quarta-feira, 23 de maio de 2012

Esboço sobre os pecados capitais

A propósito de pecados mortais...

Meramente um esboço sobre a primazia dos pecados capitais

Os sete pecados capitais são, por vezes, mal entendidos e desconsiderados.

Podemos legitimamente questionar por que a gula é pecado capital enquanto o assassínio não, mas os pecados capitais não devem ser desconsiderados - ainda que se seja não-crente.

O problema com os pecados é que levam à morte - no sentido em que quem os pratica perde a sua vida, se desvirtua.

Mas, a maior parte dos pecados que podemos pensar isoladamente são de modo a permitir, com alguma facilidade, que o perpetrador perceba o erro que cometeu, tome conhecimento de que agiu mal, se arrependa e deseje melhorar de futuro.

Uma pessoa de boa índole pode encontrar-se exposta a uma coincidência funesta de acontecimentos, de tal modo que o mal lhe surja como opção. A ocasião faz o ladrão, mas muitas vezes as circunstâncias forçam o agente, criam condições propícias ao pecado, por assim dizer.

Um bom pai de família pode ser levado a roubar, e todos nós podemos imaginar situações que nos apelariam ao assassínio. Um assassino de circunstância pode muito bem perceber que agiu mal, que não deveria ter assassinado, arrepender-se, ou mesmo que não veja outra opção que lhe fosse viável, pode comiserar-se pelo acto que praticou. A realidade está cheia de exemplos destes, e muitas vezes os outros não percebem isso apenas porque não se conseguem colocar no lugar de quem praticou o acto perverso.

Ninguém é tão forte que resista sempre a todas as calamidades sem decair. A decadência pode ser facilitada e/ou forçada. Os casos de mães que matam pelos filhos, de pais que roubam pela família são bem conhecidos.

Mas se olharmos com atenção, podemos ver por detrás de cada acto perverso um pecado mortal. O que assassina agiu provavelmente sob ira, o que roubou sob avareza... Aquele que rouba sob a avareza não é aquele que rouba apenas para matar a própria fome. Mas a ira assume por vezes um aspecto que a torna mais aceitável aos olhos humanos. Desculpamos o pai que mata o violador da filha, desculpamos a mulher despeitada que se vinga do marido. Enfim...

O problema com os pecados mortais, no entanto, não é só o facto de levarem a muitos actos perversos. A gula leva a que alguém possa roubar sem necessidade, gaste sem precisar, use abastadamente aquilo que faz falta reservar ou que poderia valer a vida de outros. Mas não é só aqui que está o problema dos pecados mortais.

O problema com os pecados mortais é que dizem respeito à própria forma como alguém compreende o mundo. Enquanto que o assassínio é um acto, mais ou menos isolado, a gula é uma forma de compreender. Aquele que está sob gula não se vê como prevaricador, tem muita dificuldade em desligar-se da própria gula para se considerar a si mesmo e à sua vida sem a gula que enforma a sua própria visão das coisas. Assim, aquele que padece de um pecado mortal, na maioria das vezes desconhece-o, não tem consciência disso, nem de qualquer necessidade de alterar o seu comportamento. Sem consciência do pecado nunca pode haver verdadeira libertação dele.

Mas o problema não fica por aqui. Os pecados mortais são de tal ordem que aquele que se deixou conduzir por eles, mesmo que mais tarde acorde e venha a tomar consciência da sua possessão (o que é muito difícil, na medida em que vê as coisas sob o prisma dos pecados mortais que o dominam), terá muita dificuldade em conseguir desligar-se deles, pois eles correspondem à própria forma da sua vida, muitas vezes criaram hábitos que se confundem com a sua própria forma de viver. Os vícios instalados sob a soberania de um pecado mortal dificilmente são percebidos, mas quando percebidos dificilmente são vencidos. Esta dificuldade, por seu lado, tende a fazer permanecer o pecador na ilusão de que nada de errado se passa com ele, de que na verdade são os outros à sua volta que não o compreendem, não o aceitam. Ou seja, a dificuldade em resistir aos vícios instalados, conjugada com os prazeres imediatos obtidos pelo gozo vicioso e com uma visão toldada pelo próprio ministério do pecado mortal - tudo isto junto, torna o agente cada vez mais resistente a qualquer mudança, a qualquer liberdade.

Por isso os pecados capitais são propriamente chamados mortais. Porque aquele que está dominado por eles se encontra sob o seu poder que retira a vida das mãos do próprio sujeito da vida. O sujeito não tem mão na sua vida, porque não tem a possibilidade de a decidir livre da própria visão imposta pelo pecado mortal, e porque a sua vida tende a ser cada vez mais completamente ocupada pelos vícios de que, ou não tem consciência de serem vícios, ou, tendo-a, não tem como deles se libertar.

A vida afunda-se e perde-se, de facto. Não se trata de uma metáfora aqui. A vida perde-se de facto. A vida não é mais sua. É uma morte contínua.

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