quinta-feira, 10 de maio de 2012

House: episódio 18 da temporada 8

A propósito de Ciência e Religião...

Neste episódio há um rapaz que se encontra adoentado e o House torna-se o seu médico.

Os sintomas que o afectam, e a história a que pertence, fazem com que o rapaz se torne um paciente peculiar, digno do interesse do House.

Na tentativa de curar o paciente, a equipa dos médicos engana-se várias vezes, como é normal na actividade destes médicos. O facto de errarem tantas vezes leva a mãe do paciente a começar a duvidar da "eficácia" da ciência.

No início do episódio, a mãe tem um espírito científico e sente-se ofendida quando um médico supõe que ela possa ter crenças antiquadas. É engenheira, não uma feiticeira. Mas pertence a um povo muito antigo, com crenças muito antigas.

O avô do paciente acredita nos rituais dos seus ancestrais e está convencido de que o seu neto está possuído por um espírito maligno.

Entretanto, sucedem-se os erros dos médicos, aumentando a desconfiança da família do doente. Dão-se acontecimentos estranhos, como o miúdo levitar na cama do hospital. Os olhos incautos rápido são atraídos pela sugestão do paranormal, mas o House tem uma explicação perfeitamente "racional". Segundo ele trata-se de um truque, e para o provar ele próprio executa o truque, levitando à frente de toda a equipa.

É importante que o episódio não desvende este aspecto: deixa que o espectador decida. Não é dito a quem vê o episódio se tudo se tratou de um truque, talvez orquestrado pelo avô, ou de uma acção de um espírito maligno.

Perto do final o House tem uma das suas epifanias e pensa ter resolvido o caso. Mas, depois de tantos fracassos da equipa médica, a mãe do paciente está disponível para deixar que o avô execute o ritual ancestral.

O ritual ancestral não interfere directamente com os tratamentos, de forma que não prejudica a saúde, nem os efeitos dos tratamentos médicos, por isso não há base legal para negar à família a execução do ritual. Para os médicos trata-se de um absurdo, mas a mãe prefere tentar todas as hipóteses que tem ao seu alcance para salvar o filho.

O diagnóstico do House, por sua vez, também não convence a sua equipa. As probabilidades estão contra ele. Apenas 7 pessoas em todo o mundo sofrerão da doença que o House pretende ter identificado. Isto são 7 para 7 mil milhões!!! A estatística diz que o House, muito provavelmente, está errado. Mas o tratamento que o seu diagnóstico indica resume-se à administração de um comprimido para as dores de cabeça, o qual irá ser suficiente para debelar a doença do miúdo. Este medicamento é, portanto, inócuo, sem efeitos perversos consideráveis, portanto não há razões de peso para não administrar o fármaco: não poderá ser prejudicial, mas há uma probabilidade, ainda que muito reduzida, de curar o paciente.

O House tem um entendimento diferente. Ele sabe que a família do paciente decidiu realizar o ritual. Ora, se o medicamento for administrado e curar o paciente, a família deste irá assumir que foi o ritual, e não o procedimento médico, que na verdade curou o miúdo. Por isso proíbe a sua equipa de administrar qualquer tratamento que não estejam convencidos de que irá funcionar. O House sabe que eles não confiam na sua hipótese e, por isso, na verdade está a proibi-los de administrar o medicamento que ele próprio sugeriu.

Durante a realização do ritual pelo avô, o paciente tem uma recaída e, enquanto o ritual continua, um dos médicos decide administrar o medicamento - sabendo que, mesmo no caso do House estar errado, não resultará da administração do fármaco qualquer efeito perverso.

Temos, então, esta curiosa circunstância - tal qual a previra o House: o avô cumpriu o ritual; o medicamento foi administrado; o paciente curou-se.

Perante este sucesso, os médicos tendem a considerar que foi o medicamento sugerido pelo House que curou o paciente - apesar de admitirem que a hipótese tinha uma probabilidade muito reduzida. Os familiares consideram que foi o ritual que curou o doente - apesar de se tratar de um procedimento no qual a ciência não vê um potencial real.

Um dos médicos resume: tudo o que podemos dizer é que dois procedimentos foram executados e que UM DELES curou o paciente.

Com isto, o médico está a assumir uma atitude "empirista". Mas, de um ponto de vista lógico teríamos ainda de admitir que nem sequer sabemos se a cura se deveu a um dos procedimentos executados. Poderia ter sido muito bem a intervenção de Deus, que, como muito bem se sabe, gosta de colocar a mão por baixo do menino e do borracho.

Note-se que o pensamento do avô não é menos causal que o dos médicos. Os médicos confiam na causalidade que têm por evidente, tal como o avô. Este acredita que umas rosas no chão e uma reza adequada afugentará os espíritos malignos (enquanto causa dos sintomas). Os médicos acreditam que uns produtos químicos eliminarão a causa patológica dos sintomas.

Aquilo que cada sujeito identifica como causalidade deriva da observação da sucessão entre fenómenos. O médico observa que a administração do químico X é sucedida pelo desaparecimento do sintoma Z. O ritualista observa (sim, também ele saberá relatar casos) que a execução de um certo procedimento Y é sucedido pelo desaparecimento do mal Z. O médico citará bibliografia de referência, o ritualista fará referência aos antepassados e talvez, também, a literatura específica (que quase sempre a há também nestes casos).

