram os cornos imaginários a alegria real pode ser a grande falsidade que nos enterra no lodo da mediocridade.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A vida é curta e a ciência é longa...

A propósito de decisão...


Um indício da humanidade de Jesus é o passo de São Marcos 15:33-34. Podemos com alguma confiança aceitar que Jesus tenha de facto proferido essas palavras: seria de esperar que os seus seguidores preferissem ocultá-las. Jesus parece desesperado, angustiado, sentindo-se abandonado e talvez perdido. Ser humano implica uma lida quotidiana com o próprio destino. O comércio da vida, por sua vez, implica perdas e ganhos, mas por vezes o saldo não é evidente, a dúvida trabalha na mente e a angústia assoma. Jesus rejeita o epiteto de “bom” e afirma que apenas Deus o é. Aceita e reconhece a fragilidade humana. O tempo em que decorre a vida humana é de exposição. O humano está fundamentalmente exposto: é a sua condição. Exposto à acção destruidora das tempestades, ao sol que cuida e amadurece. É fácil ser-se bom quando o tempo corre bem, é inevitável ser-se pervertido quando as coisas correm mal. Só por Deus as coisas passam inócuas. E aqueles que os deuses amam mais são os mais felizes.
“A vida é curta”. Esta afirmação não significa apenas que se vive pouco tempo. Por vezes os que são levados mais cedo foram os que realmente existiram. Pode viver-se uma vida longa sem jamais se ter existido. O fundamental não é o tempo de vida que se tem. Mas “a ciência é longa”. Não é que não se viva o tempo suficiente para nele caber a ciência toda – ainda que isto também seja verdade. Mas o que aqui importa é outra ideia. A ciência que permite que o labrador are a terra adequadamente e faça dela uma colheita é uma sabedoria específica. Também o humano pode tornar-se exímio no cultivo da vida: para isso há mister de ciência. Esta ciência é que importa. Mas a forma da vida é o lance, é o desgaste. O humano desde sempre se encontra a si mesmo jogado a fazer pela vida. Esta urgência é natural nele como o leite do seio materno para o bebé. Mas é precisamente esta urgência que afunila a compreensão da vida naquilo que de cada vez ocupa a sua atenção. E assim, a forma da vida é a correria, enquanto a forma da ciência é a contemplação. Na maioria das vezes vive-se sem tempo para prestar atenção à vida. As oportunidades estão disponíveis por curtos períodos em que são ocasião propícia e depois somem-se – muitas vezes sem que a correria da vida tenha permitido dar por isso. Pode perder-se um destino num minuto e não se dar por isso. A questão é, portanto, ser-se avisado, para se poder ser bom. Aristóteles defende que se pode ser bom sem ser por condição (como os deuses, ou como os predilectos dos deuses), mas por um esforço consciente do humano para fazer de si o seu melhor. Este esforço é árduo, pois exige uma inversão daquela que é a forma natural da vida. A experiência é íngreme e a queda é fácil. Mas, no fim, são as escolhas que cada um faz que esculpem o seu destino. E é na escolha que está a angústia porque nada se consegue sem sacrifício.

Uma nota sobre felicidade e perfeição

A propósito de felicidade humana...


“Filho de Laertes, criado por Zeus, Ulisses de mil ardis!
Então para tua casa e para a amada terra pátria
queres agora regressar? Despeço-me e desejo-te boa sorte.
Mas se soubesses no teu espírito qual é a medida da desgraça
que te falta cumprir, antes de chegares à terra pátria,
aqui permanecerias, para comigo guardares esta casa;
e serias imortal, apesar do desejo que sentes de ver
a esposa por que anseias constantemente todos os dias.
Pois eu declaro na verdade não ser inferior a ela,
de corpo ou estatura: não é possível que mulheres
compitam em corpo e beleza com deusas imortais.”

Respondendo-lhe assim falou o astucioso Ulisses:
“Deusa sublime, não te encolerizes contra mim. Eu próprio
sei bem que, comparada contigo, a sensata Penélope
é inferior em beleza e estatura quando se olha para ela.
Ela é uma mulher mortal; tu és divina e nunca envelheces.
Mas mesmo assim quero e desejo todos os dias
voltar a casa e ver finalmente o dia do meu regresso.
E se algum deus me ferir no mar cor de vinho, aguentarei:
pois tenho no peito um coração que aguenta a dor.
Já anteriormente muito sofri e muito aguentei
no mar e na guerra: que mais esta dor se junte às outras.”

Homero, Odisseia, V, 203-224


[…] a ilustre Calipso, encostando a face aos dedos róseos, e considerando pensativamente o Herói, soltou estas palavras aladas:
- Oh Ulisses muito subtil, tu queres voltar à tua morada mortal e à terra da Pátria... Ah! se conhecesses, como eu, quantos duros males tens de sofrer antes de avistar as rochas de Ítaca, ficarias entre os meus braços, amimado, banhado, bem nutrido, revestido de linhos finos, sem nunca perder a querida força, nem a agudeza do entendimento, nem o calor da facúndia, pois que eu te comunicaria a minha imortalidade!... Mas desejas voltar à esposa mortal, que habita na ilha áspera onde as matas são tenebrosas. E todavia eu não lhe sou inferior, nem pela beleza, nem pela inteligência, porque as mortais brilham ante as Imortais como lâmpadas fumarentas diante de estrelas puras.
O facundo Ulisses acariciou a barba rude. Depois, erguendo o braço, como costumava na Assembleia dos Reis, à sombra das altas popas, diante dos muros de Tróia, disse:
- Oh Deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope te está muito inferior em formosura, sapiência e majestade. Tu serás eternamente bela e moça, enquanto os Deuses durarem: e ela, em poucos anos, conhecerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das dores da decrepitude e dos passos que tremem apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possuis as luminosas certezas. Mas, oh Deusa, justamente pelo que ela tem de incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, e apeteço a sua companhia congénere! Considera como é penoso que, nesta mesa, cada dia, eu coma vorazmente o anho das pastagens e a fruta dos vergéis, enquanto tu ao meu lado, pela inefável superioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a Ambrósia divina! Em oito anos, oh Deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria; nem dos teus verdes olhos rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impaciência; nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio... E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfregue o corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de Deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade: e, durante o longo tempo que contigo dormi, nunca gozei a felicidade de te emendar, de te contradizer, e de sentir, ante a fraqueza do teu, a força do meu entendimento! Oh Deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! Considera ainda que, como Deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens: e eu não pude saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh Deusa, tu és impecável: e quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia da sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais: - “Foi culpa tua, mulher!” - erguendo, em frente à lareira, um alarido cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os Deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que eu mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso ame dum amor que constantemente se alimenta destes modos ondeantes, como o lume se nutre dos ventos contrários!

Eça de Queiroz, A perfeição


A felicidade, a ser algo, há-de ser um estado de perfeição, de correspondência plena, de completude. O que é problemático pois o que é perfeição e completude no humano não é claro, desde logo porque se se exige correspondência, então já se reconheceu a existência de um hiato, de uma alteridade no interior do próprio humano, de tal modo que podemos imaginar qualquer coisa como um ser perfeito entediado. 

Se um ser perfeito ainda pode ser chamado de humano está em dúvida, como está em dúvida se a perfeição pode ser entediante. Porque a perfeição, a ser perfeição, há-de conter em si, como constituinte de si, a satisfação consigo mesma. Ou então não é perfeição. Isto é importante porque mostra que a perfeição ou completude do humano não há-de estar em certas determinações que normalmente são associadas à felicidade. 

A imortalidade poderia ser acompanhada de infelicidade. O excesso de ouro poderia ser acompanhada de infelicidade. A abundância de comida, de riquezas, de beleza, de juventude, de prazer pode ser acompanhada de infelicidade.

Há ainda uma outra questão a fazer: a perfeição do humano resume-se à felicidade? Ou pode acontecer que a felicidade não nos chegue? O livro O Admirável Mundo Novo mostra um mundo possível em que todos são criados felizes... mas aquele mundo não nos parece ser apetecível... Porquê?

