segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O gato de Schrödinger V

A propósito de, Einstein...

A linearidade do nosso acesso verifica-se na nossa assumpção de que o queijo que colocámos no frigorífico continua a existir mesmo depois de fechada a porta. Não o vemos, é verdade, mas admitimos que continua lá. Nada nos permite pensar que esta assumpção esteja errada, mas nada nos pode provar que está certa. Ao abrir o frigorífico novamente, apenas verifico que ele "está" lá quando o passo a ver. Por outro lado, nada me garante que os meus sentidos estejam correctos. Na verdade, pode não existir um mundo de coisas. Tudo pode ser ilusão. Mas, por mais que seja impossível provar que o mundo (tomado aqui como objecto de um sujeito) existe, não há evidências que suportem a suposição de que não existe. Da mesma forma, por mais vezes que abra o frigorífico o queijo aparece lá, excepto se alguém de lá o retirar. Enfim, o queijo não dá evidências de que deixe de existir, aparenta uma linearidade ôntica.

Na experiência mental de Schrödinger, contudo, o gato está vivo ou morto, mas não temos como estabelecer o estado "de facto" antes de abrirmos a caixa. O estado do gato parece estar dependente da observação. A linearidade leva-nos a assumir que o gato ou está vivo ou está morto. Esta assumpção, aplicada a gatos, tanto quanto sabemos, está correcta. O gato não pode estar vivo e morto. Mas se o nosso acesso está determinado pela linearidade, não nos poderia (jamais) ser dada uma experiência que a contrariasse (a própria forma com que experienciamos ou tomamos nota da experiência). Por outro lado, podemos estabelecer formas de análise mais pormenorizadas, abstractas, matematicizadas. Através de "contas" elaboradas, que apenas uma dúzia de pessoas conseguem resolver, podemos colocar em abstracto eventos. Podemos, a partir de observações básicas dos astros, estabelecer uma forma matemática de demonstrar que a terra gira em torno do Sol, e não o inverso. Apesar de, quanto ao nosso olhar, continuarmos a ver o Sol a mover-se, sabemos que é a terra que se move em torno dele. Sabemos também que o sistema solar como um todo, e a própria Via Láctea se movem. Enfim, os meus olhos não mudaram de opinião. Entretanto, explicou-se a aparência/ilusão e sugeriu-se uma teoria, a qual resistiu aos testes, pelo menos a um significativo número de testes, e foi-se aperfeiçoando (órbitas elipticas, buraco negro no centro da Via Láctea, espaço-tempo de quatro dimensões, etc.).

A matemática é muito importante para as ciências, pois permite tornar abstracto forças que, na natureza, são concretas. Pode calcular-se o efeito da gravidade, independentemente de outras forças. Pode afirmar-se que um corpo de certa massa, projectado com certa força, atinge certa velocidade e que, atingindo essa velocidade, jamais diminuirá ou acelerará até nova intromissão externa. Os meus olhos contradizem esta evidência matemática: sempre que atiro uma pedra ela irremediavelmente cai e pára de se mover num certo ponto. A matemática, contudo, explicará que a inércia precisa de ser relacionada com o atrito (por exemplo), para explicar o que acontece nos casos particulares que me rodeiam. Assim, postulamos um mundo cujo padrão de evidência é, cada vez mais, a matemática.

Este mundo matemático começou por ser um mundo muito simples, apesar de complexo por vezes. O espaço a duas dimensões, concebido como largura e cumprimento, satisfez por algum tempo, mas exigiu a altura. Este espaço tridimensional já é, de facto, complexo. Ainda assim, o mundo cartesiano-newtoniano é intuitivamente apreendido. Imaginamos uma espécie de espaço vazio tridimensional, estabelecido por uma rede infinita de cubos. Este espaço vazio pode ser ocupado, cada coisa ocupando um espaço. Este espaço e este tempo são vazios e inócuos. Imaginamos que, parando o tempo num dado momento, cada coisa, cada partícula ocuparia um espaço específico. Duas partículas nunca ocupariam o mesmo espaço. Uma mesma coisa jamais ocuparia, simultaneamente, dois lugares distintos. Poderia, em teoria, indicar o lugar de cada coisa, por mais ínfima ou gigantesca que fosse. Os objectos deslocam-se pelo espaço em sucessões de posições lineares, embora esta sucessão não signifique divisibilidade infinita factual do espaço. Cada posição da estrutura resulta da posição imediatamente anterior. Até agora, o senso comum parece compadecer-se facilmente por esta visão científica e apadrinha-a sem relutância. Todavia, esta concepção daria origem a outra mais complexa. A concepção newtoniana-einsteiniana.

