A propósito de, causa e efeito...
A questão é complexa e tem de ser compreendida correctamente, o que, só por si, pode ser difícil. A sua resolução parece ainda ser mais complexa. Mas, afinal, que se passa com a "matéria" ao nível subatómico?
Bem, o nosso acesso habitual ao mundo que nos rodeia é um olhar preocupado com a lida quotidiana e os nossos afazeres, de tal modo que estamos equipados de forma a obviar "rugas" da realidade. Tal como um quadro que parece perfeito, mas que quando nos aproximamos revela traços de antiguidade, tinta estalada, manchas nas cores. A nossa apreensão do mundo e do universo tem uma forma: a forma do nosso acesso ao mundo e ao universo. E esse acesso é naturalmente linear: nós assumimos naturalmente que as coisas acontecem numa ordem sucessiva, e segundo uma ordem causal mais ou menos restrita. Os próprios mitos, as magias dos xamãs, etc., são formas de pensar causalmente o mundo. E, quando ainda hoje se atribuem os trovões a uma qualquer divindade, há tanta causalidade aí como na lei da gravidade ou do atrito: só mudam os "agentes".
Contudo, a ordenação e organização do mundo num esquema único e universal, não contraditório nem paradoxal, levou muito tempo e exigiu o esforço de muitas civilizações. O desenvolvimento de métodos cada vez mais eficazes de procurar relações entre causas e efeitos cada vez mais próximas originou aquilo a que chamamos ciência: hoje a causa da chuva já não é o pensamento irado de uma entidade acima dos homens, mas relações muito "mais estreitas".
A compreensão da questão que começamos por colocar, começa desde logo por aqui. Será que se avançou alguma coisa nesse estreitamento entre causa e efeito? Quando eu afirmo que a causa do fogo foi o fósforo estou ainda longe do mecanismo estreito de ignição. O fósforo é uma causa ainda longínqua. O fósforo é composto por materiais, os quais interagiram com outras substâncias, originando fogo. O próprio termo "fogo" designa o comportamento de certas substâncias, a interacção entre matéria e energia, de forma muito estreita e difícil de compreender, ao contrário da facilidade com que dizemos "fogo". Ora, à medida que vamos explicando cada vez mais processos, vamos decompondo um processo, noutros mais pequenos. Transformamos a relação entre a causa X e o efeito Y (X-->Y), num número maior de relações entre causas e feitos (X=a+f; a-->b;b-->c; f-->g;g-->h; c+h=Y). Assim, no início pensávamos que X originava Y, mas percebemos que X é, na verdade, a combinação de "a" e "f", sendo que estes desencadeiam uma sucessão de eventos que desembocam em "p".
Ora, antes de percebermos o que este "avanço" científico significa, devemos questionar o que não significa. a) Não significa que existe um mundo exterior e independente da experiência que, no início mágico e saltitante, se tornou rigoroso e sistemático - tanto quanto sabemos, o mundo são "se tornou" científico, por assim dizer. b) Não significa que existe um sujeito conhecedor, capaz de experienciar, o qual no início não tinha uma compreensão causal, mas que evoluiu no sentido de a adquirir.
Então, que é que significa? Bem, significa que existiu um desenvolvimento (independentemente de se tratar de um progresso ou não) da nossa compreensão, mas não necessariamente uma alteração do nosso modo de compreender. Tanto quanto sabemos, o mundo não criou novas leis, não alterou as suas forças. Tanto quanto sabemos o ser humano não começou, de repente, a desenvolver um olhar causal sobre o mundo. Enfim, aconteceu que o ser humano, aparentemente dotado de um olhar que procura relações entre eventos, estabeleceu cada vez mais relações entre eventos no mundo. Ou seja, o ser humano, procurando relações de causa e efeito, detectou cada vez mais relações deste tipo e desdobrou, assim, relações em cada vez mais relações. É possível que o ser humano tenha, por isto, passado a olhar para o mundo de uma nova maneira, de uma maneira científica, mas isso não significa que o modo dos xamãs não fosse também um modo causal de ver as coisas.
