sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A homossexualidade

A propósito da homossexualidade...

O que é?

"Um deputado do 'Independence Party' afirmou que as recentes tempestades e cheias que se têm abatido sobre o Reino Unido são um "castigo divino para os governantes" que decidiram legalizar os casamentos gay... o país tem sido afetado por "tempestades" desde a aprovação da nova lei sobre os casamentos gay porque David Cameron agiu de "forma arrogante perante os evangelhos"."


"a homossexualidade é uma forma deficiente de exprimir a sexualidade, porque esta última tem uma estrutura e um objetivo que é a procriação... Mostrar a um homossexual uma deficiência não é uma ofensa, é uma ajuda porque muitos casos de homossexualidade são recuperáveis com o tratamento adequado"


"Famoso psiquiatra pede desculpas por estudo sobre "cura" para gays"

O que é a normalidade? O que é uma deficiência ou uma desordem? O que é um transtorno? O que significa que as pessoas possam ser induzidas a mudar um comportamento? Até que ponto um sujeito se pode enganar a si mesmo?


quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Quem sabe de si?

A propósito de,


De facto, quem dos humanos conhece as coisas do humano se não o espírito do humano nele?

1 Cor 2:11
τίς γὰρ οἶδεν ἀνθρώπων τὰ τοῦ ἀνθρώπου εἰ μὴ τὸ πνεῦμα τοῦ ἀνθρώπου τὸ ἐν αὐτῷ;

Pois és tu, oh Senhor, quem me julga, porque embora nenhum homem saiba o que é do homem, senão o espírito do homem que nele está, ainda há alguma coisa no homem que nem mesmo o espírito do homem, que está nele mesmo, sabe; ...

Santo Agostinho, Confissões X, V, 7
"Tu enim, Domine, dijudicas me, quia etsi nemo scit hominum quæ sunt hominis, nisi spiritus hominis qui in ipso est; tamen est aliquid hominis quod nec ipse scit spiritus hominis qui in ipso est;"

O mundo inteiro é um palco, As You Like It

A propósito do cómico do mundo...


"O mundo inteiro é um palco"...

Shakespeare, As You Like It

Se o mundo é um palco fica indeterminado se a vida é uma tragédia ou uma comédia, porque a comédia e a tragédia são faces da mesma moeda.
Mas a expressão "o mundo inteiro é um palco" parece sugerir a compreensão cómica da vida: a vida é uma comédia. Porque reforçar o carácter de representação da vida significa chamar a atenção para o seu lado cómico, da mesma maneira que chamar a atenção para a seriedade de um drama significa chamar a atenção para o seu lado trágico. Assim, dizer que a vida é como uma peça de teatro aponta para o seu lado cómico, tal como dizer que uma peça de teatro é como a vida aponta para o seu lado trágico. A tragédia prende-se com o lado sério da moeda, a tensão, a pressão, a vida como sofrimento - a comédia prende-se com o lado neutralizado, afastado, distante, a vida como paródia. O riso tem diante de si o grande teatro do mundo. O comediante total engole o mundo todo e o mundo todo é uma farsa.


"A vida é apenas uma sombra ambulante, um pobre comediante
Que se panoveia e agita na sua hora em cima do palco
E depois não mais é ouvido: é um conto
Contado por um idiota, cheio de som e de fúria,
Que nada significa."

Shakespeare, Macbeth

A vida é um conto contado por um idiota que vive a sua vida que significa nada cheio de som e de fúria, como se a sua vida fosse de facto algo sério, de monta. E por isso mesmo a vida é essencialmente cómica, porque ela é levada seriamente, até mesmo vivida intensamente, com fúria e som, quando não passa de um grande nada - que fica revelado, justamente, no facto de que se pode rir de toda a vida e de todo o mundo. A vida é uma sombra: a vida é o próprio comediante. E depois, nada - e a diferença entre o antes e o depois é apenas o ruído. Por isso não há, efectivamente, uma diferença essencial entre a comédia e a tragédia: a tragédia dá-se na fúria, a comédia dá-se no sem sentido - e ambas, comédia e tragédia, são essa contradição. E também por isso não há uma diferença essencial entre a comédia e o tédio: no limite, o tédio é cómico. E só porque o mundo é absolutamente sem graça nenhuma é que ele é essencialmente cómico.

sábado, 25 de janeiro de 2014

As praxes como aprendizagem de vida

A propósito da tragédia na praia do Meco...