Ora, no caso deste episódio temos simplesmente que se observa X e Y, sendo a sua mútua ocorrência em simultâneo sucedida por Z. Que é que, verdadeiramente, neste caso nos permite escolher a explicação médica, ou a explicação ancestral, visto que ambas recolhem um número de testemunhos em seu favor? Note-se que, na verdade, nem sequer há algo que comprove cientificamente que estávamos perante a doença que o House diagnosticou. Tudo quanto podemos dizer é que o paciente foi curado, sendo que não se tem comprovação empírica para decidir qual dos dois procedimentos provocou a cura e, deste modo, também não temos indícios empíricos que confirmem a doença. Recordemos que houve apenas 7 casos em todo o mundo, de modo que, para todos os efeitos, neste caso há mais testemunhos a confirmar a validade do procedimento ancestral do que a do procedimento médico adoptado que apenas seria adequado na eventualidade de tal doença extremamente rara ter sido a causa dos sintomas.

A questão de fundo é, pois: há, de facto, algum meio que não envolva juízos prévios, ou preconceitos, que nos permita decidir qual dos dois actos - o acto médico, ou o acto tradicional - teve eficácia curativa? Teríamos alguma base para aceitar que foi o procedimento médico aquele que curou o paciente, se não partirmos, precisamente, do pressuposto de que os procedimentos médicos têm uma eficácia real e os rituais não?

2 comentários:

  1. Muito interessante a o enredo, e muito Clara, a maneira Como exposto o episódio, levando à questão final. (Estou sempre curioso com estas dicotomias).
    Não terei bases/referências concretas para dar Uma resposta específica. Apenas testemunhos de paradigma.
    Ao iniciar curso na área de saúde, tive oportunidade de entender certos conceitos fundamentais, tais Como: a saúde é ausência de doença. Está foi Uma das definições de outrora. (Nem sei se é Uma definição em si, por causa de ausência implicar negação).
    Acontece, que a Organização Mundial de Saúde (OMS), achou necessário rever o conceito de saúde. E Durante os meus tempos de estudante, a Saúde é um estado de equilíbrio dinâmico, em qué a pessoal pode realizar actividades de Vida diárias, de acordo com as suas capacidades.
    Esta divagação toda, serve para quê? Para dar a entender que os paradigma da área da saúde, se adaptam. Ou Seja, no episódio qué é referido, em certo momento, local, cultural, se consideraria, sem hesitar, que os resultados seriam exclusivamente devido à terapêutica convencional (medicina/fisiologia/microbiologia, etc). Eu próprio, sempre tive essa concepção.
    Acontece, qué, mudando de tempos, e de locais, culturas, é possível agora vivenciar Uma conciliação de terapias convencionais, e não convencionais, em conjunção.
    Veja-se o caso da disciplina "Toque Terapêutico", leccionada em certo curso de Enfermagem, por alturas de 2011, e que preconizava os princípios de Reiki!
    Pacientes que tenho visto seguirem tratamento hospitalar, por vezes pretendem abordagens alternativas (qué não interfiram com o curso de tratamento), e médicos são consultants, e encorajam os pacientes a realizar "o que lhes faça sentir melhor".
    Em certos casos, nem a medicina convencionais, nem a alternativa intervêm, e certas patologias resolvem espontaneamente.
    Esta, é a consideração qué posso dizer, hoje em dia. À data de publicação do Artigo de Luís Mendes, sobre episódio Dr House, a Minha resposta teria sido muito diferente.
    Espero que esclareça, ou que cause curiosidade.

    Ps.: Peço desculpa pelos erros ortográficos. Este dispositivo tem dicionário temperamental

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    1. Muito obrigado pelo comentário, André.
      O teu ponto é muito interessante ao sublinhar o contributo cultural. Pois é, muitas vezes, aquilo que "funciona" depende das crenças básicas dos sujeitos envolvidos.
      Hoje em dia há uma tendência crescente para aceitar práticas não convencionais no âmbito da medicina. Penso que isto tem 2 razões: 1) o facto de, como se sabe, o efeito placebo ser real - assim, se uma pessoa pode ser curada por um efeito de placebo, então esse procedimento é útil, por isso é normal que a medicina aceite essas práticas não convencionais, pois elas podem elicitar a cura, mesmo se tudo não passa de um efeito da crença do sujeito, e não do procedimento ou substância em causa; 2) o distanciamento cada vez maior entre a ciência - neste caso, a medicina - e o senso comum; a ciência é tão complexa que o senso comum se vê incapaz de sequer entender a relação de causalidade que está patente e, por outro lado, as pessoas já não confiam na "autoridade" dos especialistas. Assim, como não percebem a ciência/medicina, nem confiam na autoridade dos cientistas/médicos, tendem a virar-se para outras formas de autoridade, como seja a tradição, a religião, etc.
      Tudo isto pode ter efeitos positivos: pois até um comprimido de farinha pode elicitar a cura por via do efeito placebo e, se as pessoas se curam, isso é positivo. Mas, por outro lado, pode ter consequências culturais muito prejudiciais a longo prazo. Veja-se o crescimento dos movimentos anti-vacinação, que tendem a fragilizar a imunização da comunidade, como já se verifica em vários países ocidentais, incluindo Portugal, o que pode permitir o surgimento de surtos epidémicos de doenças que já estiveram erradicadas e que agora voltaram a matar nos últimos anos. Tudo isto pode levar a consequências muito más. Podemos voltar à idade média com estas ideias "flat-earth", e isso pode custar milhares de vidas.

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