Pode acontecer que a paixão leve uma pessoa a perder-se - mas a paixão tem a vantagem de exigir uma resolução, uma decisão, e de manter presente e claro para o apaixonado que há um caminho a fazer, que tem de se prosseguir por esse caminho e de que os demais caminhos são a perdição do apaixonado. A paixão tem um elemento de seriedade que é existencialmente decisivo.
Por outro lado, uma pessoa apaixonada pode tornar-se boa ou má, pode perder-se ou ganhar-se. O apaixonado tem claro para si mesmo que tem de decidir, que tem de se ganhar e que pode perder-se - mas pode estar apaixonado pelo objecto errado, pode ter uma ideia errada pela qual se apaixonou, pode tomar o caminho errado: e embora tenha a noção de perdição bem presente, pode ter a ideia errada do que é que o pode salvar.
Mas uma pessoa sem paixão não decide e pode muito bem ter todas as ideias correctas e não se salvar, e na medida em que decide é assim que se perde. Sem paixão não há o factor existencialmente decisivo, a existência perde-se no pântano da multiplicidade, do isto e daquilo e daquilo também, e um sujeito segue pela vida fora fragmentado sem nunca se arriscar verdadeira e essencialmente em nenhuma possibilidade fundamental de si, e por isso mesmo nunca abriu sequer a possibilidade de se ganhar. O erro vulgar acerca desta forma tão vulgar é julgar que ela é inócua. Parece que a paixão reserva os maiores perigos - mas este erro vulgar ignora que é justamente no vazio da falta de seriedade que a crueldade reside. A vulgaridade está carregada de crueldade, que é crueldade porque não é a violência exercida de forma claramente perceptível, não é a violência da paixão e do ódio, não é a violência identificada, determinável, evidente. A vulgaridade está carregada da crueldade que é crueldade precisamente porque é vazia, destituída de sentido, amorfa, insignificante, descolorida, não notificável.
A vulgaridade é crueldade, alimenta-se da crueldade - e pode-se ser absolutamente cruel e discutir com repúdio a violência no café porque a crueldade se tornou indiscernível para o olhar desapaixonado. A crueldade da vulgaridade só se pode tornar perceptível para o olhar eticamente comprometido.
A crueldade da
vulgaridade tem o infeliz hábito de ter um número indeterminado de vítimas...
Mas não é natural que tenhamos a tendência para rejeitar a ideia de que a mais
vulgar, a mais banal, a mais quotidiana das existências é cruel? Não é natural
que tenhamos uma resistência a aceitar que o nosso dia-a-dia é essencialmente
cruel? Porque, afinal, nós bem sabemos que dormimos de consciência tranquila...
e, no entanto, esse é o sinal mais preocupante!
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