Chegou-se ao momento em que é perfeitamente possível considerar que uma praxe é experiência de vida! Humm... Suponho que um menino mimado da mamã, que depois foi um aluno mimado pelo deixa passar e deixa fazer do nosso sistema de ensino, pode ter vivido uma existência tão surreal e simultaneamente tão oca até à universidade, de tal modo que considere qualquer humilhação como a mais profunda, clarividente e vivificadora aprendizagem de vida! Uma pessoa que tenha tido uma vida demasiado limpinha pode, de facto, ser arrebatado pela ilusão de que a merda é a Verdade - tal como uma pessoa que foi toda a vida apaparicada pode deixar-se atolar pela ilusão de que a violência é a única prova de que se está realmente vivo! Não espanta, portanto, que os jovens ricos de hoje desenvolvam rituais de pura violência e de pura crueldade... Mas o enquadramento da praxe é antigo, e não espanta que um grupo de pessoas se deixe humilhar por uma pessoa, não nos deve espantar nada que seis pessoas - ou até cem mil - se deixem violentar por uma! É assim, o padrão é ser rancho. E ser rancho é hoje uma aprendizagem de vida! A única hierarquia é passar de humilhado a humilhador.

Isto é: hoje em dia tem-se habitualmente uma mentalidade de big brother - estou a ser visto, sou um ser que vive para ser visto, etc...

...o que é, justamente, a inversão da ideia antiga de que estamos permanentemente a ser vistos pela nossa própria consciência - ou que estamos permanentemente à vista de Deus...

Homo velox

A propósito de,

Há uma ideia - muito típica de épocas em que toda a gente corre e corre e corre e se tornou incapaz de parar, estar em silêncio ou de pensar - que abunda hoje em dia que é a de que considerar que algo é mau já é algo mau em si mesmo. As pessoas dizem isto à boca cheia. Eu penso sempre se aquele velho argumento grego de espetar uma boas pauladas na cabeça de quem o diz não seria de facto o melhor argumento, mas...

Penso que classificar algo de mau não é perverso, é até um dever classificar o mal como mau, mas a indiferença ou a perversão que trata o mal como bom, estas sim, penso que são nocivas.

A civilização... o homem tornou-se no animal veloz, uma espécie mamífera de velociraptor que a cada fôlego se desumaniza! Cada um, um átomo, com a sua nuvem de familiaridade onde até pode brincar ao ser humano em casa ou quando está de férias - mas cada vez mais a desumanidade se torna a ocupação a tempo inteiro dos homens. Com isso, evidentemente, vem a indiferença, e categorias do mesmo género, para as quais, efectivamente, tudo vai bem e a vida é assim mesmo!

Inveja e Carácter

A propósito de inveja...

Kierkegaard analisa um fenómeno intrinsecamente humano: a inveja. A inveja está profundamente radicada no humano. Quer dizer, é um modo humano de ser, e um modo radical, o que é o mesmo que dizer que somos naturalmente invejosos - e isto sem estar já a proferir um juízo ético. Mas à medida que ela prospera facilmente se torna algo imoral.

A inveja autêntica não é a negação da excelência, pelo contrário, é o reconhecimento da excelência. Era assim o ostracismo na Grécia Antiga: um grego podia explicar ao seu concidadão, Aristides, que votava a favor da sua expulsão porque estava farto de ouvir dizer nas ruas que ele, Aristides, é que era um grande homem. E assim a inveja ostracizava um excelente homem, mas não lhe negava a excelência. Não espantava ninguém que o povo de uma cidade mandasse regressar um homem previamente ostracizado confessando-lhe que não podia viver sem ele - nem espantava ninguém que se mandasse regressar um homem anteriormente ostracizado para fazer dele um basileus, um rei, um chefe. O que verdadeiramente indignava um grego era que se condenasse ao ostracismo um zé-ninguém, um político menor, alguém de quem só se tomava conhecimento quando se estava a votar se deveria ou não ser ostracizado. Portanto, a ironia não estava em que uma cidade ostracizasse um homem excelente, um grande homem. Não. A ironia seria se um político insignificante ostracizado, pelo facto de ser ostracizado, acabasse por ser considerado um homem excelente - porque um grego estava habituado a que um ostracizado tivesse algum tipo de excelência - e assim o povo da cidade mandasse regressar esse homem insignificante para fazer dele um rei, de tal modo que até os cidadãos da cidade que o acolhera durante o período em que estivera expulso da sua ficariam admirados por aquele homem absolutamente insignificante ser considerado necessário numa outra cidade.