domingo, 16 de dezembro de 2012

A Lecture on Éthics - de Wittgenstein

A propósito de Ética


A Lecture on Ethics*




Before I begin to speak about my subject proper let me make a few introductory remarks. I feel I shall have great difficulties in communicating my thoughts to you and I think some of them may be diminished by mentioning them to you beforehand. The first one, which almost I need not mention, is that English is not my native tongue and my expression therefore often lacks that precision and subtlety which would be desirable if one talks about a difficult subject. All I can do is to ask you to make my task easier by trying to get at my meaning in spite of the faults which I will constantly be committing against the English grammar. The second difficulty I will mention is this, that probably many of you come up to this lecture of mine with slightly wrong expectations. And to set you right in this point I will say a few words about the reason for choosing the subject I have chosen: When your former secretary honoured me by asking me to read a paper to your society, my first thought was that I would certainly do it and my second thought was that if I was to have the opportunity to speak to you I should speak about something which I am keen on communicating to you and that I should not misuse this opportunity to give you a lecture about, say, logic. I call this a misuse, for to explain a scientific matter to you it would need a course of lectures and not an hour's paper. Another alternative would have been to give you what's called a popular scientific lecture, that is a lecture intended to make you believe that you understand a thing which actually you don't understand, and to gratify what I believe to be one of the lowest desires of modern people, namely the superficial curiosity about the latest discoveries of science. I rejected these alternatives and decided to talk to you about a subject which seems to me to be of general importance, hoping that it may help to clear up your thoughts about this subject (even if you should entirely disagree with what I will say about it). My third and last difficulty is one which, in fact, adheres to most lengthy philosophical lectures and it is this, that the hearer is incapable of seeing both the road he is led and the goal which it leads to. That is to say: he either thinks: "I understand all he says, but what on earth is he driving at" or else he thinks "I see what he's driving at, but how on earth is he going to get there." All I can do is again to ask you to be patient and to hope that in the end you may see both the way and where it leads to.
I will now begin. My subject, as you know, is Ethics and I will adopt the explanation of that term which Professor Moore has given in his book Principia Ethica He says: "Ethics is the general enquiry into what is good." Now I am going to use the term Ethics in a slightly wider sense, in a sense in fact which includes what I believe to be the most essential part of what is generally called Aesthetics. And to make you see as clearly as possible what I take to be the subject matter of Ethics I will put before you a number of more or less synonymous expressions each of which could be substituted for the above definition, and by enumerating them I want to produce the same sort of effect which Galton produced when he took a number of photos of different faces on the same photographic plate in order to get the picture of the typical features they all had in common. And as by showing to you such a collective photo I could make you see what is the typical -say-Chinese face; so if you look through the row of synonyms which I will put before you, you will, I hope, be able to see the characteristic features they all have in common and these are the characteristic features of Ethics. Now instead of saying "Ethics is the enquiry into what is good" I could have said Ethics is the enquiry into what is valuable, or, into what is really important, or I could have said Ethics is the enquiry into the meaning of life, or into what makes life worth living, or into the right way of living. I believe if you look at all these phrases you will get a rough idea as to what it is that Ethics is concerned with. Now the first thing that strikes one about all these expressions is that each of them is actually used in two very different senses. I will call them the trivial or relative sense on the one hand and the ethical or absolute sense on the other. If for instance I say that this is a good chair this means that the chair serves a certain predetermined purpose and the word good here has only meaning so far as this purpose has been previously fixed upon. In fact the word good in the relative sense simply means coming up to a certain pre-determined standard. Thus when we say that this man is a good pianist we mean that he can play pieces of a certain degree of difficulty with a certain degree of dexterity. And similarly if I say that it is important for me not to catch cold I mean that catching a cold produces certain describable disturbances in my life and if I say that this is the right road I mean that it's the right road relative to a certain goal. Used in this way these expressions don't present any difficult or deep problems. But this is not how Ethics uses them. Supposing that I could play tennis and one of you saw me playing and said "Well, you play pretty badly" and suppose I answered "I know, I'm playing badly but I don't want to play any better," all the other man could say would be "Ah then that's all right." But suppose I had told one of you a preposterous lie and he came up to me and said "You're behaving like a beast" and then I were to say "I know I behave badly, but then I don't want to behave any better," could he then say "Ah, then that's all right"? Certainly not; he would say "Well, you ought to want to behave better." Here you have an absolute judgment of value, whereas the first instance was one of a relative judgment. The essence of this difference seems to be obviously this: Every judgment of relative value is a mere statement of facts and can therefore be put in such a form that it loses all the appearance of a judgment of value: Instead of saying "This is the right way to Granchester," I could equally well have said, "This is the right way you have to go if you want to get to Granchester in the shortest time"; "This man is a good runner" simply means that he runs a certain number of miles in a certain number of minutes, etc. Now what I wish to contend is that, although all judgments of relative value can be shown to be mere statements of facts, no statement of fact can ever be, or imply, a judgment of absolute value. Let me explain this: Suppose one of you were an omniscient person and therefore knew all the movements of all the bodies in the world dead or alive and that he also knew all the states of mind of all human beings that ever lived, and suppose this man wrote all he knew in a big book, then this book would contain the whole description of the world; and what I want to say is, that this book would contain nothing that we would call an ethical judgment or anything that would logically imply such a judgment. It would of course contain all relative judgments of value and all true scientific propositions and in fact all true propositions that can be made. But all the facts described would, as it were, stand on the same level and in the same way all propositions stand on the same level. There are no propositions which, in any absolute sense, are sublime, important, or trivial. Now perhaps some of you will agree to that and be reminded of Hamlet's words: "Nothing is either good or bad, but thinking makes it so." But this again could lead to a misunderstanding. What Hamlet says seems to imply that good and bad, though not qualities of the world outside us, are attributes to our states of mind. But what I mean is that a state of mind, so far as we mean by that a fact which we can describe, is in no ethical sense good or bad. If for instance in our world-book we read the description of a murder with all its details physical and psychological, the mere description of these facts will contain nothing which we could call an ethical proposition. The murder will be on exactly the same level as any other event, for instance the falling of a stone. Certainly the reading of this description might cause us pain or rage or any other emotion, or we might read about the pain or rage caused by this murder in other people when they heard of it, but there will simply be facts, facts, and facts but no Ethics. And now I must say that if I contemplate what Ethics really would have to be if there were such a science, this result seems to me quite obvious. It seems to me obvious that nothing we could ever think or say should be the thing. That we cannot write a scientific book, the subject matter of which could be intrinsically sublime and above all other subject matters. I can only describe my feeling by the metaphor, that, if a man could write a book on Ethics which really was a book on Ethics, this book would, with an explosion, destroy all the other books in the world. Our words used as we use them in science, are vessels capable only of containing and conveying meaning and sense, natural meaning and sense. Ethics, if it is anything, is supernatural and our words will only express facts; as a teacup will only hold a teacup full of water [even] if I were to pour out a gallon over it. I said that so far as facts and propositions are concerned there is only relative value and relative good, right, etc. And let me, before I go on, illustrate this by a rather obvious example. The right road is the road which leads to an arbitrarily predetermined end and it is quite clear to us all that there is no sense in talking about the right road apart from such a predetermined goal. Now let us see what we could possibly mean by the expression, "the absolutely right road." I think it would be the road which everybody on seeing it would, with logical necessity, have to go, or be ashamed for not going. And similarly the absolute good, if it is a describable state of affairs, would be one which everybody, independent of his tastes and inclinations, would necessarily bring about or feel guilty for not bringing about. And I want to say that such a state of affairs is a chimera. No state of affairs has, in itself, what I would like to call the coercive power of an absolute judge. Then what have all of us who, like myself, are still tempted to use such expressions as "absolute good," "absolute value," etc., what have we in mind and what do we try to express? Now whenever I try to make this clear to myself it is natural that I should recall cases in which I would certainly use these expressions and I am then in the situation in which you would be if, for instance, I were to give you a lecture on the psychology of pleasure. What you would do then would be to try and recall some typical situation in which you always felt pleasure. For, bearing this situation in mind, all I should say to you would become concrete and, as it were, controllable. One man would perhaps choose as his stock example the sensation when taking a walk on a fine summer's day. Now in this situation I am, if I want to fix my mind on what I mean by absolute or ethical value. And there, in my case, it always happens that the idea of one particular experience presents itself to me which therefore is, in a sense, my experience par excellence and this is the reason why, in talking to you now, I will use this experience as my first and foremost example. (As I have said before, this is an entirely personal matter and others would find other examples more striking.) I will describe this experience in order, if possible, to make you recall the same or similar experiences, so that we may have a common ground for our investigation. I believe the best way of describing it is to say that when I have it I wonder at the existence of the world. And I am then inclined to use such phrases as "how extraordinary that anything should exist" or "how extraordinary that the world should exist." I will mention another experience straight away which I also know and which others of you might be acquainted with: it is, what one might call, the experience of feeling absolutely safe. I mean the state of mind in which one is inclined to say "I am safe, nothing can injure me whatever happens." Now let me consider these experiences, for, I believe, they exhibit the very characteristics we try to get clear about. And there the first thing I have to say is, that the verbal expression which we give to these experiences is nonsense! If I say "I wonder at the existence of the world" I am misusing language. Let me explain this: It has a perfectly good and clear sense to say that I wonder at something being the case, we all understand what it means to say that I wonder at the size of a dog which is bigger than anyone I have ever seen before or at any thing which, in the common sense of the word, is extraordinary. In every such case I wonder at something being the case which I could conceive not to be the case. I wonder at the size of this dog because I could conceive of a dog of another, namely the ordinary size, at which I should not wonder. To say "I wonder at such and such being the case" has only sense if I can imagine it not to be the case. In this sense one can wonder at the existence of, say, a house when one sees it and has not visited it for a long time and has imagined that it had been pulled down in the meantime. But it is nonsense to say that I wonder at the existence of the world, because I cannot imagine it not existing. I could of course wonder at the world round me being as it is. If for instance I had this experience while looking into the blue sky, I could wonder at the sky being blue as opposed to the case when it's clouded. But that's not what I mean. I am wondering at the sky being whatever it is. One might be tempted to say that what I am wondering at is a tautology, namely at the sky being blue or not blue. But then it's just nonsense to say that one is wondering at a tautology. Now the same applies to the other experience[s] which I have mentioned, the experience of absolute safety. We all know what it means in ordinary life to be safe. I am safe in my room, when I cannot be run over by an omnibus. I am safe if I have had whooping cough and cannot therefore get it again. To be safe essentially means that it is physically impossible that certain things should happen to me and therefore it's nonsense to say that I am safe whatever happens. Again this is a misuse of the word "safe" as the other example was of a misuse of the word "existence" or "wondering." Now I want to impress on you that a certain characteristic misuse of our language runs through all ethical and religious expressions. All these expressions seem, prima facie, to be just similes. Thus it seems that when we are using the word right in an ethical sense, although, what we mean, is not right in its trivial sense, it's something similar, and when we say "This is a good fellow," although the word good here doesn't mean what it means in the sentence "This is a good football player" there seems to be some similarity. And when we say "This man's life was valuable" we don't mean it in the same sense in which we would speak of some valuable jewelry but there seems to be some sort of analogy. Now all religious terms seem in this sense to be used as similes or allegorically. For when we speak of God and that he sees everything and when we kneel and pray to him all our terms and actions seem to be parts of a great and elaborate allegory which represents him as a human being of great power whose grace we try to win, etc., etc. But this allegory also describes the experience[s] which I have just referred to. For the first of them is, I believe, exactly what people were referring to when they said that God had created the world; and the experience of absolute safety has been described by saying that we feel safe in the hands of God. A third experience of the same kind is that of feeling guilty and again this was described by the phrase that God disapproves of our conduct. Thus in ethical and religious language we seem constantly to be using similes. But a simile must be the simile for something. And if I can describe a fact by means of a simile I must also be able to drop the simile and to describe the facts without it. Now in our case as soon as we try to drop the simile and simply to state the facts which stand behind it, we find that there are no such facts. And so, what at first appeared to be a simile now seems to be mere nonsense. Now the three experiences which I have mentioned to you (and I could have added others) seem to those who have experienced them, for instance to me, to have in some sense an intrinsic, absolute value. But when I say they are experiences, surely, they are facts; they have taken place then and there, lasted a certain definite time and consequently are describable. And so from what I have said some minutes ago I must admit it is nonsense to say that they have absolute value. And I will make my point still more acute by saying "It is the paradox that an experience, a fact, should seem to have supernatural value." Now there is a way in which I would be tempted to meet this paradox. Let me first consider, again, our first experience of wondering at the existence of the world and let me describe it in a slightly different way; we all know what in ordinary life would be called a miracle. It obviously is simply an event the like of which we have never yet seen. Now suppose such an event happened. Take the case that one of you suddenly grew a lion's head and he began to roar. Certainly that would be as extraordinary a thing as I can imagine. Now whenever we should have recovered from our surprise, what I would suggest would be to fetch a doctor and have the case scientifically investigated and if it were not for hurting him I would have him vivisected. And where would the miracle have got to? For it is clear that when we look at it in this way everything miraculous has disappeared; unless what we mean by this term is merely that a fact has not yet been explained by science which again means that we have hitherto failed to group this fact with others in a scientific system. This shows that it is absurd to say "Science has proved that there are no miracles." The truth is that the scientific way of looking at a fact is not the way to look at it as a miracle. For imagine whatever fact you may, it is not in itself miraculous in the absolute sense of that term. For we see now that we have been using the word "miracle" in a relative and an absolute sense. And I will now describe the experience of wondering at the existence of the world by saying: it is the experience of seeing the world as a miracle. Now I am tempted to say that the right expression in language for the miracle of the existence of the world, though it is not any proposition in language, is the existence of language itself. But what then does it mean to be aware of this miracle at some times and not at other times? For all I have said by shifting the expression of the miraculous from an expression by means of language to the expression by the existence of language, all I have said is again that we cannot express what we want to express and that all we say about the absolute miraculous remains nonsense. Now the answer to all this will seem perfectly clear to many of you. You will say: Well, if certain experiences constantly tempt us to attribute a quality to them which we call absolute or ethical value and importance, this simply shows that by these words we don't mean nonsense, that after all what we mean by saying that an experience has absolute value is just a fact like other facts and that all it comes to is that we have not yet succeeded in finding the correct logical analysis of what we mean by our ethical and religious expressions. Now when this is urged against me I at once see clearly, as it were in a flash of light, not only that no description that I can think of would do to describe what I mean by absolute value, but that I would reject every significant description that anybody could possibly suggest, ab initio, on the ground of its significance. That is to say: I see now that these nonsensical expressions were not nonsensical because I had not yet found the correct expressions, but that their nonsensicality was their very essence. For all I wanted to do with them was just to go beyond the world and that is to say beyond significant language. My whole tendency and I believe the tendency of all men who ever tried to write or talk Ethics or Religion was to run against the boundaries of language. This running against the walls of our cage is perfectly, absolutely hopeless. Ethics so far as it springs from the desire to say something about the ultimate meaning of life, the absolute good, the absolute valuable, can be no science. What it says does not add to our knowledge in any sense. But it is a document of a tendency in the human mind which I personally cannot help respecting deeply and I would not for my life ridicule it.



