A propósito de cadáveres.
Um dos erros espantosamente comuns nas análises e comentários a Nietzsche é supor que ele nega a existência de valores.
A atitude que nega a existência de valores é aquilo a que ele chama Niilismo, mas esta negação é aquilo que teme acima de tudo. Nietzsche nega, sim, o valor daqueles ideais que não estão em condições de preservar um sujeito do Niilismo.
Portanto, Nietzsche também não é niilista. O que ele diz é que há ideais a que damos valor que, na verdade, não têm valor. Ou seja, nós tendemos a usar como valor algo que apenas aparentemente é valor. Por isso, é preciso mostrar que aquilo a que normalmente chamamos valor não passa de uma construção aparente de valor. É isso que Nietzsche faz. Ora, como normalmente nós pensamos que essas coisas são valores, e Nietzsche nos mostra que não são, tendemos a pensar que Nietzsche está a dizer que não há valores - mas, na verdade, ele está apenas a dizer que aquilo que nós julgamos serem valores não são.
Assim, Nietzsche é, de facto, um destruidor de valores - no sentido em que Jeremias era o profeta da destruição de Jerusalém: o que Nietzsche pretende é salvar a capacidade do humano para avaliar, julgar e valorizar. Para isso é necessário destruir os falsos valores.
Nietzsche mostra, livro atrás de livro, que nós estamos num estado de indiferença tal que já nenhum valor nos causa impressão, nenhum valor nos diz nada. Ainda falamos desses valores que outrora foram importantes, mas falamos deles da mesma forma que os papagaios: já nada significam para nós. Não há ligação íntima entre aquilo de que falamos e o modo como nos sentimos - e há ainda menos ligação entre aquilo que pensamos e aquilo que somos.
Esta crítica foi também feita por Kierkegaard. Segundo Kierkegaard, continuamos a falar de valores que surgiram em determinadas épocas e em certas sociedades, mas já não há qualquer nexo espiritual que lhe doe validade. Nas suas palavras, é como se tivéssemos à nossa frente um cadáver, um corpo sem alma, mas esperássemos dele que ainda se movimentasse e cumprisse as funções de um vivente.
Há um conjunto de determinações éticas que foram evidentes durante séculos, que estruturaram e deram forma ao mundo ao longo de centenas de anos - mas das quais só retemos os nomes, as palavras, de modo que já não fazem parte da evidência vital que temos hoje... Embora nós continuemos a usar os termos antigos, a evidência vital de outros tempos é apenas simbólica, oca, vazia, morta - de modo que já só se move por inércia.
As semelhanças na expressão de Nietzsche e Kierkegaard são imensas.
Ambos teimam em que mantemos casmurramente uma linguagem supostamente ética, supostamente valorativa, mas de tal modo que já nenhuma categoria ética lhe corresponde: mantemos uma tradição morta: já não temos a visão-de-vida, as preocupações, os interesses ou as paixões que deram vida à terminologia ética que ainda usamos.
Os dois anteciparam aquilo que Anscombe e MacIntyre também vieram a dizer...
Mas Anscombe e MacIntyre parecem ter chegado atrasados, não porque pretendem ter descoberto algo que já foi dito, de forma mais clara e veemente, um século antes, mas sim porque a situação já é diferente... Nietzsche e Kierkegaard tinham razão ao descreverem uma situação que existia no seu tempo, e talvez há séculos, mas entretanto foi ultrapassada (e já parecia ultrapassada em 1968 - vide Modern Moral Philosophy)...
O que se passa hoje já não é apenas a vigência de determinações como sendo doadoras de sentido mas que já não doam efectivamente sentido - o que se passa hoje é que essas determinações foram absolutamente abandonadas e se aderiu ao seu contrário.
A nossa situação de hoje já não é aquela a que Kierkegaard e Nietzsche faziam referência, mas sim uma intensificação dela: a evidência vital que durante séculos configurou o mundo e que, durante outros tantos séculos, se manteve simbolicamente como um cadáver, já está definitivamente enterrada, foi abandonada definitivamente e adoptou-se a evidência contrária.