“Filho de Laertes, criado por Zeus, Ulisses de mil ardis!
Então para tua casa e para a amada terra pátria
queres agora regressar? Despeço-me e desejo-te boa sorte.
Mas se soubesses no teu espírito qual é a medida da desgraça
que te falta cumprir, antes de chegares à terra pátria,
aqui permanecerias, para comigo guardares esta casa;
e serias imortal, apesar do desejo que sentes de ver
a esposa por que anseias constantemente todos os dias.
Pois eu declaro na verdade não ser inferior a ela,
de corpo ou estatura: não é possível que mulheres
compitam em corpo e beleza com deusas imortais.”
Respondendo-lhe assim falou o astucioso Ulisses:
“Deusa sublime, não te encolerizes contra
mim. Eu próprio
sei bem que, comparada contigo, a
sensata Penélope
é inferior em beleza e estatura quando se olha para ela.
Ela é uma mulher mortal; tu és divina e nunca envelheces.
Mas mesmo assim quero e desejo todos os dias
voltar a casa e ver finalmente o dia do meu regresso.
E se algum deus me ferir no mar cor de vinho, aguentarei:
pois tenho no peito um coração que aguenta a dor.
Já anteriormente muito sofri e muito aguentei
no mar e na guerra: que mais esta dor se junte às outras.”
Homero, Odisseia, V, 203-224
[…] a
ilustre Calipso, encostando a face aos dedos róseos, e considerando
pensativamente o Herói, soltou estas palavras aladas:
- Oh
Ulisses muito subtil, tu queres voltar à tua morada mortal e à terra da
Pátria... Ah! se conhecesses, como eu, quantos duros males tens de sofrer antes
de avistar as rochas de Ítaca, ficarias entre os meus braços, amimado, banhado,
bem nutrido, revestido de linhos finos, sem nunca perder a querida força, nem a
agudeza do entendimento, nem o calor da facúndia, pois que eu te comunicaria a
minha imortalidade!... Mas desejas voltar à esposa mortal, que habita na ilha
áspera onde as matas são tenebrosas. E todavia eu não lhe sou inferior, nem
pela beleza, nem pela inteligência, porque as mortais brilham ante as Imortais
como lâmpadas fumarentas diante de estrelas puras.
O facundo
Ulisses acariciou a barba rude. Depois, erguendo o braço, como costumava na
Assembleia dos Reis, à sombra das altas popas, diante dos muros de Tróia,
disse:
- Oh Deusa
venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope te está muito
inferior em formosura, sapiência e majestade. Tu serás eternamente bela e moça,
enquanto os Deuses durarem: e ela, em poucos anos, conhecerá a melancolia das
rugas, dos cabelos brancos, das dores da decrepitude e dos passos que tremem
apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra através da escuridão e
da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possuis as luminosas certezas. Mas, oh
Deusa, justamente pelo que ela tem de incompleto, de frágil, de grosseiro e de
mortal, eu a amo, e apeteço a sua companhia congénere! Considera como é penoso
que, nesta mesa, cada dia, eu coma vorazmente o anho das pastagens e a fruta
dos vergéis, enquanto tu ao meu lado, pela inefável superioridade da tua
natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a Ambrósia divina! Em oito
anos, oh Deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria; nem dos teus verdes
olhos rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impaciência; nem, gemendo
com uma dor, te estendeste no leito macio... E assim trazes inutilizadas todas
as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não permite que eu te
congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfregue o corpo dorido com o
suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de Deusa
possui todo o saber, atinge sempre a verdade: e, durante o longo tempo que
contigo dormi, nunca gozei a felicidade de te emendar, de te contradizer, e de
sentir, ante a fraqueza do teu, a força do meu entendimento! Oh Deusa, tu és
aquele ser terrífico que tem sempre razão! Considera ainda que, como Deusa,
conheces todo o passado e todo o futuro dos homens: e eu não pude saborear a
incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas
ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh Deusa, tu és impecável: e
quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia da
sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas
mortais: - “Foi culpa tua, mulher!” - erguendo, em frente à lareira, um alarido
cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os
Deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que eu
mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e
deslumbre, e por isso ame dum amor que constantemente se alimenta destes modos
ondeantes, como o lume se nutre dos ventos contrários!
Eça de
Queiroz, A perfeição
A
felicidade, a ser algo, há-de ser um estado de perfeição, de correspondência
plena, de completude. O que é problemático pois o que é perfeição e completude
no humano não é claro, desde logo porque se se exige correspondência, então já
se reconheceu a existência de um hiato, de uma alteridade no interior do
próprio humano, de tal modo que podemos imaginar qualquer coisa como um ser
perfeito entediado.
Se um ser perfeito ainda pode ser chamado de humano está em
dúvida, como está em dúvida se a perfeição pode ser entediante. Porque a
perfeição, a ser perfeição, há-de conter em si, como constituinte de si, a
satisfação consigo mesma. Ou então não é perfeição. Isto é importante porque
mostra que a perfeição ou completude do humano não há-de estar em certas
determinações que normalmente são associadas à felicidade.
A imortalidade poderia
ser acompanhada de infelicidade. O excesso de ouro poderia ser acompanhada de
infelicidade. A abundância de comida, de riquezas, de beleza, de juventude, de
prazer pode ser acompanhada de infelicidade.
Há ainda uma outra questão a fazer: a perfeição do humano resume-se à felicidade? Ou pode acontecer que a felicidade não nos chegue? O livro O Admirável Mundo Novo mostra um mundo possível em que todos são criados felizes... mas aquele mundo não nos parece ser apetecível... Porquê?
Sem comentários:
Enviar um comentário
discutindo filosofia...