Wittgenstein, Ludwig, 1929


*Texto fixado por Rush Rhees, publicado em The Philosophical Review, 74, 1965, pp. 3-12. 
A fixação do texto baseia-se no TS 207. O TS 207 é um texto dactilografado por Wittgenstein, o qual não tem realmente um título.
O original está preservado na Wren Library, do Trinity College, em Cambridge.

O texto de TS 207, bem como as suas duas versões manuscritas e respectivas traduções, dos três textos, juntamente com o tratamento devido, podem ser encontradas aqui.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

A vida tal como ela é

A propósito da vida humana tal como ela é...

O texto é fabuloso. Das coisas mais belas que já li. E tão verdadeiro. A tradução é minha.




São Jerónimo, Cartas,

A Heliodoro

18. Mas fui para além das funções de consolador, e enquanto te proibia de chorar por um homem morto eu próprio lamentava a morte do mundo todo. Xerxes, o poderoso rei, que arrasou montanhas e encheu mares, ao ver de um lugar alto a multidão infinita de homens e o exército infinito perante si, diz-se que chorou porque dali a cem anos nenhum deles estaria vivo. Oh!, se nós pudéssemos subir assim a uma torre tão alta que dela pudéssemos discernir toda a terra a nossos pés! Então eu te mostraria o universo em ruínas, nações contra nações, reinos contra reinos; uns torturados, outros assassinados, outros afogados nas ondas, outros escravizados; aqui um casamento, ali um funeral; estes a nascer, aqueles a morrer; uns a viver na abundância, outros a mendigar; e não só no exército de Xerxes, mas todos os homens do mundo, que agora vivem, em breve estarão mortos. A coisa venceu em magnitude a palavra e tudo o que dizemos é pouco.


Texto original, ed. F.A. Wright,

Jerome, Saint. Epistulae. Selections.

Ad Heliodorum Epitaphium Nepotiani

"18. Excessimus consolandi modum, et, dum unius mortem flere prohibemus, totius orbis mortuos planximus. Xerxes, ille rex potentissimus, qui subvertit montes, maria constravit, cum de sublimi loco infinitam hominum multitudinem et innumerabilem vidisset exercitum, flesse dicitur, quod post centum annos nullus eorum, quos tunc cernebat, superfuturus esset. O si possemus in talem ascendere speculam, de qua universam terram sub nostris pedibus cerneremus! Iam tibi ostenderem totius mundi ruinas, gentes gentibus et regnis regna conlisa; alios torqueri, alios necari, alios obrui fluctibus, alios ad servitutem trahi; hic nuptias, ibi planctum; illos nasci, istos mori; alios affluere divitiis, alios mendicare; et non Xerxis tantum exercitum, sed totius mundi homines, qui nunc vivunt, in brevi spatio defuturos. Vincitur sermo rei magnitudine et minus est omne quod dicimus."

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Parte-do-todo ou indivíduo?

A propósito de parte e indivíduo...


Uma questão à Duns Escoto: 


a mão sacrifica-se a si mesma pelo corpo por amor a si mesma, ou por amor ao corpo?



Leibniz: existência

A propósito de existência...

"a única ideia de existência que nós possuímos é que concebemos que as coisas são sentidas. E não pode haver outra..." Leibniz, Sobre a Existência

"Quando sonhamos com palácios, negamos com razão que eles existam. Existir não é, pois, ser sentido." Leibniz, Sobre o Espírito, o Universo e Deus

Leibniz: pensar sem palavras?

A propósito de pensamento e signo...


[...]
B. E então? Os pensamentos são possíveis sem palavras.
A. Mas não sem alguns outros sinais. Pergunto-me se tu poderias fazer algum cálculo matemático sem números.
B. Muito me perturbas, pois não pensei que os sinais ou símbolos fossem tão necessários ao pensamento.
[...]

Leibniz, Dialogus de conexione inter res et verba

[...]
B. Quid tum? Cogitationes fieri possunt sine vocabulis.
A. At non sine aliis signis. Tenta quaeso an Arithmeticum calculum instituere possis sine signis numeralibus.
B. Valde me perturbas, neque enim putabam characteres vel signa ad ratiocinandum tam necessaria esse.
[...]

Filosofia e Metafísica: o questionamento

A propósito de ídolos...

"Por um lado, cada questão metafísica envolve sempre a totalidade da problemática metafísica. A questão é, de cada vez, a própria totalidade. Mas então nenhuma questão metafísica pode ser questionada sem que o questionante - como tal - esteja ele mesmo contido na questão, isto é, tomado nessa questão."
[...]
"A filosofia – isto que nós chamamos assim – não é mais que o pôr em prática da metafísica, pela qual ela acede a ela mesma e às suas procuras explícitas. E a filosofia não se põe em andamento senão por uma inserção específica da minha própria existência nas possibilidades fundamentais do 'Dasein' na sua totalidade. Para essa inserção, eis o que é decisivo: [...] abandonar-se a si mesmo no nada, isto é, fazer-se livre dos ídolos que cada um possui e para junto dos quais cada um procura ordinariamente fugir [...]"

Heidegger, O que é a Metafísica?

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Do sistema em que somos

A propósito de sistema...

Quanto a existir um governo na sombra, ou uma sombra no governo, eu não sei. A noção de sistema não é clara. Pode acontecer que, independentemente de haver, ou não haver, um comando organizado por detrás da aparente concorrência, e independentemente de existir, ou não existir, alguém a tentar controlar o mundo através de cordelinhos invisíveis (e não estou a dizer que não possa existir alguma coisa do género) - independentemente disso, dizia eu, pode acontecer que devamos considerar a existência pura e simplesmente de um sistema. Ora, o que significa existir um sistema? Não é APENAS que há uma organização - cabeça do sistema - a controlar o resto - o corpo do sistema. Isso pode acontecer, mas não é o mais relevante. 

O que significa fazer parte do sistema? Com certeza nós fazemos parte do sistema. Nós todos, mesmo esses que poderão, de alguma forma, tentar controlá-lo. A questão de fundo é que há um sistema. Isto é, na maioria das vezes tomamos certas coisas por dadas, certas regras por naturais, certos comportamentos com a mesma transparência da água que bebemos. Isto significa que nós todos somos parte desse sistema constituído de regras, leis, conceitos, preconceitos... mas o mais importante é que a grande maioria dessas regras são transparentes: como o ar. Quando aparece alguém a tentar chamar a nossa atenção para elas, é como se alguém tentasse apontar para o ar: nós olhamos, seguimos o sentido do dedo que aponta, e pensamos que essa pessoa estaria a apontar para a árvore ao fundo... temos muita dificuldade em ver o ar. Pensamos que nos estão a indicar as árvores. Então podemos pensar que nos estamos a libertar dessas regras, desses preconceitos, mas na verdade ainda estamos todos a falar das árvores e não do ar (dos preconceitos). Na verdade, mesmo que nós nos apercebêssemos de alguns dos conceitos com que nos regemos (e acredito que sim), nunca podemos estar certos de nos termos livrado de todos eles. Porque esses preconceitos, além de serem como o ar, são como a superfície do olho: é literalmente através deles que nós vemos as coisas. Como, então, os poderemos ver a eles? Podemos ver um ou outro... Surge então a ideia de nos libertarmos de uma cadeia que até pode ser real, mas escapa-nos de todo aquela cadeia mais profunda. Se considerarmos isto com atenção, perceberemos que é possível que nós mesmos sejamos parte do sistema num outro sentido: de forma concreta nós somos uma peça na engrenagem, fazemos a máquina continuar, nós somos o sistema. E o sistema é tão abrangente que cria em algumas das suas peças a ideia de que se libertaram do toldo: essas peças (esses indivíduos) têm a ilusão de que vêem melhor do que os outros e que, na verdade, estão livres para lutar contra o sistema. E nessa ilusão ganham o espírito necessário para continuar NO sistema. 

