A propósito de, conclusão...
A experiência mental de Schrödinger mostra-nos várias coisas. Independentemente daquilo que Schrödinger pretendia mostrar - o absurdo da interpretação de Copenhaga - podemos retirar várias lições:
1º. A interpretação de Copenhaga colide de forma gritante com a linearidade imediata do ponto de vista comum. O senso comum está pronto a aceitar que existam eventos incompreensíveis, ou que a natureza seja permeável à magia, à astrologia, à leitura da sina ou até ao mao olhado. No entanto, estas superstições, que ao cientista parecem distituídas de linearidade, têm a sua própria regularidade. Os Xamãs actuavam e actuam de acordo com certas prescrições ancestrais, e a astrologia baseia-se em regras ocultas ao comum dos mortais, mas que deixam adivinhar uma relação causal entre a sorte do ser humano e os astros. O senso comum até aceita que o mundo invisível posso introduzir-se no visível, mas em tudo isso não se verifica uma contradição imediata. Pelo contrário, a interpretação de Copenhaga apresenta uma forma de conceber o mundo que colide com a linearidade imediata. Contudo, isto não significa que a interpretação de Copenhaga não seja ela própria um produto da linearidade. Na verdade, é um produto da linearidade sofisticada de um ponto de vista temático, científico sobre o mundo, caracterizado pela matematicidade e pela lógica.
2º. Não devemos referir-nos sem escrúpulos à realidade quântica nos mesmos termos em que nos refimos à realidade macroscópica. Os objectos quânticos devem deter a sua própria linguagem na ciência, devem deter um modo próprio de ser descritos, o que não significa que este modo de descrição seja sempre coincidente com o modo de descrição adoptado para os objectos macroscópicos. A própia comparação dos electrões com os gatos nos levantam suspeitas e exigem um cuidado suplementar de forma a não confundir nem electrões com gatos, nem gatos com electrões.
3º. A experiência coloca em evidência o problema do colapso. Existirá, de facto, um colapso? Como é possível o colapso e que significa ele? Em que momento ocorre e de que forma? Como podemos admitir que a medição imponha algo ao que é medido? Mas, se não ocorre um colapso, como conciliar o que sabemos sobre a incerteza e a não determinação com a medição de um estado descrito de uma forma única? Aqui, onde a linearidade parece ter sido despedaçada, para ser encontrada apenas após o colapso, fazemos uma nota: a linearidade do ponto de vista humano não é suprimida na realidade, supostamente não linear, da mecânica quântica. As superposições ditas não lineares são justificadas da forma mais linear e lógica que podemos imaginar. A linearidade lógica e matemática fundamentam a necessidade de cosiderar estas combinações (aparentemente não lineares) de várias descrições clássicas (notoriamente lineares). A aparente não linearidade reduz-se à admissão da simultaneidade de possibilidades de descição não coincidentes. A não coincidência, no entanto, é, precisamente, uma necessidade linearmente justificada. Ou seja, a linearidade do ponto de vista leva à assumpção de eventos não lineares, que, então, estão perfeitamente enquadrados num ponto de vista de fundo linear. Tal como estas descrições não determinísticas são propostas pelos cientistas porque estas lhes parecem necessárias: é a necessidade lógica e matemática que funda a assumpção do não determinístico.
4º. Temos, então, evidentemente o problema da medição: é necessária ao colapso?, o que significa?, em que é que consiste? O que é extactamente a medição ou a observação? O que é que, na sua natureza, impõe o colapso?
5º. Esta experiência parece colocar-nos frente com uma data de problemas que, numa primeira abordagem não estavam imediatamente evidentes. Daí que vários cientistas tenham reescrito a versões desta experiência. De forma clara parece óbvio que a eliminação da ideia de colapso poderia conciliar a mecância quântica e a Teoria da Relatividade, desde que, como vimos, a eliminação do colapso acompanhasse a eliminação da simultaneidade de estados inconciliáveis. Poderíamos, neste sentido, supor a existência de Deus como observador universal e omnipresente, o qual reduziria o colapso ao momento inicial de cada evento, ou seja, na prática nunca existiria nenhum superestado de facto, pois Deus, como observador omnipresente, provocaria o colapso de todos os superestados. Assim eliminar-se-ia o problema do colapso.