Acontece, contudo, que por mais que desdobremos um acontecimentos em acontecimentos mais simples, por mais que desdobremos cada vez mais o mundo, continuamos sempre a embater nessas categorias: causa e efeito. E, por mais que desdobremos uma causa em muitas causas, por mais que identifiquemos milhentas fases intermédias, que são elas mesmas causas e efeitos, ficamos sempre com este salto: de uma causa para um efeito. Ora, de um ponto de vista estritamente filosófico, um salto é um salto: há, de facto, um hiato entre uma causa e um efeito. Ou seja, para explicarmos como é que X origina Y, teremos que desdobrar X ou Y, mas ficaremos novamente com alguns X que originam Y, e o problema é, precisamente, o facto de que um X "origina" Y. No final da cadeia ficaremos com reacções básicas, as quais não temos como explicar (e se as explicarmos ficaremos com outras mais básicas, essas sim, inexplicáveis). Portanto, coloca-se a questão: por que é que as coisas são assim, e não de outra maneira?
Depois surge outro problema. Para que o mundo possa ser consistente, essas relações têm que ser explicadas por sistemas gerais que integrem a vasta gama de eventos possíveis. Assim falam de leis gerais e de forças fundamentais. Note-se que, quando os cientistas identificam 4 forças fundamentais que gerem todo o universo, permanece a questão: porquê essas quatro e não outras quaisquer? Mesmo que os cientistas consigam, um dia, fazer resumir essas 4 a uma única força, da qual essas quatro são meras apresentações, a questão permanece: porquê essa força? Houve, no entanto, um aspecto que passou despercebido: é o nosso modo de acesso ao mundo que tem esta forma. Será que, no que ao mundo "diz respeito", é necessária uma razão? Se o mundo tem uma ordem física interna, é necessário identificar uma causa para isso? Será necessário que o mundo exista por uma razão? Não estaremos aqui a fazer corresponder a noção geral de causa, a um certo tipo de causa, a "intenção"?
Resumindo os avanços do nosso inquérito: não é certo que o acumular de identificações de causa e efeito corresponda a um estreitamento entre as causas e os efeitos (há aí ainda um salto, que não parece sanável, entre causa e efeito); o acumular de "saber" científico não prova que o mundo seja científico, nem que o nosso paradigma científico seja o verdadeiro (a ciência é um modo de inquirição, de explicação, de saber humano - é o homem que conhece).
Eu posso encontrar 10 explicações para um mesmo evento, e todas elas "explicarem" esse evento. A questão não é encontrar explicações, mas sim encontrar explicações que possam ser generalizáveis e que, depois de generalizadas, podem ser testadas (tem de se conseguir formular testes em que seja possível verificar-se a confirmação e a refutação. Se não há forma de refutar uma teoria, então ela não é científica. A gravidade é uma hipótese científica, não porque é continuamente confirmada, mas porque somos capazes de a testar. Não é o facto de explicar as coisas que faz dela uma teoria científica. Eu poderia afirmar que as coisas caiem para a Terra porque a Terra é um deus invejoso, que quer possuir muitas coisas. Afirmaria, então, que podemos ver isso por todo o lado, a qualquer hora: tudo aquilo que a Terra vê e quer, ela atrai-o, mas aparentemente não gosta de balões com hélio. Mas não teria como testar esta teoria. Se as teorias resistem aos testes sem serem refutadas, permanecem válidas. No entanto, se não forem refutadas, se forem continuamente verificadas, não se prova que sejam "verdadeiras". Uma lei permanece aceite enquanto não se encontrarem suficientes casos que a contradigam. Mas enquanto ela permanece verificada, nada nos garante que não possa vir a ser refutada. Na verdade, a ciência evoluiu assim: com constantes refutações de teorias, e as refutações foram responsáveis por grande parte do nosso conhecimento actual.
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http://discutirfilosofiaonline.blogspot.com/2011/10/o-gato-de-schrodinger-iv.html
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
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