segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O gato de Schrödinger IV

A propósito de, linearidade...

A ideia veiculada tantas vezes, por crentes das mais variadas áreas, de que compete aos críticos refutar as Ideias por eles apresentadas, é um erro. Mas trata-se de um erro quer nos encontremos a discutir ideias religiosas, quer nos encontremos a discutir ideias filosóficas, quer nos encontremos a discutir ideias científicas. O facto de uma ideia ser apresentada conforme a uma aparente verificabilidade empírica, que lhe garantiria uma validade científica e, portanto, uma evidência científica por si só, não elimina a necessidade de se apresentarem os indícios de evidência propriamente ditos. Portanto, não compete aos críticos refutar as ideias científicas entretanto apresentadas, pelo contrário, compete aos que apresentam tais ideias fornecer as condições de refutabilidade das mesmas. Ou seja, o facto de se apresentar uma sugestão de teoria não significa que essa teoria é válida à partida, competindo agora aos seus críticos refutarem-na. Pelo contrário, deve determinar-se que testes deverão ser feitos por forma a esclarecer as condições que refutam a sugestão em causa. Se uma hipótese não pode ser refutada, então não é científica. Pode pertender ao domínio da fé: o crente sustenta a existência de Deus, não porque se tenha provado a sua existência; a existência de Deus jamais pode ser refutada e, nesse sentido, não temos evidências científicas significativas da sua existência. Tome-se nota disto, pois é muito importante: ter evidência científica não significa que a realidade suporta e confirma uma hípótese; ter evidência científica significa que, tendo nós discriminado testes que delimitam condições em que uma hipótese/teoria pode ser refutada, esta resiste ao teste.

Ora, a linearidade é um modo do nosso acesso. A forma do nosso olhar é linear. Não imaginamos que as pessoas que vemos apenas existem enquando estão ao alcance dos nossos olhos. Não imaginamos que, enquanto estamos a trabalhar no escritório a nossa casa deixa de existir. Enfim, a existência linear dos entes que vêm ao nosso encontro é formal e caracteriza a nossa forma de compreender o mundo. No entanto, se um teórico do estilo solipsista afirmasse que as coisas só existem enquanto ele as vê, nós não teríamos nenhuma forma de lhe provar o contrário. Por mais vídeos, fotos, imagens em tempo real que lhe mostrássemos, ele poderia alegar que tudo não passaria de uma ilusão. Na verdade, se alguém afirmar que as coisas se passam tal e qual o filme Matrix descreve, não temos como lhe provar que está errado. Felizmente, não temos necessidade de nos convencer de que o mundo fora de nós existe. Aceitamos passificamente que os objectos que guardo no frigorífico existem mesmo antes de eu abrir a porta. Mais do que isso, eu acredito que todos estes entes com que eu lido tiveram uma existência linear muito antes de eu os ver. Da mesma forma, compreendo que tive pais, estes tiveram os seus pais, e assim sucessivamente. As montanhas formaram-se ao longo dos milénios e até o Planeta teve uma origem. Podemos remontar cada vez mais. Esta remissão ao infinito formal é, por sua vez, um caracter da nossa forma de aceder ao mundo. A linearidade "esbara" no infinito. Não podemos conceber o infinito extenso, no entanto, formalmente, é o infinito que "delimita" o espaço e o tempo linear. Potencialmente, posso recuar infinitamente. Potencialmente, o espaço poderá ser infinito. Note-se que aqui nos referimos à forma da nossa compreensão. De nenhum modo devemos concluir daqui que o mundo é infinito ou que existe desde um tempo infinito. Na verdade, a nossa incapacidade para conceber o infinito (dado) leva-nos a sugerir que há um começo para todas as coisas.

Nós não concebemos o infinito como um todo dado, apreendido por extenso. É uma impossibilidade da nossa compreensão. Concebemos apenas um infinito formal. Por outro lado, lidamos com "coisas" que são entes dotados de características próprias. Cada uma teve o seu início. Ora, tomado como um todo, embora não o possamos apreender, imaginamos que o Universo devesse ter tido um início, um começo, tal como os demais entes que encontramos. O problema é que, os restantes entes que vêm ao nosso encontro tiveram um começo que posso identificar potencialmente entre outros entes que os precederam. Assim, as maçãs vêm das macieiras. Os bebés vêm das mães, originaram-se pelo contacto entre gâmetas masculinos e femininos, etc. Portanto, os entes intra-universo tiveram origem noutros entes intra-universo. Mas, que dizer do Universo? O universo não deve ter vindo de outros entes intra-universo, como se se tratasse de uma maçã.