Cada gesto nosso é habitualmente perpetuação do sistema. Não vale a pena deitar as culpas aqui ou ali. Na maioria das vezes temos apenas de olhar para nós mesmos e reconhecer em nós o sistema. Porque tomamos o modo de vida que temos por natural, por REAL. Não nos passa pela cabeça que a compreensão que temos das coisas seja uma POSSIBILIDADE. O sistema integra tudo e engole mesmo aquilo que poderia ser-lhe mais antagónico. Veja-se o Natal, o cristianismo que, na sua origem, é o grito do ser humano afirmando que "não somos do mundo", mas que o sistema converte em mundo. O cristianismo que surgiu como grito contra o mundo tornou-se uma arma do mundo: as compras de natal, etc. Tudo de tal modo camuflado que nos escapa que, em cada "oferta" que fazemos estamos sendo parte do mundo, do sistema. Ou veja-se outro exemplo: as revoluções. Muda um regime e surge outro, supõe-se que se revolucionou uma sociedade, mas na verdade apenas se limpou um ponto que se tornara impertinente mantendo-se toda a restante máquina: mas se virmos bem, mesmo esse aspecto que se eliminou apenas aparentemente se eliminou. Deu-se-lhe um novo aspecto. Isto é comum nas revoluções: pensa-se que se mudou o sistema, mas apenas se deu, com essa ilusão, força ao sistema que agora pensa estar limpo... e nós somos esse sistema. Mesmo que não exista nenhum governo sombra, nem ninguém a controlar os governos, nem nenhuma organização a puxar os cordelinhos: há sistema. E quando aparece alguém que verdadeiramente (se é que isso é possível) se libertou do sistema, NÓS olhamos para esse alguém como se fosse um louco, um alien, assim como olhamos para quem dorme numa cama de pregos, ou deixa todos os seus bens e se dedica ao humanitarismo, ou vive entre nós sem verdadeiramente ligar ao consumo. 

Gritamos contra os capitalistas e contra as grandes multinacionais enquanto vamos ao cinema ou depois de um jogo de futebol, mas se vemos alguém deixar tudo e ir viver para o deserto dizemos que é doido. Criticamos a falta de ética dos outros enquanto ocupamos os nossos tempos livres a discutir a falta de ética dos outros (não haveria alguma coisa mais ética para se fazer do que discutir a falta de ética dos outros?) Nós vamos ao café criticar o consumismo, mas quando encontramos um sem abrigo que o é voluntariamente, que já foi professor catedrático, que vive debaixo de um cartaz de publicidade gigante, e lê Dostoiévski, Kafka, Kant a quem vai ao café, o que é que nós pensamos dele senão que deve ser maluco? 

Enfim, tomamos a vida que levamos como "é assim" e a ideia que há este ou aquele factor concreto que nos manipula é apenas uma forma de nos deixarmos afundar mais no sistema sem sabermos.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Nietzsche: Ser = Viver



"O Ser - nós não temos outra representação disso [de ser] que não seja o Viver."

Nietzsche, Edição de Colli, vol. XII, 2

domingo, 9 de dezembro de 2012

Nietzsche - filosofia contra-intuitiva, o problema das categorias vulgares que não se deixam ver

A propósito da dificuldade que há em entrar na filosofia de Nietzsche


Quando estamos a tentar entender autores como Nietzsche (talvez com todos), temos que ter muito cuidado com os comentadores. É que Nietzsche está a tentar fazer um discurso para além das categorias habituais (chamemos-lhe o que quisermos: metafísica tradicional, ontologia canónica, senso comum, Bem e Mal, cristianismo, etc.). Qualquer coisa como a metáfora retirada da Bíblia: colocar o vinho em odres novos. Mas as categorias habituais são, precisamente, habituais. Quando alguém procura apontar para o ar corre o risco de que nós sigamos o seu dedo até à parede e pensemos que estava a apontar para ela. Então nós pensamos que ele simplesmente mudou o nome da "parede" e lhe passou a chamar "ar". Mas não, ele estava mesmo a falar de algo pelo qual nós, de facto, não demos. E a parede que nós pensamos que agora deve receber o nome "ar" era aquilo que para Nietzsche era vazio. Contudo, a nossa tendência é olhar para a parede e não perceber que ela é o vazio. Tal como não vemos o ar e julgamos que ele é simplesmente um vazio, quando Nietzsche tentava mostrar que não é assim.

Por isso, os comentadores normalmente falam de Nietzsche como se ele tivesse desperdiçado o vinho, ou como se ele simplesmente tivesse feito vinho novo: mas ele estava a falar de partir os odres velhos e de pôr vinho novo em odres novos.

O que é normalmente um nietzscheano?

Alguém que simplesmente trocou o vinho, mas manteve a forma.
Eles pensam que Nietzsche simplesmente mudou o nome da parede: antes chamava-se cristianismo, depois passou a chamar-se vontade de poder. Mas Nietzsche não mudou o nome a nada. O que ele mostrou é que, precisamente, havia nomes com grande fama que ocultavam um grande vazio. Não se tratava de colocar outro nome no vazio.

Enfim, por vezes, aqueles que mais defendem Nietzsche são os que parecem menos ter compreendido o fôlego do seu trabalho.

Por exemplo:
Quando Nietzsche fala dos espíritos malignos e da falta que eles fazem para renovar terrenos gastos, ele não está a pedir que nos tornemos todos gangsters, nem está a dizer que defende que nos dediquemos a assaltar bancos, ou que os assassinos em série devem ser galardoados. Nietzsche está a usar uma estratégia de contraste, porque essa é a única forma de apontar para o ar. Se alguém quer ver a dificuldade que aqui está envolvida apenas tem de inventar uma palavra para o ar, e depois ente mostrar a alguém a que é que está a chamar de ar apenas apontando. Vai ver que, quando apontar, ninguém vai pensar que está a apontar para o ar. O mesmo acontece se tentar apontar para uma janela: as pessoas vão pensar que está a apontar para a árvore que está no caminho.
Apontar a falsidade, ou o esquecimento que está subjacente à velha moral não é defender a simples negação dela. Nietzsche não está a dizer para fazermos simplesmente o contrário que a moral manda fazer: porque isso é manter o modelo anterior, o modelo moralista.

Se há coisa de que Nietzsche nos avisa é que os filósofos podem estar tão embrenhados em preconceitos como qualquer outra pessoa (coisa que é óbvia, mas que os filósofos, como todas as outras pessoas, tendem a ignorar). E de facto, nem os filósofos excepcionais são bons comentadores uns dos outros. Por isso, não nos podemos fiar no que um grande filósofo diz de outro.

Quem quiser compreender Nietzsche tem de ler Nietzsche. E em Nietzsche é importante a ordem pela qual as suas obras foram escritas. Portanto, Nietzsche (e, talvez, todos os filósofos) deveria ser lido pela ordem de execução das suas obras: começando pela primeira que ele escreveu e acabando na última. Mas isso nem sempre é possível, e nem todas as obras estão disponíveis em português.

"Julgando possuir a consciência, os homens pouco se esforçaram por a adquirir. Hoje ainda estão nisso." A Gaia Ciência, §11

"és feliz se só tens uma virtude". Assim falava Zaratustra, Das Paixões de Alegria e de Dor

sábado, 8 de dezembro de 2012

Nietzsche

A propósito de interpretação...

Para Nietzsche cada interpretação é uma possibilidade. 

Todo o sujeito é uma perspectiva. Cada perspectiva uma interpretação - isto é, uma possibilidade. Neste sentido, há interpretações católicas, interpretações budistas, etc. Mas o fenómeno é diferente da interpretação - poderia ser interpretado de outra forma: o que é um sinal de Deus para o católico, é um acontecimento natural para o físico. 

De forma nenhuma se deve com isso pensar que há uma "verdade" a que se poderia chegar se nos livrássemos da interpretação. Porque não é disso que se trata, Nietzsche fala de "fenómenos" (aquilo que aparece), e não de "verdades", nem de "realidade" nem "númeno". 

Para Nietzsche há fenómenos e há interpretações. O que temos são fenómenos, mas nem sequer sabemos o que seria o fenómeno sem a interpretação. Ou seja, aquilo que temos de facto é uma interpretação. Falar de fenómenos não interpretados é falar de qualquer coisa que nós não sabemos o que é. O que nos aparece, aparece-nos com um sentido. Isto não é uma possibilidade, é uma condição. O que é apenas uma possibilidade é aquele sentido concreto com que as coisas nos aparecem. Os fenómenos poderiam ter outro sentido. Por exemplo, a maioria de nós teme a morte. Isso é um sentido. Para algumas pessoas a morte não é o mais temível. Para algumas não é nada temível. Alguns desejam a morte. Alguns são-lhe indiferentes. Cada um julga que o seu sentido não é apenas uma possibilidade. Aqueles que têm a morte por temível apontam para o que nela lhes mete medo. Mas isso não prova que a morte é, em si mesma, temível: mostra apenas que quem assim aponta teme isso para que aponta.