A inveja é uma expressão indirecta, mas é ainda um reconhecimento da excelência. É um modo de relacionamento com a excelência: há quem admire o excelente, mas o invejoso quer bani-lo, embora não negue que o excelente é excelente - e é justamente porque não nega a excelência que a inveja. Por outro lado, a inveja sem carácter é uma expressão muito mais equívoca e ambígua. A ambiguidade começa em que pela sua falta de carácter já não se reconhece como inveja, e por isso já não admite que reconhece a excelência. Assim, um invejoso sem carácter seria incapaz de reconhecer perante Aristides que o condenava ao ostracismo por Aristides se excelente. Em vez disso, talvez o invejoso sem carácter afirmasse que Aristides não tinha carácter, que Aristides era invejoso, e se essa acusação falhasse, talvez dissesse que Aristides era insignificante ou que Aristides queria que a cidade fosse insignificante, e se essa acusação não funcionasse acusaria Aristides de qualquer outra coisa, talvez acabasse a acusar-se a si mesmo de ter sido enganado por muito tempo pelo perigoso do Aristides, e simultaneamente talvez quisesse que se acreditasse que o motivo pelo qual Aristides deveria ser banido era o facto de ele ser um Zé-ninguém. E então, a páginas tantas, a inveja é efectivamente apenas um palavreado vazio e a excelência torna-se indistinguível. Finalmente, é tudo um jogo em que invejosos se banem uns aos outros e onde já se não consegue encontrar um único traço de carácter.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Crueldade e vulgaridade

A propósito de crueldade... (Two Ages, Kierkegaard)

Pode acontecer que a paixão leve uma pessoa a perder-se - mas a paixão tem a vantagem de exigir uma resolução, uma decisão, e de manter presente e claro para o apaixonado que há um caminho a fazer, que tem de se prosseguir por esse caminho e de que os demais caminhos são a perdição do apaixonado. A paixão tem um elemento de seriedade que é existencialmente decisivo.

Por outro lado, uma pessoa apaixonada pode tornar-se boa ou má, pode perder-se ou ganhar-se. O apaixonado tem claro para si mesmo que tem de decidir, que tem de se ganhar e que pode perder-se - mas pode estar apaixonado pelo objecto errado, pode ter uma ideia errada pela qual se apaixonou, pode tomar o caminho errado: e embora tenha a noção de perdição bem presente, pode ter a ideia errada do que é que o pode salvar.

Mas uma pessoa sem paixão não decide e pode muito bem ter todas as ideias correctas e não se salvar, e na medida em que decide é assim que se perde. Sem paixão não há o factor existencialmente decisivo, a existência perde-se no pântano da multiplicidade, do isto e daquilo e daquilo também, e um sujeito segue pela vida fora fragmentado sem nunca se arriscar verdadeira e essencialmente em nenhuma possibilidade fundamental de si, e por isso mesmo nunca abriu sequer a possibilidade de se ganhar. O erro vulgar acerca desta forma tão vulgar é julgar que ela é inócua. Parece que a paixão reserva os maiores perigos - mas este erro vulgar ignora que é justamente no vazio da falta de seriedade que a crueldade reside. A vulgaridade está carregada de crueldade, que é crueldade porque não é a violência exercida de forma claramente perceptível, não é a violência da paixão e do ódio, não é a violência identificada, determinável, evidente. A vulgaridade está carregada da crueldade que é crueldade precisamente porque é vazia, destituída de sentido, amorfa, insignificante, descolorida, não notificável.

A vulgaridade é crueldade, alimenta-se da crueldade - e pode-se ser absolutamente cruel e discutir com repúdio a violência no café porque a crueldade se tornou indiscernível para o olhar desapaixonado. A crueldade da vulgaridade só se pode tornar perceptível para o olhar eticamente comprometido.