Segundo Newton, as forças são instantâneas, na ordem do espaço são exercidas instantaneamente. O tempo não era ainda uma dimensão, mas uma sucessão na dimensão trinitária do espaço. Assim, imaginemos o sistema solar e retiremos-lhe, num dado momento, o Sol. Que aconteceria aos planetas?

Nesta experiência mental não podemos recorrer à prática para ver o que acontece, pois não temos como fazer desaparecer o Sol num instante (único), e, mesmo que tivessemos, também não teríamos interesse em fazê-lo. Apesar disso, temos a matemática que nos permite calcular os resultados. Os resultados revelam que, instantaneamente, a ausência da estrela central provocaria o desaparecimento instantâneo da força de gravidade por ele exercida. Nesse mesmo instante em que o Sol desaparecesse, a matemática mostra que os Planetas, simplesmente, seguiriam em frente. A lei da inércia ditaria que os planetas, soltos da gravidade exercida pelo Sol, seguissem em linha recta, com pequenas alterações quando ponderássemos a aproximação de outros corpos, também exercendo gravidade. No essencial: ao desaparecer o Sol, os planetas do sistema seguiriam em linha recta a partir do ponto em que se encontrassem. Mas Einstein descreveu uma concepção do mundo diferente, ditada pela lei da velocidade da luz. Ora, a velocidade da (propagação da) luz, em si, é irrelevante. Tanto dá que seja 300 mil quilómetros por segundo, ou 300 metro por hora. O ponto chave está em ser uma lei absoluta do Universo.

A teoria da Relatividade Restrita estabelece as leis que resultam do limite da velocidade da luz. Sendo esta velocidade um limite absoluto, há leis que se deduzem daí, de modo a evitar contradições (ou seja, deduzem-se lógica e matematicamente - portanto, de forma linear). Antes de mais, a noção de "instantaneidade" é reduzida à de "simultaneidade", a qual passa a ser uma noção relativa. O que é simultâneo é-o relativamente a determinado observador (tomando um determinado ponto de observação/análise). Dois eventos simultâneos para um observador, podem não o ser para outro observador. Assim, se a velocidade da luz é um limite, então a gravidade, sendo uma força, deve ter uma velocidade de propagação, a qual não poderá exceder a da luz. Retomando a nossa experiência mental: se o Sol desaparecesse, a "ausência" da sua gravidade seria sentida primeiro pelos corpos mais próximos, depois pelos mais longínquos, à medida que a "onda" de propagação os atingisse. Segundo Einstein, esta onda propagar-se-ia à velocidade da Luz. Na base desta resposta está a compreensão do mundo em quatro dimensões: largura, cumprimento, altura e tempo. O tempo passa a ser compreendido como uma dimensão do Universo, não como uma sucessão de estados gerais, instantâneos, do Universo. A nossa experiência mental revela-nos uma malha com estas quatro dimensões, em que a gravidade é representada como uma deformação nesta malha espaço-tempo. O Sol, pela sua gravidade, deforma a malha, como uma bola que está sobre uma rede: afunda o espaço-tempo e esta deformação atrai os corpos que passam nas proximidades. Ao desaparecer o Sol, o desaparecimento dessa deformação na rede provocaria uma onda que se propagaria à velocidade da luz em direcção à periferia, como uma pedra que cai na água.

Aparentemente, esta concepção do mundo ainda se coaduna com a linearidade imediata do senso comum. Na verdade, a regularidade da Teoria da Relatividade apresenta uma concepção do mundo que o senso comum pode aceitar, mas não sem reservas. A teoria de Einstein é um ponto crucial na divergência entre linearidade lógico-matemática e linearidade imediata comum.