Nietzsche não apenas nega que possamos sair da nossa perspectiva para aferir o que é de facto o certo ou o errado - mas afirma também que a própria ideia de que há coisas certas e coisas erradas já é uma interpretação. Nietzsche não só nega que possamos saber o que é a Verdade - mas afirma também que a própria ideia de que há uma Verdade já é uma interpretação.

Ele tenta mostrar que não só podemos aplicar mal o nosso modelo da realidade (e enganarmo-nos), como também que pode acontecer que o nosso modelo da realidade esteja errado (e então já "certo" e "errado" serão conceitos desvitalizados, vazios, sem referente, pois que eles sempre se determinam em função do modelo ou sistema que os integra e lhes dá significado). 

Com isto o que ele quer, antes de mais, trazer à luz (e isto quer dizer "tornar fenómeno", fazer aparecer), é que o regime de sentido que habitualmente se encontra a funcionar em nós é uma possibilidade. Perceber isto é fundamental. E não é nada que o próprio Jesus não tenha tentado mostrar também. O Cristianismo é, aliás, veemente - atrevo-me a dizer mesmo que - mais veemente que Nietzsche ao chamar a atenção para isso de estarmos lançados num modo previamente dado de abertura ao mundo: mas sublinhando o carácter de possibilidade desse modo.

O que Nietzsche, tal como o Cristianismo, pretende fazer ver é que SE PODE SUSPENDER essa possibilidade.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Ética - medicina e pessoa

A propósito da medicina e da pessoa vista como coisa...



"Parecem ofuscar os horizontes éticos da ciência médica, que se arrisca a esquecer como a sua vocação é servir cada homem e todo o homem, nas diversas fases da sua existência."

"Sembrano quindi offuscarsi gli orizzonti etici della scienza medica, che rischia di dimenticare come la sua vocazione sia servire ogni uomo e tutto l’uomo, nelle diverse fasi della sua esistenza."

Papa Bento XVI, 

http://press.catholica.va/news_services/bulletin/news/30039.php?index=30039&lang=po

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Felicidade - filosofia

A propósito de ser feliz...

Os filósofos preocuparam-se sempre em evidenciar que os humanos desejam sempre ser felizes.

Por outro lado, esforçaram-se por mostrar que nem sempre se é feliz quando se julga ser feliz.

Aldous Huxley tentou mostrar isso mesmo nos seus romances.

No livro O Admirável Mundo Novo, as pessoas são formatadas para quererem ser aquilo que a sociedade estipula que elas devem ser.

Quando lemos este livro somos invadidos por uma sensação de desconforto. Qual o problema com esse mundo? As pessoas nele são todas felizes. Mas não podem ser outra coisa. Reconhecemos que não há liberdade nesse mundo: mas que tipo de liberdade? Será esse mundo realmente tão diferente do nosso mundo?

Se as pessoas são felizes, então qual o problema? Há algum problema com essa felicidade?

Aldous Huxley criou um mundo que grita: estão a ver, pode haver um problema com a felicidade. Não basta ser feliz. Mesmo que ninguém que esteja feliz desejasse outra coisa, na verdade parece que isso não nos basta quando, de fora, julgamos esse mundo: é que a felicidade parece não justificar tudo.

Recomendo vivamente a leitura deste livro - porque hoje parece haver uma completa tirania da busca da felicidade: como se isso fosse tudo. Também a felicidade pode ser aparente, pode ser um engano. Podemos julgar-nos felizes quando, na verdade, somos os mais miseráveis.

E então, quereríamos fazer parte do mundo de Huxley?

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Santo Agostinho, O Mendigo de Milão

A propósito de felicidade...

Passando por uma rua de Milão, apercebi-me de um pobre mendigo, já bêbado, creio eu, mas brincando e alegre: e gemi e falei com os [meus] amigos que estavam comigo sobre as muitas dores da nossa insanidade; porque com todos os nossos esforços, nos quais então me ocupava, sob o impulso da cupidez arrastava a minha carga de infelicidade, e aumentando-a ao prolongá-la, não queríamos mais nada senão alcançar a alegria segura, na qual o mendigo já nos havia precedido, e que talvez nunca alcançássemos.

Santo Agostinho, Confissões, VI, 9:
“transiens per quemdam vicum Mediolanensem, animadverti pauperem mendicum, jam credo saturum, jocantem atque lætantem: et ingemui, et locutus sum cum amicis qui mecum erant, multos dolores insaniarum nostrarum; quia omnibus talibus conatibus nostris, qualibus tunc laborabam, sub stimulis cupiditatum trahens infelicitatis meæ sarcinam, et trahendo exaggerans, nihil vellemus aliud nisi ad securam lætitiam pervenire, quo nos mendicus ille jam præcessisset, nunquam fortasse illuc venturos!”

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A Consciência Infeliz e a morte de Deus segundo Hegel

A propósito da morte de Deus:


"A Consciência Infeliz é o destino trágico da certeza do si que aspira a ser absoluto. É a consciência da perda de todo o ser essencial na sua certeza de si-mesmo, e da perda até mesmo deste conhecimento sobre si-mesmo: a perda tanto da substância como do Si, esta é a dor que se expressa a si mesma através da frase dura: Deus está morto."

Hegel, A Fenomenologia do Espírito, §752

O que é o concreto?

A propósito do "concreto"...

Bem, é mais fácil alguém admitir que o Universo é um conceito meramente abstracto, na medida em que não podemos realmente delimitá-lo, do que admitir que uma pedra é abstracta. Mas o que queremos dizer com abstracto? O que distingue o abstracto do concreto? Parece que o concreto é aquilo que podemos tocar, ver, cheirar... O abstracto parece ser aquilo que se caracteriza por ser simplesmente intelectual. 

Segundo a distinção anterior, uma pedra é concreta porque pode ser tocada. Na verdade, o ser concreto parece residir em ser algo de único, algo isolável. Posso apontar para uma pedra, tocar-lhe, e mostrá-la a alguém se me perguntar o que ela é. Já o conceito de pedra parece ser abstracto. Não posso realmente mostrar o conceito de pedra a alguém. Depois, o concreto não é repetível: esta pedra é esta pedra. O conceito de pedra repete-se em cada uma das pedras. Cada pedra é uma pedra. 

Infelizmente, aquilo que é concreto parece ser único, não transmissível. Não posso dizer uma pedra, posso apenas utilizar a linguagem, e isso significa que houve a mediação do conceito. O conceito, por ser repetível, por ser universal, permite a linguagem. Posso dizer a alguém que hoje vi uma pedra. Mas a pedra concreta, essa não a posso comunicar. Posso apenas mostrá-la se a levar comigo. 

Por outro lado, o abstracto parece ser universal de uma forma estranha, porque parece óbvio que por vezes ambos utilizamos a mesma palavra mas queremos dizer coisas diferentes. A minha representação pode ser diferente da tua. De tal modo que podemos, a dada altura, perceber que não estávamos a falar da mesma coisa. Portanto, não é imediatamente óbvio que quando se diz "pedra" duas pessoas tenham o mesmo conceito em mente - e na verdade, a palavra pedra pode ser utilizada em contextos muito diferentes. Com conceitos como "liberdade", "bem", "belo", isto torna-se mais evidente. E o conceito só pode ser expresso, não pode ser mostrado, ao contrário da pedra que é concreta.

Mas, de algum modo, fala-se de conceitos abstractos e concretos. Deve dizer-se que esta utilização dos termos é indevida. Não há, em rigor, conceitos concretos. Mas quando se diz que um conceito é concreto queremos dizer que podemos mostrar um exemplo do tipo de entes que esse conceito delimita. Posso exemplificar o conceito de pedra mostrando uma pedra. Mas já não posso exemplificar o meu conceito de "justiça". 

Esta forma de distinguir concreto e abstracto é muito pouco clara, porque eu também posso mostrar actos justos, situações justas, acontecimentos justos, finais de histórias justos... Então por vezes pretende-se distinguir concreto e abstracto dizendo que o concreto é aquilo que é evidente: posso mostrar uma pedra e ninguém fica na dúvida se é uma pedra, mas se mostrar um acontecimento justo, não raramente há quem discorde e diga que o meu exemplo é um mau exemplo, ou que o caso que apresentei não é um caso justo... Tudo isto está envolto em confusão, porque se a pessoa diz que o meu caso não é um exemplo de justiça, então é porque já tem, de algum modo, o conceito de justiça. Da mesma forma, uma pessoa que nunca tivesse visto pedras e só soubesse que aquela pedra que eu mostrei é uma pedra, poderia ter muitas dúvidas em decidir se um calhau é uma pedra, ou se a carapaça de uma tartaruga ou um osso também são pedras... E poderia não perceber que outra pedra completamente diferente também é pedra.

Mas deixemos isto de parte...

Como dissemos, parece que as coisas que podemos tocar são concretas porque "sabemos" o que são e não temos dúvida quanto a serem qualquer coisa de único, identificável. O concreto parece ser aquilo que temos à nossa frente e que não nos enganaríamos em ser isso aí aquilo de que falamos. Mas aprofundemos a nossa análise.

Tomemos um qualquer ente "próximo", como uma pessoa: a Maria. Nada parece mais conhecido e, nessa medida, mais concreto do que um ente querido. Se tentarmos ver o que é essa pessoa, temos que recorrer a determinações. Podemos perceber que o conceito que temos dessa pessoa corresponde a uma representação. Muito bem, mas essa representação é uma unidade - enquanto tal, é uma totalidade compósita. O que quer que digamos dela, trata-se de uma determinação, ou conjunto de determinações. Acontece, porém, que cada determinação é, pode definição, repetível. Não há nenhuma determinação da Maria que seja apenas da Maria. Percebemos que, então, a Maria é um cruzamento de determinações, cada uma delas repetível. Na verdade, cada uma das determinações da Maria é diferente da Maria. A Maria pode ser sensual. Ser sensual não é ser Maria, mas a Maria é sensual. E muitas outras mulheres podem ser sensuais. Assim, se tentarmos ver a que é que corresponde o meu conceito da Maria, este corresponde a uma representação insusceptível de ser correspondida a algo que não seja outra coisa que não ela. Ou seja, a Maria escapa-se-nos entre os dedos. Temos um conjunto de determinações, as quais são, todas elas, infinitamente repetíveis e de modo nenhum "concretas". Portanto, o conceito de Maria é, afinal, um conceito vazio e, na verdade, irrealizado. Mas se eu supor que esta dificuldade se deve à natureza das pessoas, poderia fazer o mesmo exercício com uma pedra, ou com um meteoro. 

