quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Do sistema em que somos

A propósito de sistema...

Quanto a existir um governo na sombra, ou uma sombra no governo, eu não sei. A noção de sistema não é clara. Pode acontecer que, independentemente de haver, ou não haver, um comando organizado por detrás da aparente concorrência, e independentemente de existir, ou não existir, alguém a tentar controlar o mundo através de cordelinhos invisíveis (e não estou a dizer que não possa existir alguma coisa do género) - independentemente disso, dizia eu, pode acontecer que devamos considerar a existência pura e simplesmente de um sistema. Ora, o que significa existir um sistema? Não é APENAS que há uma organização - cabeça do sistema - a controlar o resto - o corpo do sistema. Isso pode acontecer, mas não é o mais relevante. 

O que significa fazer parte do sistema? Com certeza nós fazemos parte do sistema. Nós todos, mesmo esses que poderão, de alguma forma, tentar controlá-lo. A questão de fundo é que há um sistema. Isto é, na maioria das vezes tomamos certas coisas por dadas, certas regras por naturais, certos comportamentos com a mesma transparência da água que bebemos. Isto significa que nós todos somos parte desse sistema constituído de regras, leis, conceitos, preconceitos... mas o mais importante é que a grande maioria dessas regras são transparentes: como o ar. Quando aparece alguém a tentar chamar a nossa atenção para elas, é como se alguém tentasse apontar para o ar: nós olhamos, seguimos o sentido do dedo que aponta, e pensamos que essa pessoa estaria a apontar para a árvore ao fundo... temos muita dificuldade em ver o ar. Pensamos que nos estão a indicar as árvores. Então podemos pensar que nos estamos a libertar dessas regras, desses preconceitos, mas na verdade ainda estamos todos a falar das árvores e não do ar (dos preconceitos). Na verdade, mesmo que nós nos apercebêssemos de alguns dos conceitos com que nos regemos (e acredito que sim), nunca podemos estar certos de nos termos livrado de todos eles. Porque esses preconceitos, além de serem como o ar, são como a superfície do olho: é literalmente através deles que nós vemos as coisas. Como, então, os poderemos ver a eles? Podemos ver um ou outro... Surge então a ideia de nos libertarmos de uma cadeia que até pode ser real, mas escapa-nos de todo aquela cadeia mais profunda. Se considerarmos isto com atenção, perceberemos que é possível que nós mesmos sejamos parte do sistema num outro sentido: de forma concreta nós somos uma peça na engrenagem, fazemos a máquina continuar, nós somos o sistema. E o sistema é tão abrangente que cria em algumas das suas peças a ideia de que se libertaram do toldo: essas peças (esses indivíduos) têm a ilusão de que vêem melhor do que os outros e que, na verdade, estão livres para lutar contra o sistema. E nessa ilusão ganham o espírito necessário para continuar NO sistema. 

Cada gesto nosso é habitualmente perpetuação do sistema. Não vale a pena deitar as culpas aqui ou ali. Na maioria das vezes temos apenas de olhar para nós mesmos e reconhecer em nós o sistema. Porque tomamos o modo de vida que temos por natural, por REAL. Não nos passa pela cabeça que a compreensão que temos das coisas seja uma POSSIBILIDADE. O sistema integra tudo e engole mesmo aquilo que poderia ser-lhe mais antagónico. Veja-se o Natal, o cristianismo que, na sua origem, é o grito do ser humano afirmando que "não somos do mundo", mas que o sistema converte em mundo. O cristianismo que surgiu como grito contra o mundo tornou-se uma arma do mundo: as compras de natal, etc. Tudo de tal modo camuflado que nos escapa que, em cada "oferta" que fazemos estamos sendo parte do mundo, do sistema. Ou veja-se outro exemplo: as revoluções. Muda um regime e surge outro, supõe-se que se revolucionou uma sociedade, mas na verdade apenas se limpou um ponto que se tornara impertinente mantendo-se toda a restante máquina: mas se virmos bem, mesmo esse aspecto que se eliminou apenas aparentemente se eliminou. Deu-se-lhe um novo aspecto. Isto é comum nas revoluções: pensa-se que se mudou o sistema, mas apenas se deu, com essa ilusão, força ao sistema que agora pensa estar limpo... e nós somos esse sistema. Mesmo que não exista nenhum governo sombra, nem ninguém a controlar os governos, nem nenhuma organização a puxar os cordelinhos: há sistema. E quando aparece alguém que verdadeiramente (se é que isso é possível) se libertou do sistema, NÓS olhamos para esse alguém como se fosse um louco, um alien, assim como olhamos para quem dorme numa cama de pregos, ou deixa todos os seus bens e se dedica ao humanitarismo, ou vive entre nós sem verdadeiramente ligar ao consumo. 

Gritamos contra os capitalistas e contra as grandes multinacionais enquanto vamos ao cinema ou depois de um jogo de futebol, mas se vemos alguém deixar tudo e ir viver para o deserto dizemos que é doido. Criticamos a falta de ética dos outros enquanto ocupamos os nossos tempos livres a discutir a falta de ética dos outros (não haveria alguma coisa mais ética para se fazer do que discutir a falta de ética dos outros?) Nós vamos ao café criticar o consumismo, mas quando encontramos um sem abrigo que o é voluntariamente, que já foi professor catedrático, que vive debaixo de um cartaz de publicidade gigante, e lê Dostoiévski, Kafka, Kant a quem vai ao café, o que é que nós pensamos dele senão que deve ser maluco? 

Enfim, tomamos a vida que levamos como "é assim" e a ideia que há este ou aquele factor concreto que nos manipula é apenas uma forma de nos deixarmos afundar mais no sistema sem sabermos.

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