sábado, 19 de maio de 2012

Esboço filosófico - o que é ser humano?

A propósito de uma definição de humano...


[TEXTO MUITO BREVE SOBRE A DEFINIÇÃO DE "HUMANO"]

O que é o ser humano?

A pergunta sobre o que seja isto de "humano" é muito antiga. Já os clássicos a colocavam e procuraram encontrar-lhe respostas.

Todos nós supomos ter uma ideia mais ou menos clara sobre aquilo que é o humano. E podemos facilmente fornecer pistas ou mesmo uma ou outra definição mais ou menos complexa.

Contudo, se começamos a pensar no assunto ele enrola-se, torce-se e retorce-se, redobra-se, embrulha-se e vão-se-nos as certezas por terra.

Mas a questão é difícil não só pelo aspecto mais evidente, o de que é difícil e complexo definir o humano, mas também porque nos é difícil perceber o que significa "definir", sobretudo quando aplicado ao ser "humano".

Porque à medida que fazemos caminho na indagação, percebemos que, para definir o "humano", nos exigimos escavações anormalmente árduas, que não seriam necessárias para definir uma galinha.

Normalmente, uma definição faz-se pela indicação do género e a junção da diferença específica. Dizendo de uma forma fácil, uma definição faz-se indicando a diferença que distingue um tipo específico (uma espécie) dos demais tipos do mesmo género. Esta forma de definição é conhecida pelo seu criador, Aristóteles, e chamada aristotélica. Mas há uma exigência nela que é muito importante: ela deve indicar a característica limitadora, essencial, fundamental, daquilo que é o ente que pretendemos definir.

Ora, há muitos tipos de definição e não cabe neste pequeno esboço considerá-las todas. Mas devemos ter em mente que uma definição deve convir ao definido e mais nada que ao definido. Ou seja, quando definimos um determinado segmento da realidade devemos fornecer uma definição tal que esta envolva todos os entes desse segmento, mas não represente nenhum ente que não pertença a esse mesmo segmento. Se eu defino o que é "mamífero", então a definição apresentada deve contemplar todos os mamíferos (não deve existir nenhum mamífero que não seja compreendido por ela), sem contemplar algum ente que não seja mamífero.
Se eu disser que "os mamíferos são animais com cabeça", então estou a dar uma definição demasiado abrangente, pois há animais que têm cabeça mas não são mamíferos. Isto significa também que o "ter cabeça" não é uma característica específica dos mamíferos. Notar que a definição, propriamente dita, é "animal com cabeça", pois a asserção "um mamífero é um animal com cabeça" já é uma proposição e enuncia um juízo, a saber, a de que os mamíferos têm cabeça.
Se eu disser que "os mamíferos são animais vivíparos", estou a dar uma definição que não é suficiente, pois o ornitorrinco é um mamífero, mas não é vivíparo.

Não interessa que aquilo que escapa à definição seja raro - se a definição deixa escapar algo, ou se, pelo contrário, envolve algo que não deveria, seja muito ou pouco, então não é uma boa definição.

Uma definição comentada desde os tempos antigos é de que "o homem é um animal bípede sem penas". É fácil mostrar que esta definição não é própria, pois há animais bípedes implumes e que não são humanos. Diógenes, de forma bem cínica, terá mesmo depenado uma galinha exibindo-a dizendo: "eis o humano".

Mas, apesar de tudo, o que é fundamentalmente insuficiente é a capacidade de tal definição para limitar, para dar os limites daquilo que faz de um ente ser humano. De facto, mesmo que não existissem cangurus, nem galinhas depenadas, a verdade é que não se poderia dizer ainda assim que o humano é "um animal bípede sem penas". É que podemos imaginar muito facilmente que um animal fosse bípede, não tivesse penas, e não fosse humano. Ser humano não tem nada que ver com ter ou não penas.

Na verdade, quando procuramos a definição de humano, pelo menos de um ponto de vista filosófico, não procuramos apenas uma característica entre outras que, pela força do acaso ou da necessidade, tenha calhado apenas ao humano. Não. Para definirmos o ornitorrinco indicaríamos apenas uma característica física específica dessa espécie, distintiva face a todos os restantes animais. Mas sobre o humano queremos saber o que é isso que significa ser-se humano. Não queremos apenas saber a diferença entre o corpo humano e o corpo do ornitorrinco, e é fundamentalmente isto que nos força a escavar mais quando se trata de definirmos o ser humano.

Todos nós concordamos que o humano é um animal. Mas o que faz do humano um animal diferente dos outros? Sabendo o que difere entre o humano e os restantes animais, resta ainda saber o que é que, sendo característica específica do humano, faz dele ser o que ele é enquanto humano. Não imaginamos que um ente fisicamente igual aos homens seja humano apenas pela igualdade física - pois não? Podemos muito bem imaginar um mundo onde os entes fisicamente idênticos aos homens que conhecemos não fossem humanos. Ou basta-nos que seja fisicamente homem para o considerarmos humano? Com um cão podemos dizer que sim. Mas a "humanidade", ou seja, essa característica que faz de um ente um humano, não é algo de físico, nem de biológico (a respeito disto recomenda-se a leitura de fábulas, bem como das Viagens de Gulliver, particularmente o país dos Houyhnhnms).