Na verdade, se me pusessem à frente a Maria e outro ente com TODAS as determinações da Maria, eu não tinha nenhuma forma de as distinguir - e na verdade, nem teria nenhuma razão para dizer que não seriam DUAS Marias... Portanto, eu posso pensar que conheço muito bem a minha mãe. Já nem está em causa eu poder pensar que a conheço bem e afinal não conhecer. Eu posso conhecer a minha mãe muito bem. Mas não seria capaz de a distinguir de uma cópia perfeita. Porque o que eu sei dela é que ela é um conjunto de determinações. Apesar disso, a minha mãe é para mim muito mais do que isso, e na verdade não é nada disso. Quando falo da minha mãe, não me quero referir às determinações. Quero-me referir à minha mãe - precisamente àquilo que, se eu for analisar, não sei o que é. Mas enquanto a minha mãe é minha mãe, não admito que seja um aquilo. E tudo isto porque faz parte daquilo que para mim a minha mãe é a determinação ser amada por mim. E isto é uma determinação que faz toda a diferença... Nomeadamente, esbate as outras determinações e torna-as pouco importantes. Mas isto já é um outro assunto, também muito complexo, a saber, a distinção entre horizontes temático e prático. 

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A esquizofrenia da justificação...

A propósito de diálogos...



Bayle_ Mas devo acreditar seriamente que este é o melhor dos mundos possíveis?

Leibniz_ Mas é claro! Se não fosse, Deus teria escolhido outro!

Céptico_ Mas por que carga d'água é que sabemos que o mundo existe?

Descartes_ Porque Deus não nos iludiria!

Céptico 1_ Mas afinal o que é Deus?

Crente_ Bem, não sabemos.

Céptico 1_ Mas não é mais fácil admitir simplesmente o conhecimento objectivo?

Céptico 2_ Bem, isso é o que o homem comum, todos nós, faz efectivamente! Pelo menos, quando não está a escrever filosofia.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Não sabemos o que é um erro...

A propósito do erro...

Reconheço que erro quando estou num ponto em que já não estou em erro. Quando sei que errei, suponho que não erro ao identificar o erro. Enquanto erro suponho que não estou em erro. Pois quando reconheço o erro, como foi dito, suponho que não erro nesse reconhecimento. De tal modo que, quando estou no erro, quando reconheço o erro e quando não estou em erro - em todos estes casos, julgo não estar em erro. Vemos o erro sempre como qualquer coisa de passado. Qualquer coisa que já foi. Do ponto de vista em que olhamos para o erro julgamos ter já corrigido o errado, de tal modo que supomos estar certos ao apontar o erro. Mas é quando estamos em erro que não vemos que estamos em erro. Se, no entanto, estávamos em erro e agora não estamos, se umas vezes erramos e outras acertamos e se enquanto erramos não sabemos que erramos, e enquanto acertamos julgamos que acertamos tanto quanto o pensamos quando erramos, o que é que impede que erremos quando julgamos sobre os momentos de erro e de não erro?

domingo, 25 de novembro de 2012

Leituras de Fenomenologia

A propósito da consciência... Gewissen:

"[O Si] não é universal no conteúdo do acto, pois este, devido à sua especificidade, é intrinsecamente um caso particular: é na forma do acto que a universalidade reside."
Hegel, Fenomenologia do Espírito, §654

Não é neste ou naquele acto que reside a universalidade, ou seja, um acto particular, na medida em que é particular, aquilo que nele está em causa, não é passível de reconhecimento em forma de dever.

Tendemos a compreender isto como naqueles casos em que podemos dizer que há excepções. Aí negamos que o reconhecimento e a validação do acto resida na sua forma. Ou melhor, supomos que aí negamos a forma como dever ao dizermos que, por exemplo, não se pode afirmar que roubar é errado em geral. Pensamos que, ao dizer que há situações em que é um dever roubar estamos a dizer que cada caso é um caso, e que é precisamente na especificidade de cada caso que reside a validade ou o reconhecimento desta. Mas esta compreensão é equívoca.

Na verdade, nenhum reconhecimento de um dever pode residir num caso particular enquanto caso particular. O significado do acto não reside em nada de específico, nada de concreto, nada de puramente contido num caso. Mesmo quando dizemos que roubar pode ser um dever, estamos ainda a referir o caso particular a um significado, estamos, por exemplo, a dizer que, em certos casos roubar não é roubar, mas outra coisa. E este significado é formal.

Se de facto cada caso fosse um caso para nós não haveria nada nele que nos permitisse um reconhecimento, uma validade. O caso nem seria, de facto, um caso. Mas, encurtando a análise, mesmo superficialmente, nada do que é feito, analisado pelo seu conteúdo apenas, admitindo que isso seria possível, conteria alguma coisa como um dever. Pura e simplesmente não haveria nada a dizer do que se faz senão que foi feito.

O que eu posso dizer é que cada caso deve ser avaliado. E é formalmente que um caso é universal. Na sua forma ele pode ser reconhecido pelos outros como procedendo de uma convicção de uma consciência.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Leituras da Fenomenologia do Espírito

A propósito do Iluminismo:


No Iluminismo, a consciência regressa à certeza sensível porque todas as formas de consciência além da certeza sensível se mostraram inválidas. Esta prova é, de facto, uma prova negativa, mas a razão não é aqui capaz de outra prova, pois a verdade positiva da certeza sensível é, justamente, o conceito como objecto para a consciência. A sua verdade positiva é o ser-para-si própria imediato: cada consciência encontra a certeza absoluta de que ela mesma é, a certeza absoluta de que existem outras coisas fora dela mesma, e de que o seu ser natural é, tal como o das outras coisas, absoluto. Nesta forma de consciência que é essencialmente inteligência a razão regrediu à certeza sensível, tomando esta certeza como resultado assegurado na própria certeza que ela é imediatamente. Na verdade, tudo para o Iluminismo se compreende num mesmo sentido, isto é, como coisa real. No imediato da coisa real a consciência assegura-se da sua essência, e desse modo compreende-se a si-mesma e a tudo o que ela não é dessa mesma forma: como coisa real.

O apego ao mundo

A propósito do mundo...


“Assim é a morte em si mesma. É preciso que primeiro a sofras, antes que o espírito que vivifica possa vir. Quando, por vezes, um ou mais dias, me sinto cansado, abatido, incapaz de um esforço e – não se pode dizer? – quase aniquilado, suspiro para mim mesmo: «Oh! Dai a vida; eu preciso da vida!»; ou quando, quase ultrapassado nas minhas forças, me parece que já não posso mais; ou quando, por um certo tempo, me pareceu que estava votado ao fracasso e que me afundava no desencorajamento, então eu suspiro para mim mesmo: «A vida! Dai a vida!» Mas daí não resulta que o Cristianismo acredite que seja disso que eu preciso. Suponha que ele tem um ponto de vista diferente e que diz: «Não, morre por completo primeiro; o teu mal é estares apegado egoisticamente à vida, a essa vida a que tu chamas um tormento, um fardo: morre por completo!»”

Kierkegaard, Para um exame de consciência recomendado aos contemporâneos, XII, 418

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Leituras da Fenomenologia do Espírito

A propósito do Iluminismo (Die Aufklärung)


Ora, a Inteligência toma-se por universal e afirma que todo o sujeito é razoável. Mas ao envolver-se em lutas contra aquilo a que chama superstição, então ela só pode estar a atacar-se a si mesma. A sua essência, segundo o que ela mesma é explicitamente para si mesma, deve conter o “outro” em si mesma. 
Quando ela luta contra o “outro” é contra ela mesma que ela luta, porque ela é também esse outro. Ela não tem mais nada para atacar, excepto a sua própria negatividade. Isto mostra que ela é negatividade absoluta. Ou seja, quando afirma que todos possuímos uma razoabilidade universalmente distribuída, e depois se lança no combate contra formas em que não se reconhece a si mesma, a Inteligência deveria reconhecer que a universalidade da razoabilidade é isto e aquilo, outra coisa ou ela mesma. Afinal, somos todos razoáveis, mas isso não impossibilita todas as formas de não razoabilidade contra as quais a Inteligência se digladia. Que permaneçam formas contra as quais a Inteligência luta deveria mostrar-lhe que ela não diz nada quando afirma que a razoabilidade é universal. Nessa afirmação de universalidade a Inteligência não põe nada de novo, e por isso mesmo o conceito de razoabilidade não corresponde a nada que ela possa apontar. Na verdade, não só com isso não põe nada de novo, como não explica nada daquilo que já havia: a disparidade entre os indivíduos. 
Não há nenhum esclarecimento novo senão mais uma forma de consciência, que é a própria Inteligência, que assim se vem juntar à imensa diversidade de formas que existiriam mesmo que ela não reivindicasse a universalidade da sua própria forma.
Aquilo que é novo na Inteligência é precisamente a sua forma enquanto ela é consciência em si e para si. E, enquanto tal, ela é também um modo da consciência de si, e um modo racional, é o espírito mais característico da Cultura...

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O mundo e a cebola: polícias e cidadãos

A propósito de coisas do tempo...


No dia-a-dia há tantas camadas sobre as coisas, tantas camadas a dificultar a apreensão - que as tentativas para apreender o que está obstruído são invariavelmente compreendidas como sendo chatas, excessivas e irrelevantes. Se se tentar apurar o que está muito fundo, as pessoas chateiam-se. Por diversas razões. Muitas vezes, o próprio que está a escavar se cansa.

Vejamos um exemplo:

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Um Governo leva a cabo medidas tão impopulares que os próprios polícias desejam fazer greve e fazem manifestações. Toda a população está descontente.

É marcada uma greve geral...
No dia da greve, durante uma manifestação dos cidadãos contra as medidas do Governo instala-se a violência.