Quando se começam a pensar em experiências para verificar os efeitos do limite da velocidade da luz, então começamos a ser confrontados com resultados confusos para a linearidade imediata do senso comum, embora perfeitamente lineares do ponto de vista lógico e matemático. Para perceber isto, tem de se compreender que o limite da velocidade da luz não é um limite que o universo respeita apenas por vezes. Este limite não pode ser ultrapassado (ignoremos aqui as experiências recentes que sugerem que algumas partículas poderão superar esse limite). Não pode ser ultrapassado, nunca. O limite da velocidade de propagação do som, por exemplo, pode ser ultrapassado, provocando um rugido, um estalar como no caso dos raios que provocam os trovões. O limite da velocidade em queda livre, também pode ser vencido facilmente. Mas a velocidade da luz não, nem pela própria luz. Ora, como já dissemos, o importante aqui não é a velocidade a que a luz se propaga, mas o facto de ser um limite absoluto.

Imaginemos que a luz se propagava a 100 Km/h. Imaginemos que temos um carro que se desloca a 99 Km/h. Imaginemos que temos um observador estacionado na berma da estrada com um radar. Imaginemos que o carro levaria as luzes acesas. Na verdade, a luz projectada pelos faróis do carro afastar-se-ia a 100 Km/h do observador estacionado, e afastar-se-ia a 100 Km/h dos faróis donte partira. Se se pensar um pouco sobre o assunto, verificar-se-á que o espaço-tempo sofreu uma transformação confusa para o senso comum.

O que acontece é o seguinte: o ponto X toma-se por estacionado. O corpo Y toma-se como deslocando-se próximo da velocidade da luz, digamos 299 mil Km/s. A luz afasta-se a 300 mil Km/s, quer do ponto X, quer do corpo Y (quando o senso comum assumiria, à partida, que a luz se afastaria de X a uma velocidade igual à soma da velocidade de Y com a própria velocidade com que a luz se afasta de Y). Confuso? Como pode a velocidade manter-se?

Ora, se a velocidade da luz se mantém, e se sabemos que em se tratando de objectos comuns a movimentarem-se a velocidades habituais, a velocidade não seria a mesma nas duas circunstâncias, então algo tem que mudar, sem ser a velocidade. Mas o quê? O tempo.

No sistema de Einstein o tempo é uma dimensão, e tal como as outras dimensões espaciais se deformam com a gravidade, também a dimensão temporal pode deformar-se em determinadas circunstâncias. No caso em apreço, o tempo do objecto que se desloca a velocidades próximas da da luz deve ser diferente do tempo do observador estático. O tempo do objecto que se desloca a uma velocidade próxima da velocidade da luz deve ser "mais lento", por assim dizer. Isto torna-se "claro" numa outra experiência mental.

Imagine-se um comboio que se desloca próximo da velocidade da luz. No chão do comboio colocamos um espelho, e no tecto um instrumento que emite luz. As partículas de luz vão do tecto ao espelho e voltam, sempre propagando-se à velocidade de 300 mil Km/s. Cada partícula percorre esse espaço vertical, perpendicular ao movimento do comboio, entre o espelho e o instrumento - imaginemos uma distância de 2 metros - a uma velocidade constante de 300 mil Km/s. Imaginemos agora que essa distância é de 300 mil Km. Então a luz levará 1 segundo a ir do instrumento ao espelho, e outro segundo a voltar ao instrumento. Até aqui, nada é confuso.

Tomemos agora um observador estacionário, relativamente ao comboio, por exemplo alguém que está numa plataforma por onde passa o comboio. Para este observador, a distância percorrida pela luz não é de 300 mil km, é superior. Porquê? Porque, enquanto a luz vai do instrumento (ponto A) ao espelho (ponto B), o comboio também se deslocará. Portanto, para este observador, a direcção da luz não é um movimento vertical, mas sim diagonal. Ou seja, quer o observador no comboio, quer o observador estacionário, medem a mesma velocidade da luz: 300 mil Km/s. Mas, enquanto o observador no comboio vê a luz percorrer os tais 300 mil Km que dissemos, o observador estacionário verá a luz percorrer uma distância superior.