6º. Não devemos assumir que as nossas explicações estabelecem uma correspondência perfeita com o mundo que supostamente descrevem. A nossa compreensão tem uma forma, e esta forma permite-nos estabelecer um conhecimento. Não nos é possível compreender nada fora do âmbito da nossa compreensão, portanto, da sua forma. O mundo que conhecemos é um mundo enformado pela nossa compreensão, não é o mundo em si. Pode parecer uma tautologia, mas o mundo que conhecemos é o mundo resultante das nossas faculdades. As nossas explicações e, portanto, a ciência, é um conhecimento humano, e o mundo por ela descrito não pode deixar de se acomodar ao ente que tem a capacidade de conhecer e descrever. O ser humano, este ente que conhece e descreve, conhece um mundo que cabe na forma da sua compreensão. Em última análise, não devemos ter a veleidade de supormos que conhecemos as coisas em si.
A mecânica quântica e a Teoria da Relatividade permanecem inconsistentes uma com a outra. Sendo contraditórias, não podem ser simultaneamente verdadeiras. Entretanto, formas de as unificar têm sido tentadas, no entanto sem suficiente evidência. Estas formas unificadoras não trazem nenhuma explicação nova para eventos que não tenham sido explicados pela teoria da Relatividade ou pela mecânica quântica, e parecem apenas criar conhecimento novo sobre uma nova realidade que elas próprias postulam. Nada nos evidencia a necessidade de recorrer a estas teorias, pelo menos enquanto não imporem as suas próprias evidências através de testes credíveis.
Por outro lado, nenhuma teoria científica deve ser confundida com "a verdade", nem deve ter a pretensão de se impor como tal. A teoria científica é validade como tal, como teoria válida, mas jamais como Verdade. A ciência não deve ser confundida com a religião. Uma teoria científica permanece sempre uma hipótese que deve ser constantemente reavaliada, deixando em aberto a própria mudança de paradigma, pois foi, precisamente, esta dinâmica crítica e criativa que permitiu e impulsionou o desenvolvimento científico, o qual nunca teria sido possível, como foi, se a ciência não se abstivesse de dogmas. Na ciência não há dogmas, há hipóteses. Uma teoria nunca é definitivamente confirmada. Jamais teremos uma teoria científica definitivamente verificada. Temos, sim, teorias que resistem à refutação, hipóteses que nostram evidências da sua validade. De acordo com os resultados, utilizam-se as teorias que melhor servem em cada caso. Não há problema algum em utilizar a mecânica quântica quando esta é mais eficiente, e utilizar a Teoria da Relatividade quando esta é mais eficaz. Não estamos perante dois deuses únicos, duas religiões monoteístas mutuamente exclusivas. Estamos perante teorias científicas, e na ciência utiliza-se o que dá mostras de ser eficaz. O que dá resultados preserva-se, o que é refutado, transforma-se, corrige-se ou abandona-se, se tal for o caso.
A ciência não deve ter a arrogância de pensar deter uma forma adequada de aceder à realidade em si. O humano detem um acesso, e esse acesso jamais pode ir além da sua forma. Compreendemos as coisas de acordo com a nosso forma de compreender. Se existe um mundo independente de nós, independente da nossa compreensão, o que quer que ele seja, o que dele chega até nós, chega através dos nossos canais de recepção e tratamento de informação. O mundo não nos pode entrar pela cabeça dentro, não pode saltar a nossa forma de pensar e apresentar-se puro e duro. As nossas teorias resultam da nossa forma de pensar, da linearidade do nosso pensamento, entre tantas outras categorias que delineiam a condição de possibilidade de qualquer teoria se apresentar. E qualquer teoria que se apresente, apresenta-se segundo tais condições. E é só: não sabemos se o electrão é uma onda, nem se o electrão é uma partícula, nem sabemos se o electrão existe, mas sabemos que é eficaz considerar que ele existe, sabemos que por vezes é eficiente considerá-lo como uma onda e que outras vezes é eficaz tomá-lo como uma partícula.
Com tudo isto, não queremos dizer que não se deve especular em ciência sobre coisas tão abstrusas ao senso comum, e sem evidência científica, como multiversos e teorias M. O que quisemos dizer é que nunca se deve confundir nem especulação nem evidência científica com um pretenso e pretencioso acesso à verdade. Mas, claro, a especulação é ela própria útil e o debate entre diferentes hipoteses especulativas ajuda, muitas vezes, a estabelecer evidências científicas. Outras vezes, a especulação resulta no desenvolvimento de utensílios que fazem avançar a humanidade.
domingo, 16 de outubro de 2011
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