A crueldade da vulgaridade tem o infeliz hábito de ter um número indeterminado de vítimas... Mas não é natural que tenhamos a tendência para rejeitar a ideia de que a mais vulgar, a mais banal, a mais quotidiana das existências é cruel? Não é natural que tenhamos uma resistência a aceitar que o nosso dia-a-dia é essencialmente cruel? Porque, afinal, nós bem sabemos que dormimos de consciência tranquila... e, no entanto, esse é o sinal mais preocupante!

"O lobo de Wall Street" e a visão romântica da vida

A propósito de "O lobo de Wall Street"

"O lobo de Wall Street" é um filme (baseado na vida de Jordan Belfort) interessante.

Por que gostam as pessoas de finais felizes? As pessoas não gostam simplesmente de finais felizes - gostam de ver os bons felizes e os vilões infelizes.

As pessoas pensam assim: se alguém teve sucesso, é porque está certo. A vida de sucesso mostra, pelo seu sucesso, que está certa. Quem é que está certo? Aquele que tem sucesso. O insucesso mostra que essa pessoa estava errada.

As pessoas pensam assim: se uma personagem foi má, é má, deve acabar mal. Ou que, no final, deve mudar e tornar-se boa. Esta é a visão romântica que as pessoas habitualmente têm da vida. E querem que isso se plasme nos filmes.

Neste filme o agente de polícia honesto está pobre no final do filme - e tem um sucesso relativo. Na verdade, vêmo-lo a continuar a andar de metro. Essa é quase a única pessoa honesta que aparece no filme - e não podemos dizer que no seu final algo nos atraia para sermos como ele.

Jordan Belfort, pelo contrário, teve de tudo, quantidades obscenas de dinheiro, propriedades majestosas, consumiu todo o tipo de drogas, manteve a sua saúde, mesmo quando foi preso esteve numa ala de primeira classe, com campo de ténis e tudo, onde mais parecia que os guardas é que estavam presos... E o polícia honesto a andar de metro, com as suas dificuldades económicas...

As pessoas têm uma visão romântica da vida e querem que os filmes tenham uma visão romântica da vida. Mas pode muito bem acontecer que o honesto, justamente por ser honesto, nunca tenha sucesso. Pode acontecer que por um qualquer encadeamento de acontecimentos o honesto passe a sua vida em dificuldades, infeliz. Pode acontecer que o desonesto, justamente porque é desonesto, tenha muito sucesso. Pode acontecer que por um qualquer encadeamento de acontecimentos o desonesto seja muito feliz e uma vida de facilidades.

A visão romântica da vida, no entanto, é que o sucesso é critério existencial.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Consciência e sedução

A propósito de sedução...

Nós pensamos, amiúde, que somos capazes de saber onde está a tentação e que uma coisa nos seduz quando nos seduz. Este ponto é delicado porque, de alguma maneira, há sempre uma auto-ilusão em cada sedução, uma auto-decepção em cada tentação. Mas não devemos ir tão depressa onde custa muito a chegar - portanto, o que primeiramente deve ser notado é que pensamos, como é normal, que uma tentação nos chama para o mal, mas tende a escapar-nos a possibilidade elementar de desconhecermos o que é o mal. Assim, pode muito bem acontecer - e acontece de facto - que na maioria das vezes sejamos tentados porque algo que é um mal nos chama para ele, mas que nos passa ao lado que isso é um mal. E isto é assim, primeiramente, porque não sabemos, de facto, o que é o Bem - e depois isto é assim porque tendemos a pensar que aquilo que nos agrada é o Bem. Quer dizer - e é isto que é o decisivo: a tentação, pela sua natureza, é justamente aquilo que, de início e na maioria das vezes, nos parece ser, e nos aparece como um bem. E o que é difícil de início não é resistir à tentação - embora na maioria das vezes também seja realmente difícil resistir-lhe -, o que de início e na maioria das vezes é mais difícil é reconhecer o carácter de tentação daquilo que seduz - justamente porque seduz.

Cobardia e decisão

A propósito de cobardia...

