Desde sempre ouvi esta
expressão: “a pensar morreu um burro”.
Quando era gaiato a minha
mãe dizia-mo muitas vezes, normalmente para reforçar a ideia de que eu deveria fazer
menos perguntas! A visão prática e vivida da minha mãe sempre me meteu inveja.
Mas, então, longe de me aquietar, a sua revelação suscitava-me nova questão: “mas
sobre o quê pensava o burro?”
Na sua ingenuidade, o
gaiato que eu era nesses dias pensava que, se o burro morreu a pensar, o caso
deveria ser de monta! Mas o que poderia ser assim tão importante na vida de um
burro? A situação parecia-me esdrúxula: “mãe, de onde vem essa história?”
A minha mãe não sabia – mas
sabia que pensar demasiado sobre um assunto tem a desvantagem de deixar passar
a maré!
Ora, a expressão a pensar morreu um burro parece vir do
famoso caso do burro de Buridano.
Tanto quanto se sabe, o paradoxo não
foi inventado por Buridano (1300 - 1358), nem se sabe ao certo por que lhe é
atribuído, mas o facto é que há séculos que os filósofos se lhe dirigem como de Buridano.
O paradoxo, se lhe quisermos chamar assim, é o seguinte:
Um burro está com fome e
sede na mesma proporção, e tem à disposição um recipiente com água e outro com
palha, sendo que cada um destes recipientes está à mesma distância do burro.
Apesar do burro se
encontrar extremamente esfomeado e sequioso, não tem nenhuma razão para
preferir a água ou a palha, visto ter a mesma intensidade de fome e sede em
simultâneo e a palha estar tão afastada quanto a água.
Desta forma, o burro acaba
por não se mover nem para a água, nem para a palha, e acaba por morrer de fome
e sede.
Outras versões substituem a
água por mais palha: estando o burro equidistante de dois fardos de palha
igualmente apetitosa, apesar de esfomeado, acaba por não escolher nenhum e
morre de fome.
O paradoxo consiste no
facto de o burro ter a disposição aquilo que o poderia salvar, bastando-lhe fazer
uma escolha. No entanto, é precisamente essa escolha que ele não faz.
Não é certo se esta
história foi atribuída a Buridano para exemplificar alguma espécie de crítica
que ele fizesse a outros filósofos, ou se foi a sua posterioridade que,
satirizando-o, lhe atribuiu o caso.
Seja como for, Buridano
parece ter defendido que, perante um dilema moral, a vontade escolhe sempre o
melhor – sendo que, se não o faz é porque decidiu por desconhecimento (daquilo
que estava propriamente em causa) ou por impedimento (externo à vontade). De
algum modo, Buridano pensa com Platão que só se decide mal por ignorância (ou
imposição externa).
Segundo Buridano, a vontade
humana pode e deve adiar a decisão até estar na posse dos aspectos relevantes
para a decisão. Perante um dilema moral, a vontade deve decidir-se apenas se e
quando estiver na posse de todos os elementos necessários para garantir uma boa
decisão.
Claro que isso implica
diversas dificuldades, dos quais nomeamos apenas os mais óbvios: 1) como saber
quando se está na posse daquilo que verdadeiramente é importante para tomar a
decisão?; 2) como fazer nos casos em que o agir está sob condicionamento, de
tal forma que um tempo útil para a acção pode transitar antes de se ter reunido
todos os elementos essenciais?
O problema 1) é obviamente
importante, mas pode também ser levar-nos ao 2). Ou seja, se ficarmos indefinidamente
à espera de estarmos certos de que estamos na posse de todos os elementos
importantes, podemos deixar passar o prazo. Por outro lado, mesmo quando
finalmente supomos ter reunido tudo quanto é importante, podemos ainda estar em
erro e, precisamente, podemos estar a decidir sob ignorância daquele aspecto
fulcral que nos faria tomar uma decisão completamente diferente.
Assim, sempre que, para uma
decisão, existe um contínuo de informações a chegar ao decisor, este fica
suspenso sem decidir, necessitando de pesar todos os novos dados. Desta forma,
quando há um fluxo contínuo de informações sobre um determinado dilema moral, o
agente não consegue decidir-se em tempo útil – daí que acabe por morrer sem
decidir-se.
