domingo, 29 de abril de 2012

Problemas de tradução na missa!

A propósito de "para todos"...

O Papa declarou que considerava que a tradução para as diversas línguas da missa cria algumas dificuldades. A notícia pode ser lida no Catholic News Service.

Quando a missa passou a ser celebrada na língua vernácula a Igreja teve de traduzir o latim tradicional, e claro que uma tradução traz sempre complicações.

O Santo Padre considera que a expressão "por todos", utilizada na missa, antes da Comunhão, não traduz fielmente as palavras latinas (de quando a missa era dita em latim), nem as palavras que a Escritura (em grego) apresenta quando, na última Ceia, Jesus diz que o seu sangue será derramado. Bento XVI  "had ordered Catholics to use the more literal translation, 'for many'": "derramado por muitos".

A questão em causa na notícia acima referida prende-se com o momento que antecede a Comunhão, no qual o presbítero deve citar as seguintes palavras de Jesus:


"Tomai, todos, e bebei:
este é o cálice do meu Sangue,
o Sangue da nova e eterna aliança,
que será derramado por vós e por todos,
para remissão dos pecados.
Fazei isto em memória de Mim."

Missal Romano

Contudo, aquilo que o sacerdote dizia em tempos de missa em latim era o seguinte:


"Accipite et bibite
ex eo omnes: Hic est enim calix Sanguinis mei novi et æterni
testamenti, qui pro vobis et pro multis effundetur in remissionem
peccatorum. Hoc facite in meam commemorationem."

Missale Romanum, Editio typica tertia, 2002

Ou seja, a expressão "por todos" pretende traduzir o latim "pro multis". No entanto, multis não significa todos, mas sim muitos.

Finalmente, o texto litúrgico é uma espécie de síntese do que é dito em diversos textos canónicos como São Marcos, São Mateus e São Lucas, quando Jesus comunga com os seus discípulos a sua última ceia. As palavras aqui em causa, por todos / pro multis, são apanhadas de São Marcos e de São Mateus. Cingimo-nos a São Marcos por ser o mais antigo.

A Vulgata, em Mc 14:24 apresenta:

"et ait illis hic est sanguis meus novi testamenti qui pro multis effunditur"

Entretanto, a Vulgata é, ela mesma, uma tradução do original grego, o qual, no referido versículo, nos diz:

καὶ εἶπεν αὐτοῖς, Τοῦτό ἐστιν τὸ αἷμά μου τῆς διαθήκης τὸ ἐκχυννόμενον πὲρ πολλῶν.
The Greek New Testament, ed. B. Aland,  et all., 
Deutche Bibelgesellschaft, fourth revised edition, 13th printing, Stuttgart, 2007

O texto original diz, portanto: πὲρ πολλῶν. A tradução para latim é, de facto, pro multis, ou seja, por muitos.

A tradução do grego é, pois, a seguinte:

"E disse-lhes: Este é o meu sangue do pacto que é derramado por muitos."

Ou seja, realmente, o Santo Padre está certo, a tradução correcta é por muitos. A Escritura afirma que Jesus disse ter derramado sangue por muitos (e não por todos). A distinção é importante em termos interpretativos, semânticos e teológicos. A implicação mais imediata é que parece que Jesus não afirmou ter derramado o seu sangue por todos nós. A suspeita de que Jesus pode não ter morrido por todos, mas apenas por parte de todos levanta, obviamente, alguns problemas.

Por outro lado, de um ponto de vista estritamente histórico, não há evidências suficientes de que Jesus tenha proferido estas palavras, ou as suas correspondentes em aramaico. Mas esta é uma outra estória.


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