Então é disto que andamos à procura, ou é sobretudo disto: "o que faz de um ente ser humano?"

A definição mais conhecida é, suponho, a de "animal racional". Ora, esta definição tem muitas limitações, muitas falhas, mas isso não significa que seja tão má como também muitas vezes se supõe. Contudo, levanta muitos problemas, não só porque parece simplesmente adiar o problema para a definição de "racional" - pois o que é isso de ser racional? - mas ainda porque não é óbvio que a racionalidade seja essa tal característica essencial que faz de um ser um humano, ou que ela seja apenas uma consequência, ou ainda, que ela seja apenas uma coincidência. Não vamos abordar as questões mais importantes em torno desta definição, notamos apenas algumas das suas dificuldades mais fáceis: não seria possível ser-se humano sem racionalidade?; e, não sendo, não poderá acontecer que a racionalidade seja apenas uma consequência do ser-se humano, sem ser ela mesma a essência daquilo que é ser humano?; ou não poderá ser o caso de que ser racional seja uma condição sine qua non (sem a qual) não se pode ser humano, mas não uma condição suficiente para se ser humano?

O facto de todos os humanos serem isto ou aquilo, e mais nenhum ente ser isso, não significa que se encontrou a essência do ser humano (ou como quer que lhe chamemos).

Se encontrássemos outros seres racionais no Universo eles seriam necessariamente humanos?

Afinal, o que é que faz do macaco sem pêlo um ser humano?


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Ver, também: 
A Vida e a Morte Segundo Aquiles: Notas para uma Análise da Compreensão de Aquiles Acerca da Natureza e da Condição Humanas, Revista Portuguesa de Filosofia,Natureza Humana Em Questão I, 
Tomo 68, Fasc. 3, 2012, pp. 375-390


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10 comentários:

  1. Eu estava à procura de um definição de ser humano. O que encontrei neste site foi a definição de definição e de como dificil e a definição de ser humano. Por isso acho que este site não ajuda em nada. Obrigada..... por nada.

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    1. Ora, muito bem! A ideia é, justamente, mostrar a dificuldade da questão, ainda que apenas em esboço. Se se procura uma definição fechada, fixada, terminológica, pode-se encontrá-la numa enciclopédia ou manual, já para não falar da Wikipédia ou qualquer dicionário. Não é esse o intuito aqui.

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  2. Achei muito bom e foi bastante proveitoso para o trabalho que me foi pedido. Neste texto esta bem claro tudo o que eu pensava mais não conseguia expressar em palavras.

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  3. Só sei de uma coisa:O Ser humano pode não ser Humano.

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  4. porque e importante problematizarmos o sentido do humano????
    o que significa ser um ser humano ???
    porque essa questao nao e tao simples quanto parece a primeira vista?????

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  5. O ser humano é todo aquele dotado de conhecimento e razão,pois que vai diferenciar dos outros seres.

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    1. A determinação "dotado de conhecimento e razão" não parece ser suficiente. Como é evidente, pode haver no Universo outros seres inteligentes, dotados de conhecimento e razão, para além do ser humano. Portanto, seja o que for que faça dos homens seres humanos, não pode ser isso. Ou seja, ainda que ser dotado de conhecimento e razão seja uma condição necessária para se ser humano, não parece ser uma condição suficiente.

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  6. O ser humano não pode ser definido de forma alguma , é uma questão quase impossivel de obter a resposta ,cada um irá adotar para si aquilo que melhor se encaixa com sua comprienção a respeito daquilo o que é o ser humano , não existe resposta alguma que seja capaz de definir o que somos .
    E sempre iremos continuar com essa pergunta " O que é ser humano ? " .
    Nos não somos nada , mas podemos ser tudo .
    O ser humano é um ser magnifico , mas não é nada , é com " um grão de areia , comparado ao mar " , quase insignificante .
    É isso o que é o ser humano , capaz de ser .
    E não é absolutamente nada .

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  7. Uma das perguntas centrais da antropologia filosófica permanece muito atual em pleno século XXI: Quem é o homem? ou O que é o homem? Se você fosse cobrado a dar uma definição ou mesmo uma característica, a mais precisa possível sobre o homem, qual você daria? Seria a definição aristotélica, “animal racional”, a definição de Pascal, “caniço pensante”, quem sabe a de Kierkegaard “relação que se relaciona consigo mesma” ou a de Marx, “conjunto de relações sociais” ou ainda, se achar melhor, a definição cristã “imagem e semelhança de Deus”. Gosto muito da definição dada por Scheler “biologicamente o homem é um erro da vida; metafisicamente, é alguém que é capaz de dizer ‘não’, um asceta da vida”. Enfim, tenho certeza de que se você procurar com atenção encontrará uma que mais se aproxima com sua visão de ser humano. Mas, será que ela dá conta de toda complexidade humana, aqui lembramos duas velhas e boas canções de Raul Seixas: Metamorfose Ambulante e Ouro de Tolo.

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