A linha vertical que se pode ver na figura, corresponde ao que o observador no comboio vê. Para o observador estacionário a luz percorre uma distância superior, como se pode ver na linha da direita. Isto acontece porque, como foi dito, o comboio continua a deslocar-se enquanto a luz se propaga. O importante aqui é compreender que não se trata de uma ilusão de óptica. Por outro lado, lembremo-nos que ambos os observadores chegam à mesma conclusão ao medirem a velocidade da luz: 300 mil Km/s. Assim, quando passar um segundo para o observador no comboio, a luz percorreu 300 mil Km, e chegou ao espelho. Mas, quando passar um segundo para o observador estacionário, apesar de a luz ter percorrido os mesmos 300 mil Km, ainda não alcançou o espelho. Ocorreu, por isso, uma dilatação do tempo. Quando tiver passado um segundo para o observador estacionário, ainda não passou um segundo para o observador no comboio. Quando a luz tiver chegado ao espelho, para o observador no comboio passou um segundo, para o observador estacionário já passou mais de um segundo. Destarte, para o objecto que se propaga à velocidade próxima da da luz o tempo à mais lento. Quando tiverem passado 50 anos para o objecto estacionário, para o objecto que se desloca próximo da velocidade da luz terá passado um tempo consideravelmente inferior. Se fossemos nesse comboio e voltássemos a casa passados cinco minutos, poderíamos descobrir que os nossos amigos envelheceram anos. A vida na terra teria continuado, as pessoas teriam continuado a viver durante anos, enquanto nós teríamos experienciado um período de uns meros cinco minutos quase à velocidade da luz. O filho que deixaramos no infantário estaria agora casado. Nós nem teríamos tido tempo de fazer a barba. Note-se que estamos apenas a exemplificar a ideia geral: dilatação do tempo.

Estamos perante uma concepção do tempo que choca com a linearidade imediata da concepção vulgar do tempo e do espaço: espaço e tempo que de curvam e deformam. A própria aplicação destes termos ao tempo é confusa: tempo que demora mais a passar que outro tempo? Parecemos estar-nos a referir ao tempo psicológico. Mas, segundo esta concepção, e a física tem demonstrado que ela acerta, o tempo "real", chamado objectivo, é também, afinal, relativo. O tempo e o espaço deixaram de ser como que "sacos" preenchidos pelos objectos e seus movimentos, para passarem a ser passíveis de deformação, podendo influenciar e ser influenciados. Não há um espaço inalterável onde as coisas simplesmente ocupam lugar, não há um tempo como mero passar indiferente e equitativo de instantes. Tempo e espaço são relativos. O paradoxal na noção de relatividade, e em qualquer concepção de relativo, é que a própria detecção do que é relativo e a sua medição subsequente, são dependentes de um "absoluto". A Relatividade, ou a sua detecção, é possível porque há uma constante: neste caso, a velocidade da luz. Da mesma forma, os cientistas sabem que lhes falta perceber alguma coisa quando medem um evento no universo de onde parece desaparecer energia/matéria. Se depois de um evento medimos uma diminuição do conjunto matéria-energia resultante, então os cientistas sabem que lhes falta algo, que há matéria-energia a "ir" para algum "lado" não detectado - pois assume-se a constante da totalidade matéria-energia.

Estas concepções resultam da aplicação mais restricta das regras da linearidade lógica e matemática, embora pareçam deformar a linearidade simples e mais ou menos imediata do senso comum. Tal como a conclusão de que a Terra gira em torno do Sol resulta de uma aplicação mais estreita das regras da linearidade lógica e matemática, embora contradiga a percepção imediata e a constatação a nu do senso comum. Por outro lado, a linearidade estreita, rigorosa, complexa da lógica e da matemática exigem esforços intelectuais muitas vezes pouco cativantes para o senso comum, pouco dado a divagações tão afastadas das incumbências do dia a dia. Assim, a ciência arrisca tornar-se, aos olhos do comum dos mortais, uma espécie de conto da carochinha, um conjunto de proposições ficcionadas por espíritos pretenciosamente eruditos. Entretanto, de um lado e do outro, como em todos os campos humanos, manifestam-se modos diferentes da linearidade do acesso humano ao mundo.



Continua em: http://discutirfilosofiaonline.blogspot.com/2011/10/o-gato-de-schrodinger-vi.html

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