Segundo Kierkegaard, a cobardia é a arqui-inimiga da decisão. Uma pessoa pode ler isto e pensar que é mesmo assim, que muitas vezes temos receio de tomar uma decisão, e que então adiamos a decisão. Mas temos a tentação de pensar que não é assim, pelo menos connosco, na maioria das vezes. Tendemos a pensar que a nossa vida é uma constante de decisões, muitas delas corajosas, muitas delas contra verdadeiros perigos e arriscando muito, ou empenhando muito tempo e esforço. E, no entanto, é justamente a este estado de coisas que Kierkegaard se dirige: à nossa renovada coragem para lutar pelo sucesso, para defender o nosso talento, para lutar no mundo usando as nossas capacidades para enfrentar perigos imensos e ganhar o reconhecimento, aquela promoção, aquele ordenado, aquele aplauso dos chefes e dos iguais, aquele estar entre os outros e sentir que os outros nos admiram por tudo aquilo que conseguimos apesar das dificuldades. E, no entanto, é justamente a este estado de coisas que Kierkegaard chama cobardia.


"E, no entanto, a distinção entre cobardia e orgulho é uma falsa distinção, pois as duas são, na verdade, uma e a mesma coisa. A pessoa orgulhosa quer sempre fazer o que está certo, a grande acção. [...] Quer ter uma grande tarefa à sua frente e executá-la de livre vontade. E, assim, ele está muito contente com o seu lugar. [...]
[...] Claro que a verdadeira cobardia nunca se mostra como tal. Não faz um grande alarido. Não, ela está bem escondida e silenciosa. E, no entanto, ela junta a si todas as outras paixões porque a cobardia está muito confortável e é muito obediente em associação com outras paixões. [...]
[...] O verdadeiro significado da decisão é que nos dá uma conexão íntima. [...] A cobardia, por seu lado, apenas quer saber das coisas realmente importantes, das grandes coisas, não para que realize qualquer coisa com todo o coração, mas para ser lisonjeada por fazer qualquer coisa que é nobre e grande. Contudo, escondido por detrás do que é exaltado não está nada senão uma desculpa para não conquistar as pequenas coisas, que o sujeito omitiu, simplesmente porque eram pequenas.
Portanto, não te deixes enganar. Pode ser que com grandes decisões os outros se maravilhem contigo. Contudo, terás perdido a única coisa que é precisa. Podes ser honrado nesta vida, relembrado por monumentos erigidos em tua honra, mas Deus irá dizer-te: "Pessoa infeliz. Por que não escolheste o caminho melhor? Confessa a tua fraqueza e enfrenta-a.""

Kierkegaard



"Que não sejamos enganados neste assunto de querer apenas uma coisa. Aquele que quer o Bem, por exemplo, por mor de qualquer recompensa também não quer apenas uma coisa. Tem um pensar-duplo. Não é difícil de ver. O Bem é uma coisa; a recompensa é outra coisa. Querer o Bem por mor da recompensa não é querer uma coisa, mas duas. Se um homem ama uma rapariga por mor da sua riqueza, quem o chamará de amante?"
Kierkegaard






Ética e admiração

A propósito de admiração...

Por que eticamente não há admiração, ou, na admiração não é ética? (cf. Anti-Climacus e Johannes Climacus)

A admiração é desprendimento por implicação. Eticamente, o desprendimento é a anulação do ético. A admiração é estética e a verdadeiramente admiração é bela e admira o belo, pode provir de um grande homem ou admirar um grande homem - mas não pode ser ética, ou pode apenas parecer-se com o ético. No ético a admiração é falsa, ou se a admiração é verdadeira, aí o ético é um embuste. Eticamente, o homem ético que admira um homem exemplarmente ético admira-o falsamente - e o que é falso é que ele o admira, não que ele é um homem ético, se ele é um homem ético. Porque se é ético então ele já está imediatamente concentrado em si mesmo, no que ele tem por fazer para ser exemplarmente ético, e por isso não perde tempo a admirar, a bater palmas, a fazer discursos de circunstância.







"O oposto permanece verdadeiro acerca do universalmente humano ou disso que cada ser humano, cada ser humano incondicionalmente é capaz de, isso que não está dependente de nenhuma condição excepto aquela que está no poder de cada um, o universalmente humano, isto é, o ético, isso que cada ser humano deve e, portanto, também se presume que pode fazer. Aqui a admiração é totalmente inapropriada e ordinariamente é enganadora, uma artimanha que procura a evasão e a desculpa. Se eu conheço um homem por quem tenho estima por causa do sua abnegação, auto-sacrifício, magnanimidade, etc., então eu não devo admirá-lo mas devo ser como ele; não devo enganar-me e iludir-me a mim mesmo pensando que é qualquer coisa meritória da minha parte, mas pelo contrário devo entender que [eu admirá-lo] é apenas a invenção da minha indolência e cobardia; eu devo assemelhar-me a ele e começar imediatamente o meu esforço para me assemelhar a ele."
Anti-Climacus [Kierkegaard], Practice in Christianity, XII, 222