Este problema recorda-nos o
conhecido aforismo de Pitágoras: Ὁ βίος βραχὺς, ἡ δὲ τέχνη μακρὴ, ὁ δὲ καιρὸς ὀξὺς
– “A vida é curta, mas a ciência é longa, e o momento oportuno estreito” (Afor., I, 1). O conhecimento necessário
para que a decisão seja a mais adequada a uma situação da vida pode ser
demasiado longo – e este longo pode ter mais do que um sentido –
do que a curteza da vida permite. Por
outro lado, mesmo que a vida fosse suficientemente longa, pode acontecer que o tempo útil de decisão não dê tempo de
tomar uma decisão cabalmente abalizada. O burro não só corre o risco de morrer
de fome antes de escolher o fardo de palha a que se dirigir, como corre o risco
da palha apodrecer antes de ter chegado a uma decisão esclarecida.
O problema imediatamente
evidente é, então, saber se a necessidade de esclarecimento não deverá ser
limitada pela necessidade de agir em tempo útil.
O caso do burro parece,
então, ser uma sátira a Buridano como se lhe fosse objectado que, se um humano
ficar eternamente à espera de estar
na posse dos elementos fundamentais para tomar uma decisão, esta não será
tomada em tempo útil (no limite, não será tomada em tempo de vida).
Por outro lado, o paradoxo
ilustra a posição dos deterministas que supõem que a vontade se determina
sempre em função dos condicionantes, internos (como a fome, o desejo, as
preferências, etc.) e externos (a disponibilidade das coisas, as suas
características, as limitações envolvidas, etc.). Ou seja, segundo o
determinismo a vontade funciona como uma espécie de balança na qual vão sendo
colocados vários pesos, de um lado e do outro, até que um dos lados vence.
No caso do burro acontece
que nada faz a balança pesar para um lado ou para o outro, de tal modo que ele
não decide nunca. O mesmo acontece se houver uma chegada contínua de novos
dados que, à vez inseridos, ora num dos lados da balança, ora no outro, fazem
com que a balança permaneça estável sem se inclinar decisivamente para um dos
lados.
O caso do burro mostra que,
numa situação como essa, a vontade teria que, de algum modo, decidir por si
mesma, ou nunca se decidir.
Os defensores do determinismo consideram, de facto, que
se fosse possível uma situação exactamente como a do burro, a vontade jamais se
decidiria. Apenas há decisão quando os elementos a favor de um dos lados pesam
mais que os favoráveis ao outro.
Os defensores do livre-arbítrio dizem, por seu lado, que
a capacidade de decisão reside na própria vontade enquanto tal, podendo esta
decidir até mesmo contra o que os estímulos ou condicionantes sugeririam.
Segundo os defensores do livre-arbítrio, o caso do burro mostra
que a decisão não reside nos elementos considerados, mas na vontade e/ou na
razão (dependendo do filósofo que considerarmos).
Enfim, o caso do burro pode
levar-nos a muitos outros problemas (por exemplo, a relação entre a vontade e a
razão, o papel de cada uma na decisão, etc.) e a resolução dos poucos aqui
apresentados é já de si, também, muito complexa, discutível, polémica.
Porém, o problema em si não
vem de Buridano, mas é muito anterior ao século XIV. Na verdade, mais de 1600
anos anterior. Podemos encontrar a indicação do mesmo em Aristóteles (384 a.C –
322 a.C):
Aristóteles, De Caelo, 295 b 32-34:
καὶ τοῦ πεινῶντος καὶ διψῶντος σφόδρα μέν, ὁμοίως δέ,
καὶ τῶν ἐδωδίμων καὶ ποτῶν ἴσον ἀπέχοντος· καὶ γὰρ τοῦτον ἠρεμεῖν ἀναγκαῖον
“or of the man who, though exceedingly hungry and thirsty, and both
equally, yet being equidistant from food and drink, is therefore bound to stay
where he is”, De Caelo, In De
Caelo; De Generatione et Corruptione. By J. L. Stocks and H. H. Joachim. New
York: Oxford University Press.
“também aquele que tem fome
e sede em excesso, mas homogeneamente, e da comida e da bebida está igualmente
afastado: certamente também será forçado a ficar parado”
Porquê, então, falar-se de um burro e do burro de Buridano?
Bem, em português o nome de
Buridano parece lembrar burro, o que
não acontece nas restantes línguas.
Não deixa, no entanto, de
ser uma pergunta interessante.
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