O mito do elefante e da tartaruga é paradigmático do problema que aqui está em causa. O pensador hindu poderia defender que a terra está em cima de um elefante e que o elefante está em cima de uma tartaruga. No entanto, o problema permanece, pois se estabelecemos um início, parece necessário tê-lo estabelecido em algum ou alguns entes, os quais necessitarão, eles próprios, de um início. Assim, os mitos estabeleceram deuses criadores que, entre outros deuses, foram responsáveis pela criação do universo. Esses deuses poderiam eles próprios ter a sua origem noutros deuses, mais antigos, por exemplo, Titãs. Mas alguma vez se chegará a um ou a alguns deuses que terão sido, eles próprios, o início. Seja Ea, Urano, ou Jeová. E este é o problema: para explicar um início temos que estabelecer "coisas" que deram "origem" a um tal começo. E esta foi a nossa forma de pensar natural, muito antes de a ciência ter percebido que não existem gerações espontâneas a partir do nada, que tudo evolui e nada se perde nem se cria. Portanto, estamos a falar do nosso modo de compreender as coisas: linear. Mesmo o senso comum que, ainda hoje, acredita na "geração espontânea" de alguns insectos, não sugere que tais insectos se geram do nada, mas sim de determinados produtos (ou seja, apenas aceita que um insecto possa ter origem em coisas que não insectos da mesma espécie, continuando a defender que estes insectos são criados, por exemplo, dos produtos que depois irão comer - como algumas pessoas que acreditam que o milho gera gorgulho). Note-se que continuamos sempre a referir-nos ao nosso modo de compreender e que, o facto de compreendermos as coisas assim, não significa que a "realidade" seja assim.

A experiência mental de Schrödinger torna-se subitamente (na nossa perspectiva) ainda mais reveladora. O facto de concebermos um modo de ser natural para um qualquer ente, não implica que esse ente se comporte desse modo. Por outro lado, não podemos compreender coisa alguma, sem que esta compreensão nos seja dada pela forma do nosso compreender.
Dissemos que a linearidade enforma o nosso acesso. Isso não significa apenas que nós, habitualmente, admitimos a linearidade. Significa que o nosso acesso é de tal forma constituído que a linearidade faz parte das suas características gerais: qualquer que seja a coisa acessível, o que dela nos chega deve acomodar-se à forma do nosso acesso, independentemente do que essa coisa seja em si mesma. Não significa apenas que na maioria das vezes supomos que as coisas são lineares. Significa que, quando acedemos a algo (apreendemos, compreendemos, percepcionamos, etc. - não iremos distinguir tais conceitos, até porque a identidade de cada um não é consensual) acedemos nesta forma de aceder. Também não significa que tudo quanto vemos, lhe apreendemos claramente a sua sucessão, a sua origem, a sua génese, a sua filogénese, etc. Significa que tomamos as coisas como integrando uma história, mesmo quando a desconhecemos. Eu posso não saber, de facto, a história deste computador que agora utilizo, mas apreendo-o e concebo-o, desde início e sempre que teorizar sobre o assunto, como tendo percorrido um caminho até mim: neste sentido, concebo-o como tendo uma história, uma origem e um percurso. Alguns dos entes que vêm ao meu encontro no mundo são do género deste computador, cuja origem está, para mim, associada a uma função, a qual lhe traça um destino: "para quê". Os entes deste género são fruto da actividade humana, e nós temos um geito aguçado para os identificar. Quando vemos um garfo não supomos que nasceu de uma bananeira que dava garfos. A origem do garfo, a história do garfo, a sua existência está associada a um para quê: o garfo serve para auxiliar a alimentação e foi para isso que foi construído por acção humana. Aparentemente, tanto quanto os cientistas conseguem depreender, a humanidade esteve desde cedo predisposta a associar qualquer ente a uma história de "para quê". Assim, o homem primitivo parece ter compreendido (independentemente de estar ou não correcto) que todo o ente do mundo, na verdade todo o acontecimento, teve origem numa intenção, num "para quê" (independentemente das diferenças que possam ou não estabelecer-se, numa análise mais profunda, entre as noções de intenção e de "para quê").