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Mundus vult decipi - e a boa consciência

A propósito de,

Por vezes diz-se que "durmo de boa consciência", e ao ouvir isto uma pessoa pode ficar com a certeza de que alguma coisa está mal com uma tal consciência. É que uma boa consciência só pode ser gozada por uma pessoa realmente má. A coisa, em termos éticos, é mais ou menos assim: se dormes de boa consciência, estás a enganar-te a ti mesmo. Dormir de boa consciência significa que, algures, o sujeito voluntariamente se adormece ou adormece a sua consciência.

Uma consciência tranquila não é - sublinhe-se: não é marca de bondade - sobretudo não é marca de que se fez o que se deve, não é marca de que se cumpre o dever, não é marca senão de que a consciência está tranquilizada; o decisivo é precisamente isto: que a tranquilidade nunca causa a actividade. Uma consciência tranquila não é uma consciência ética - mas o seu esvaecimento - a tranquilidade não é marca de cumprimento do dever, mas a marca da falta do dever. Eticamente, a tranquilidade da consciência é uma tentação; em termos religiosos, sem outra qualificação, a tranquilidade é culpa.


"Mundus vult decipi" significa que, em rigor, o humano é uma estrutura categorial-existencial tal que tende constitutivamente para a auto-ilusão (quer dizer, não acontece que se engane apenas aqui ou ali, ou que o engano lhe venha, por assim dizer, de fora, ou que se iluda algumas vezes mas não noutras), e que esta tendência inevitável para se enganar a si mesmo é voluntária.


Kant, Crítica da Razão Pura, B397 em diante, fala de uns tais sofismas "que se originam da natureza da razão", que não surgem dos factos nem às vezes, que "não são dos homens, mas da própria razão pura" - sim, da própria razão pura - "dos quais nem o mais sábio dos homens se poderia libertar"...

A questão é ainda mais grave se tivermos a noção de que não só o humano é tal que constitutivamente está em ilusão, como também constitutivamente tende para a ilusão.


terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Acompanhamento de si... identidade e si mesmo

A propósito de solidão...

Existencialmente, pensar é um acto solitário. Solitário mas não desacompanhado. Pensar é um acto em que eu faço companhia a mim mesmo: estar desacompanhado expressa que sou incapaz de me fazer companhia - e, então, é indiferente se estou junto a muitos outros ou se estou numa ilha deserta. Se estou ausente de mim mesmo posso, de facto, mergulhar nos outros, esquecer-me de mim junto dos outros, mas no fim do dia terei de regressar ao ermo interior em que, sendo eu um só, estou sem companhia - e o ser um só distraído junto dos outros é apenas uma forma distraída de estar desacompanhado.


A moderna busca de identidade é um equívoco. Um sujeito quer encontrar-se e então esvai-se pelo mundo, por aventuras dignas de um filme e leva, de facto, a sua vida como se fosse um filme, e é, portanto, tanto si mesmo ou está tão no encalço de si mesmo como um protagonista de um filme... Precisamente como uma personagem (máscara), justamente como num filme (ficção)...

Tenta-se resolver a crise de identidade nunca estando só, mas essa é justamente a crise de identidade...

Não há nada mais irónico do que um sujeito precisar, em ordem a encontrar-se, de viajar pelo mundo ou, para saber quem é, de experimentar muitas coisas ou, para querer alguma coisa, de perguntar ao mundo o que ele próprio quer.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Solidão do nosso tempo

A propósito de solidão...

A solidão... 

Há que dizer: o medo da solidão revela que há solidão antes mesmo de se estar sozinho. Revela que o estar sozinho vem apenas a desocultar a forma da vida quotidiana: a solidão profunda. O reboliço é enganador, porque justamente o afã de estar sempre com os outros, o medo de não ter com quem estar, o não saber o que fazer com o tempo quando não há reboliço - justamente isso é a maior solidão, a solidão profunda. Mas o problema do nosso tempo não é a solidão - e esse é o equívoco. 
O problema é exactamente que não se sabe já estar na intimidade de si consigo mesmo.
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