Ora bem, usa-se falar de altruísmo quando alguém funda o seu
comportamento no outro (alter, alterum). Explicitamente, o altruísmo consiste
em fazer o bem aos outros, pelos outros. Subjacente está, claro, o
amor-próprio. A ideia de que no altruísmo há uma negação de si, ou do amor
próprio, não resiste ao exame. Na verdade, o altruísta "realiza-se"
no outro. Ao ser-para-o-outro ele obtém satisfação.
O verbo
"realizar" é bem aplicado aqui, porque "realizar" deriva do
latim "res", que significa "coisa". Realizar é "fazer
coisa". Realizar aponta para a noção de completude, e é isso que as
pessoas entendem por altruísmo, pois desejam completar-se nesse "ser-para-um-outro".
No entanto, isto já coloca em evidência um conjunto de mal-compreendidos que
podem ocorrer. Antes de mais porque aquilo que conhecemos como "algo
completo" são, habitualmente, as coisas do mundo que nos rodeiam,
sobretudo as coisas que fazemos. É assim que dizemos que completámos uma
tarefa, que acabámos uma casa, que terminámos um exercício. Mas esta
compreensão corre o risco de ser enganadora porque tem subjacente a
possibilidade de lidar com o humano ao modo dos entes mundanos. Ou seja, assume
à partida que o sujeito é como uma casa, uma obra, um exercício que está em
processo de construção, que esse processo é externo, como no caso da casa à
qual se vão juntando peças até, finalmente, se encontrar concluída. Mas se
aplicarmos essa imagem ao humano, então temos que admitir que só quando morre é
que o humano está completo. Portanto, isto chama a atenção para uma
consideração inautêntica do humano porque o que cada um refere quando diz que
se sente "completo", ou "mais completo", não é nada do
género "morri". Não. No caso do humano é o contrário. Quanto mais
completos estamos mais vivos nos sentimos e na verdade mais coisas temos para
fazer. Nunca estamos mais completos do que quando sentimos que temos à nossa
disposição possibilidades de execução. Ora, uma casa está completa precisamente
quando não há mais nada a fazer...
Por outro lado, quando se diz que o altruísta vive em função
do outro esquece-se que, se analisarmos bem, é precisamente o contrário. O
altruísta retira o seu sentido, o seu prazer, a sua "felicidade"
precisamente do outro. Na verdade, se o altruísta não tivesse outros para
ajudar, provavelmente ou se suicidaria, ou teria de arranjar outra coisa para
fazer. Na verdade, na maioria das vezes, o altruísta simplesmente é altruísta
como poderia ser outra coisa qualquer. Assim como uns encontram o seu sentido
na carreira, outros encontram no “outro”, e isto parece ser suficientemente
aleatório para podermos dizer que o altruísta pode ser tão alheado, tão
inautêntico como o egocêntrico que só pensa em si.
Além disso, o altruísta
acaba por usar o outro para-si. O outro é como um instrumento que o altruísta
usa para se sentir bem, para estar de consciência tranquila, para se conseguir
perdoar a si mesmo de algo que fez de errado, ou simplesmente para “comprar” um
lugar no céu ou no paraíso.
Estas considerações feitas atrás não significam, no entanto,
que o “altruísmo” é errado ou imoral, como se estivesse aqui a afirmar que
fazer bem aos outros é pecado… Aquilo para que eu quero chamar a atenção é que,
na verdade, aquilo que se faz expressamente tanto pode ter um sentido como um
outro sentido. Ou seja, o altruísmo pode ser uma opção autêntica de alguém,
pode-se ser autenticamente altruísta – ou, inversamente, pode-se ser altruísta
em fuga de si mesmo, pode-se ser com os outros apenas porque não se consegue
estar consigo próprio…
Este assunto é muito complexo. Envolve diversos temas e
exigiria um estudo cuidado sobre a natureza do humano – que, obviamente, não pude
fazer aqui…
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