As pessoas que estão na manifestação atiram pedras e fogo aos polícias. Atiram muitas pedras. Os polícias suportam a situação durante mais de uma hora...

Até que é dada a ordem e os polícias avançam sobre a população. Avançam e perseguem ao longo das ruas adjacentes...

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Nisto dos polícias contra os cidadãos verifica-se aquilo que Kierkegaard dizia: o mundo julga o cristianismo como uma bebedeira, o cristianismo julga o mundo como uma bebedeira. 
Falar em polícias e em cidadãos corresponde a um modo de ver as coisas. Outro modo é falar de cidadãos em geral - que também os polícias são (mas não enquanto polícias, relembra-nos o ponto de vista anterior). Então o que há de verdade em cada uma destas palavras, "polícia" e "cidadão"? Porque não se tratam só de palavras.
Os polícias foram apedrejados, mas enquanto cidadãos sofrem com a austeridade tanto quanto (talvez não "tanto", porque de facto têm emprego) o resto, tanto quanto os que estão à sua frente.
Enquanto autoridade não se deve apedrejar a polícia - rejeitar a autoridade seria o quê? Enquanto há um cidadão por debaixo do polícia também não deve ser apedrejado.
Atingir o polícia, não é atingir os responsáveis. O polícia só cumpre ordens.
Enquanto o polícia defende um estado de coisas injusto, vencê-lo é necessário para atingir o Estado. Vencer este estado de coisas justifica apedrejar quem o defende.
O polícia é também cidadão: quando bate esquece-se de quem era antes de entrar ao serviço; quando bate já não é uma consciência. Quando bate ele é um instrumento. Mas isso não o desresponsabiliza (ele bem pode usar essa desculpa para si mesmo), mas perante nós, ele DEVE TER CONSCIÊNCIA. Se o polícia bate quando o cidadão está a exigir justiça, a justiça que o próprio cidadão que também é polícia reconhece - nesse momento o polícia é uma máscara, o cidadão que também é polícia é um hipócrita.
Se a luta é justa, então o cidadão que também é polícia não se deve apresentar ao serviço. Tudo o que decorrer de ele se apresentar ao serviço é já uma perversão da consciência.

E há ainda uma outra forma de ver as coisas: há polícias e há humanos.
Enquanto há polícias têm o dever de manter a ordem, o homem sofre violência pelo seu próprio bem, em nome da sua segurança. O polícia é o braço seguro do Estado que confina o homem protegendo-o contra a natureza, contra os seus iguais, e mesmo contra si mesmo.
Mas o homem é humano e, como tal, ser aprisionado não lhe retira a sua natureza. A polícia é o homem que exerce sobre os homens a autoridade do Estado em forma de força. O polícia é a força do Estado, e neste sentido, ele bate quando o Estado bate. É o Estado que age, em nome dos homens.
O homem que é polícia é também humano. Não gosta de apanhar. Chateia-se se lhe atiram pedras. Mas é o Estado que legitima, que justifica a defesa da autoridade agredida. A agressão à autoridade é crime.
Mas o homem que é polícia tem o ser polícia como uma possibilidade. Quando ele simplesmente cumpre a autoridade que é a do Estado, ele despiu-se de si mesmo enquanto homem. Não há autenticidade nisto, porque o humano é com possibilidades. Não bater é tão possível como bater. Cumprir ordens é tão possível como não as cumprir. O homem que é humano é anterior ao homem que é polícia, porque aquele que é polícia também é humano. E ao contrário daquilo que ele julga quando diz "Só cumpri ordens.", não deixou de ser humano quando vestiu a farda.
Deve um polícia ser julgado por crimes cometidos que foram ordenados por um superior? Deve. Mas a questão nem é essa:

O homem que é polícia também tem uma consciência, porque é sempre humano - e, enquanto é sempre sendo humano sabe por isso o que é correcto, se o perguntar a si mesmo sem abafar a resposta com máscaras (ex. polícia, cidadão, homem). Bater ou não bater? Esta pergunta já está obscurecida, porque o cidadão olha para o polícia, o polícia olha para o cidadão, e nem o polícia percebe que podia estar do outro lado, nem o cidadão percebe que podia ser polícia. Nenhum dos dois percebe que é humano antes de mais nada. Pode-se perguntar o que diz a lei sobre o que se passou. Pode-se perguntar o que diz o Governo. Pode-se perguntar o que diz o agredido. Pode-se perguntar o que dizem os que agrediram. E parece que todos foram, de um lado e do outro, agredidos.

Provavelmente ambos os lados não estão completamente certos, e é possível que não haja um meio termo mais certo - porque ocorra aqui um obscurecimento anterior daquilo que está em causa. É possível que os polícias estejam certos (em nome de serem polícias) e errados (em nome de representarem a justiça dos cidadãos), e os cidadãos certos (em nome de serem violentados) e errados (em nome de estarem sujeitos à lei), porque talvez ambos estejam a ver mal.


terça-feira, 13 de novembro de 2012

O senso comum enquanto forma do ponto de vista

A propósito de senso comum...


O senso comum é uma forma, ou melhor, uma estrutura que enforma o ponto de vista do humano...

Como forma que é pode ser ou não explícita para o ponto de vista. Na maioria das vezes, não é explícita. A sua eficácia (a sua pretensão de eficácia) sustenta-se precisamente da sua transparência. Mostra-se como doação das coisas elas mesmas, como se não houvesse mediação. O senso comum diz: a realidade é "isto". Ora, isto significa que o que aquilo que o senso comum é, não é esta ou aquela crença.

Nas aldeias do Tibete é senso comum que não se mata um animal que pode ser o nosso avô. Numa tribo de África é senso comum que o homem não tem nada que trabalhar. Numa tribo da Indonésia é senso comum que emprestamos a nossa mulher ao nosso vizinho que vem ajudar na horta. Numa tribo da ilha vizinha o desporto "nacional" é caçar seres humanos das outras tribos. Nas ilhas Fidgi é senso comum que devemos matar os nossos pais quando eles ficam debilitados. Em Portugal é senso comum que o homem e a mulher são iguais, que os idosos devem continuar a viver, e que não se devem caçar seres humanos. Numa tribo de filósofos é senso comum que se deve sempre fazer 3 ou 4 perguntas antes de concluir se o céu é azul ou roxo...

Como aquela peça de teatro em que o protagonista logo na primeira página descobre que vai morrer, e depois, ao longo do resto da peça, está sempre a perceber que vai "mesmo" morrer, e percebendo isso, de cada vez percebe que até aquele momento ainda não se tinha compenetrado "verdadeiramente" disso... nós somos assim. Os filósofos também têm o seu senso comum. O caso mais evidente é o apelo à dúvida, que é uma tradição entre os filósofos, mas que nenhum de nós faz realmente. Temos por dado que a dúvida já foi colocada por outros antes de nós e superada. Seguem-se tendências, tal como na moda. Os filósofos seguem modas, como é evidente. E o afã de estar actualizado até faz com que os termos de cada vez se uniformizem com a corrente do tempo, sob a pretensão de que já são familiares. Mas se se tentar dizer o que são realmente, respondem-nos com definições, conceitos vagos. Falamos de causa e efeito: mas o que é realmente a causalidade? Alguma vez alguém a viu? Temos o conceito, mas se forem como eu, ninguém sabe o que lhe corresponde. E assim falamos assim como se estivéssemos muito mais esclarecidos do que o agricultor analfabeto quando utilizamos conceitos como "erro", "causalidade", "verdade", "realidade"... e se nos apertarem muito dizemos o que a verdade é em Leibniz, em Descartes, em Aquino, em Platão e entretanto libertamo-nos da responsabilidade de dizer o que sabemos nós ser a verdade. Porque o mais provável é que não saibamos a que é que correspondem os nossos conceitos de verdade, realidade ou erro. Mas claro que o senso comum filosófico logo dirá: "o quê?, então não vês que o erro é quando percebes que te enganas?"

Hegel, Virtude e Retórica

A propósito de virtude no nosso tempo...

"Mas, [ao contrário da virtude do mundo antigo], a virtude que estamos a considerar tem o seu ser fora da substância espiritual, é uma virtude irreal, uma virtude apenas de imaginação e de nome, à qual falta o conteúdo substancial. O vazio da sua retórica ao denunciar o "modo do mundo" seria revelado, de uma vez por todas, se o significado das suas belas afirmações tivesse de ser determinado. No entanto, assume-se que este significado é alguma coisa de familiar. A solicitação de um esclarecimento sobre o que seja este significado familiar daria de caras com um jorro de frases ou com um apelo ao coração, o qual diz internamente esse significado - o que nos leva a admitir que a retórica da virtude é, de facto, incapaz de dizer qual é esse significado. A fatuidade desta retórica parece, de uma forma inconsciente, ter-se tornado uma certeza para a cultura do nosso tempo, uma vez que todo o interesse na totalidade dessa retórica, e a forma como é usada para puxar pelo nosso ego, desapareceu - esta perda de interesse expressa-se no facto de que ela já só produz um sentimento de aborrecimento."

Hegel, Fenomenologia do Espírito, §390

domingo, 11 de novembro de 2012

O que é que se opõe ao senso-comum???

A propósito de uma discussão que se teve... O que é o senso-comum e qual o seu oposto?

Este artigo resultou de uma discussão no Facebook

O senso comum não me parece ser o contrário do non sense, ou do senso incomum (se bem que se teria que perguntar o que é isto, se uma simples determinação estatística de algo com uma estrutura igual à do senso comum, ou se tem uma estrutura própria, mas isso é outra questão). A oposição ter-se-á que encontrar em determinações opostas - e não apenas na mera exclusão. O senso comum parece ter uma estrutura de conformação, antecipação, homogeneização que em tudo me parece opor-se ao conceito de espanto, admiração. Espanto com aquilo que, precisamente, na maioria das vezes, é comummente tido como dado.

