Kierkegaard analisa um fenómeno intrinsecamente humano: a inveja. A inveja está profundamente radicada no humano. Quer dizer, é um modo humano de ser, e um modo radical, o que é o mesmo que dizer que somos naturalmente invejosos - e isto sem estar já a proferir um juízo ético. Mas à medida que ela prospera facilmente se torna algo imoral.
A inveja autêntica não é a negação da excelência, pelo contrário, é o reconhecimento da excelência. Era assim o ostracismo na Grécia Antiga: um grego podia explicar ao seu concidadão, Aristides, que votava a favor da sua expulsão porque estava farto de ouvir dizer nas ruas que ele, Aristides, é que era um grande homem. E assim a inveja ostracizava um excelente homem, mas não lhe negava a excelência. Não espantava ninguém que o povo de uma cidade mandasse regressar um homem previamente ostracizado confessando-lhe que não podia viver sem ele - nem espantava ninguém que se mandasse regressar um homem anteriormente ostracizado para fazer dele um basileus, um rei, um chefe. O que verdadeiramente indignava um grego era que se condenasse ao ostracismo um zé-ninguém, um político menor, alguém de quem só se tomava conhecimento quando se estava a votar se deveria ou não ser ostracizado. Portanto, a ironia não estava em que uma cidade ostracizasse um homem excelente, um grande homem. Não. A ironia seria se um político insignificante ostracizado, pelo facto de ser ostracizado, acabasse por ser considerado um homem excelente - porque um grego estava habituado a que um ostracizado tivesse algum tipo de excelência - e assim o povo da cidade mandasse regressar esse homem insignificante para fazer dele um rei, de tal modo que até os cidadãos da cidade que o acolhera durante o período em que estivera expulso da sua ficariam admirados por aquele homem absolutamente insignificante ser considerado necessário numa outra cidade.
A inveja é uma expressão indirecta, mas é ainda um reconhecimento da excelência. É um modo de relacionamento com a excelência: há quem admire o excelente, mas o invejoso quer bani-lo, embora não negue que o excelente é excelente - e é justamente porque não nega a excelência que a inveja. Por outro lado, a inveja sem carácter é uma expressão muito mais equívoca e ambígua. A ambiguidade começa em que pela sua falta de carácter já não se reconhece como inveja, e por isso já não admite que reconhece a excelência. Assim, um invejoso sem carácter seria incapaz de reconhecer perante Aristides que o condenava ao ostracismo por Aristides se excelente. Em vez disso, talvez o invejoso sem carácter afirmasse que Aristides não tinha carácter, que Aristides era invejoso, e se essa acusação falhasse, talvez dissesse que Aristides era insignificante ou que Aristides queria que a cidade fosse insignificante, e se essa acusação não funcionasse acusaria Aristides de qualquer outra coisa, talvez acabasse a acusar-se a si mesmo de ter sido enganado por muito tempo pelo perigoso do Aristides, e simultaneamente talvez quisesse que se acreditasse que o motivo pelo qual Aristides deveria ser banido era o facto de ele ser um Zé-ninguém. E então, a páginas tantas, a inveja é efectivamente apenas um palavreado vazio e a excelência torna-se indistinguível. Finalmente, é tudo um jogo em que invejosos se banem uns aos outros e onde já se não consegue encontrar um único traço de carácter.
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