Estes dados levam-nos muito longe na análise da evolução das religiões e da história das ideias. Para o homem primitivo, a noção de "para quê", de utilidade na medida de uma intenção, teria consequências ontológicas. Assim, o que era útil existia, se existira servia para algo. O que não era útil não tinha nome. Não abordaremos aqui estas noções de "útil", "para quê" e "intenção", mas resta dizer que o homem primitivo concebia uma ordem, por oposição ao caos, e a ordem era linear consoante intenções, serventias. Uma planta sem serventia não tinha nome: não existia. As tempestades surgiam ao homem primitivo como resultado de uma intenção, um castigo, uma luta entre entes divinos, uma arma de um senhor poderoso. O raio era um instrumento que ele, homem, não podia dominar (em razão da sua natureza), mas que outros entes dominavam em ordem a um fim.

Desde início, contudo, permaneceu essa ideia de que, a algo que mostra ser útil, se opunham coisas que não se mostravam servis, não sobressaiam do anonimato. O inútil, como algo essencialmente sem "para quê" permanecia como o resto. Hoje podemos dizer que compreendemos (independentemente de se estar correcto ou errado) que uma pedra pode ter uma história perfeitamente independente de uma intenção. Compreendemos que a natureza pode ter o seu percurso, indiferente a qualquer intenção. Mas este modo de compreender a natureza, como um conjunto de forças sem intenção, é algo abstracto, muitas vezes difícil de colocar em palavras e de esclarecer. Assim, temos sempre a tendência a ver na evolução natural uma intenção (como se a galinha tivesse desenvolvido asas intencionalmente), temos a tendência a associar evolução a progresso (como se o mundo evoluísse em direcção a uma suposta intenção previamente alocada à natureza). Provavelmente, ainda hoje, a maior parte das pessoas, mesmo as mais instruídas, assume este modo de compreender as coisas, pois este é um modo possível, provavelmente o mais "natural", de, precisamente, compreender as coisas. O cientista, por seu lado, parece entender (independentemente de estar ou não correcto) que as coisas da natureza, que sobressaiem e lhe captam a atenção pela sua serventia para o saber, podem, por sua vez, ter uma existência independente desta utilidade e de qualquer intenção que fosse a razão da sua existência. O cientista compreende hoje que uma pedra pode, simplesmente, existir. Terá tido a sua "história", a sua origem e evolução, traçável (mais ou menos de forma geral) desde o big bang. A pedra, então, mostra-se útil para a ciência, para a geologia, até para a arqueologia, a geografia, a paleontologia, mas simultaneamente revela-se destituída de um objectivo orientador da sua "existência". O facto de os seres humanos a usarem para fazer casas não implica que ela tenha sido criada com esse objectivo - pelo contrário, diz o cientista, foi o homem que lhe deu uma serventia quando precisou de fazer uma casa. Da mesma maneira, diz o cientista, o facto de hoje termos galinhas em vez de dinossauros, não implica que a galinha seja um progresso relativamente ao dinossauro. O facto de a História humana ter sido como foi não mostra uma intenção implícita da ordem universal. O dinossauro não tinha o objectivo de vida de se tornar galinha. O facto de o mundo ser como é, não mostra que estejamos mais próximos de uma verdade intencionalmente estabelecida como cume da evolução. O ser humano pode não ser mais do que um segmento de recta na recta infinita da evolução sem fim, intenção, objectivo: enfim, sem "para quê". A diferença entre uma mosca e um homo sapiens sapiens pode não ser mais do que a diferença entre pontos de vista. Por existirem seres humanos, que são entes capazes de se pensarem a si mesmos, não significa que a natureza tivesse a intenção de os produzir, muito menos significa que o ser humano seja o grande desígnio da natureza.

Note-se algo muito importante: com isto não simplificámos nada. Não estamos mais próximos da mosca do que estávamos antes. O facto de termos descoberto que a diferença entre o genoma humano e o do chimpazé é muito reduzida, não nos aproximou do chimpazé. O facto de descobrirmos uma espécie de arroz (por suposição) com um genoma mais diversificado, mais extenso ou maior não mostraria que o arroz seria mais complexo que o ser humano. Da mesma forma, o facto de o mundo natural não existir com uma intenção, não torna as coisas mais simples, nem mostra que o ser humano deva viver sem objectivos, nem resolve as questões científicas ou filosóficas relacionadas com a essência do ser humano. Mas, a provar-se que nenhum ente dotado de intenções criou o Universo dando-lhe um telos, e não parece ser possível prová-lo, mostrar-se-ia apenas que as intenções humanas são somente humanas.

Continua em:
http://discutirfilosofiaonline.blogspot.com/2011/10/o-gato-de-schrodinger-v.html

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