O espantar-se de que falo não tem que ver com o espanto do senso comum... O senso comum espanta-se quando um cão aparece com seis patas, uma tartaruga com duas cabeças, quando, como diz Aristóteles, uma antecipação falha... O espanto de que falo, de que fala Sócrates, Platão, Leibniz, etc., tem que ver com o espantar-se disso mesmo que é regular. O espanto com isso que se mostra como dado, como “isto”, como o que é, como facto. Não é o espanto com uma orelha descomunal, mas o espanto com o haver orelhas. O espanto que a vida seja uma possibilidade - que aquilo que habitualmente se tem por ser um "isto", como diz Hegel, possa ser afinal algo de que não se faz a mínima ideia... Falo de um espanto que é justamente o oposto do senso comum.

O senso comum é o domínio do necessário, do que já se sabe. É o reino do se impessoal: é-se assim, faz-se assado, decide-se, vive-se no é assim. O olhar funde-se nas coisas. Esquece o acto de "ver", dilui-se no visto. Tanto assim que, por vezes, as próprias coisas se fundem na paisagem. Não vemos as coisas que estão lá todos os dias. Passamos por um caminho 10 vezes e deixamos de o ver. Quando algo se altera, quando a antecipação não é cumprida, a visão natural espanta-se, admira-se. "Pois nada espantaria mais um geómetra do que uma diagonal que se tornasse comensurável" (Arist., Met. 983a). Mas este espanto é um espanto aparente, porque o sujeito não se espanta com nada daquilo que tem por fixo.

O olhar natural não se compreende a si mesmo como possibilidade, e dificilmente compreende os pontos de vista diferentes do dele como possibilidades - senão, talvez, como possibilidades exóticas, esdrúxulas, abstrusas. Nós somos assim, todos. O senso comum não é um casaco que trazemos vestido até entrarmos para o curso de Filosofia. Não é algo que tenhamos despido simplesmente. Ninguém pense que está totalmente livre do senso comum, pois então estará mais exposto a ser envolvido nele. Se alguém julga ter-se posto totalmente fora do senso comum, então é provável que se tenha afundado demasiado nele para poder enxergar onde de facto está.

Qualquer coisa estranha num primeiro momento facilmente pode ser integrada. “Primeiro estranha-se, depois entranha-se” – disse Fernando Pessoa. Pode-se fazer Filosofia num completo senso comum. O senso comum diz: “isto é assim”. Mas se formos viver para o Afeganistão percebemos que muito do que tínhamos como “é o que há”, afinal era apenas uma possibilidade entre muitas. Tudo o que temos por certo poderia não ser assim. De facto, por que diabo hão-de ser as coisas como parecem ser?

Podemos espantar-nos, não com o que quebra a regularidade, mas com a regularidade. Mas mais do que isso: podemos espantar-nos de o nosso ponto de vista ser ele próprio apenas uma possibilidade. Podemos espantar-nos de pensarmos desta maneira que pensamos. O espanto, enquanto há espanto, é precisamente a suspensão do senso comum.

Não me parece que existam "teses do senso comum"... O senso comum não é um conjunto determinado de teses. O que em Portugal é senso comum, não o é no Afeganistão. O senso comum é uma estrutura, com certas determinações (categorias) específicas bem determinadas. Qualquer tese se pode tornar do senso comum. Poderia acontecer que o senso comum acreditasse que não existe matéria: como de facto acontece em algumas comunidades Orientais... o facto de uma tese, como a de Berkeley, ou qualquer outra, não ser senso comum é puramente acidental e poderia realmente ser de senso comum. Tudo poderia ser senso comum, mesmo aquilo que agora julgamos o mais estranho, e se pensamos de forma diferente, isso só significa que estamos no senso comum. Em Portugal achamos normal beijar um boneco de plástico no Natal, nas Igrejas e Capelas. Um hindu julgará tal gesto um pouco estranho. Mas nós achamos igualmente estranho que ele vá a templos ler papéis com frases sobre o destino. Um monge budista espantar-se-á tanto com os ritos cristãos, como um monge cristão com os ritos budistas. Um pensa que o outro é estranho. E podemos pensar em povos que têm modos de vida realmente exóticos. E eles pensariam o mesmo do nosso modo de vida. É esta a essência do senso comum: há um “é assim” normal, e há pessoas que se comportam de modo estranho, certamente devido às suas crenças absurdas. O senso comum dita: “isto é normal”, e logo julga: “que coisa tão estranha dormir em camas de pregos, ou furar os lábios, ou ir à missa, ou viver a correr, ou viver a andar, ou…”.

E qualquer coisa parva poderia ser facilmente integrada. Uma coisa muito parva agora é uma coisa que amanhã nos pode parecer normal. Até uma certa altura histórica era normal casar de vermelho, porque o vermelho significa fecundidade. Mas de repente, porque uma rainha casou de branco, passou a ser normal casar-se da forma que antes era parva. Agora todas as noivas se querem casar de branco, e se alguma se casar de vermelho é porque é estranha. De resto, o próprio senso comum pode tornar-se num constante desejo de inovação, numa aparente rejeição do senso comum. O senso comum é uma forma do ponto de vista em que se está, de tal forma que configura, de modo transparente, a perspectiva. Este ser transparente é uma determinação do senso comum. Por isso, de facto, o senso comum não se opõe à ciência, muito menos se opõe ao verdadeiro, nem sequer ao absurdo.


Antes de ser comum casar-se de vestido branco, era normal casar-se de vestido vermelho. Aquilo que chamamos absurdo é, como é bom de ver, chamado absurdo a partir do senso comum - ou seja, faz parte da sua estrutura. É de senso comum que há coisas parvas, como por exemplo eu, vivendo em Portugal, ir para a Escola vestido de kilt. Repito: o senso comum é uma “forma”, no sentido técnico do termo.

O senso comum não é igual em todo o lado. Com toda a certeza que há pessoas para quem o senso comum é: que as transfusões de sangue são pecaminosas... O senso comum não é isto ou aquilo. Nem é aquilo em que todos os ocidentais acreditam, nem aquilo em que todos os chineses acreditam, nem aquilo em que todos os humanos acreditam... O senso comum não é esta ou aquela tese, mas também não é uma espécie de eleição, do tipo: “ora vamos lá ver em que é que mais gente acredita”. De resto, se se tentar determinar o senso comum como aquilo em que todos acreditam, vai-se ver que não há nada disso...

O senso comum é uma "forma". Não há nenhuma tese que se oponha ao senso comum, enquanto senso comum... O senso comum com certeza diz que a tese de Berkeley se opõe ao senso comum. Mas o senso comum amanhã pode dizer exactamente o contrário. Aliás, o senso comum chega mesmo a afirmar com todas as suas garras que não quer ser senso comum (como já se mencionou). Pode-se ser contra o senso comum por senso comum. Pode-se querer ser diferente como toda a gente quer ser diferente. Aliás, uma pessoa pode ter um conjunto de crenças em que mais ninguém acredita e estar totalmente no senso comum.

Note-se que: precisamente o que não interessa é O QUÊ que o senso comum pensa ser senso comum. Note-se que: o que interessa é perceber que o senso comum é FORMAL.

O próprio “overthinking”, pensar demaisiado, ou, como se diz, racionalizar, é apenas uma manifestação do senso comum. É uma moda. Se se quiser ver como o overthinking pode ser uma moda comum, basta ler os diálogos platónicos, por exemplo, Protágoras ou Hípias Maior, ou, mais explicitamente, o Eutidemo. Mas também a Confissão Pública de Kierkegaard ou o Johannes Clímaco ou De Omnibus Dubitandum Est. O filósofo pode fazer filosofia como se faz filosofia. Vai na corrente do seu tempo. Pensa como é do seu tempo pensar. E pensa mesmo que nisso reside a autenticidade do pensar-se. Como se fosse preciso abrir o jornal filosófico do dia para saber como se há-de pensar. Todos conhecemos filósofos assim. E são, realmente, os mais lidos, mais conhecidos, mais defendidos: porque, precisamente, dizem o que se diz. Tem-se o "não necessariamente" na ponta da língua, como igualmente é moda ter na ponta da língua que "devemos ser nós próprios", e às tantas repetições a propriedade dos termos perdeu-se num dizer comum que todos assumem dado e ninguém perde tempo a apurar: fazem overthinking, mas de facto nem se apropriaram ainda dos seus fundamentos. O senso comum é uma forma de compreender tudo sem se ter apropriado disso (independentemente de se estar certo ou errado, porque aqui estar certo ou errado, na medida em que falta apropriação, nada significa). O senso comum é a forma do já decidido, do que se compreende em comum, do "é assim que as coisas são". É formal: as coisas são assim como são, porque delas se fala assim - sendo que esta estrutura é precisamente o que não se mostra, porque sendo uma forma, o senso comum é transparente, ou seja, apresenta-se como mostrando as coisas como elas são, como se o ponto de vista não fosse um ponto de vista e aquilo que se tem não fosse uma perspectiva, mas si as coisas elas mesmas. Como se tudo já tivesse sido apropriado, quando na verdade o senso comum nunca disso se apropriou porque nunca sentiu necessidade disso (como Platão bem analisa, por exemplo, no Alcibíades Maior - ver a partir de 109d). O senso comum apresenta como prova do que diz aquilo que, justamente, pretende provar ao dizer: "então vê lá se fazes desaparecer a bengala se te der com ela". Ou seja, se lhe pedimos que prove isso que diz ele limita-se a apontar para isto, pois a sua tese é exactamente a de que isso é auto-evidente.

O senso comum é, repito, formal, um εἶδος. E por isto as possibilidades que encontro para seus opostos são: o θαυμάζειν (espantar-se, admirar-se); ou então a ἐπιστήμη, no sentido aristotélico do termo (mas traduzir isto por ciência desvirtua completamente a coisa ela mesma porque pensamos na nossa ciência, e não naquele ponto de vista que Aristóteles tão bem determinou e concluiu que nós absolutamente NÃO temos). Mas há um aspecto a reter: o que nós podemos com certeza fazer é espantar-nos. Portanto, de entre aquilo que podemos supor estar nas nossas possibilidades, o contrário do senso-comum é o espantar-se. A ἐπιστήμη é algo que, pelo menos por enquanto, não podemos saber a que é que corresponde. Podemos estabelecer o conceito, mas não preenchê-lo.





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