"E, de facto, ignoramo-nos a nós mesmos envolvidos sob a geração do esquecimento, e sob a confusão das formas de vida incapacitantes-de-razão; entretanto, julgamos conhecer muitas coisas, das quais estamos ignorantes, por possuirmos já em nós princípios das razões das coisas."
Proclus (ou Proclo), Comentário a Alcibíades
Este pequeno trecho é pleno de determinações. Deixemos aqui apenas o mais claro. Claro do ponto de vista de Proclus, pois, como é claro, nada disto é claro para o ponto de vista natural.
1.º - Ignoramo-nos a nós mesmos e isso parece dever-se a duas razões, ou pelo menos a duas;
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2.º - Ignoramo-nos porque: - nos encontramos envolvidos, dominados - porque nos encontramos a lidar sob a geração do esquecimento, do ocultamento (o termo grego que consta aqui é λήθη: o contrário do termo grego para verdadeiro, ἀλήθης - em grego, a verdade é ἁλήθεια, desocultamento);
- nos encontramos sob as formas de vida incapacitantes de razão (o ἄλογον, 'álogon', é o que é incapaz de dar sentido; tem-se sempre a tentação de traduzir por irracional - este assunto não pode ser aqui devidamente esclarecido); note-se que Proclus não está a dizer que estamos a ser dominados por animais que, por qualquer razão ignorada por nós, nos obrigam a ser ignorantes; não; as formas de vida são aquelas em que de cada vez estamos constituídos enquanto viventes; nós somos nessas formas, somos dessa forma, nós somos assim: as formas de vida nas quais nos encontramos desde logo a ser o que somos são de tal modo que devem ser categorizadas como confusão;
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3.º - Enquanto nos ignoramos a nós mesmos - ao mesmo tempo que estamos ocultos de nós mesmos -, estamos convencidos de que conhecemos muitas coisas, coisas que, na verdade, ignoramos; e isto deve-se a um motivo concreto, ou pelo menos a um motivo;
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4.º - Julgamos conhecer muitas coisas porque:- em nós estão já desde sempre os princípios (ἐνυπάρχοντας) dos sentidos (λόγους; λόγος, lógos - este termo não pode simplesmente ser compreendido como razão ou racional, pois isso implica uma série de determinações que foram sendo adquiridas pelo termo ao longo da história da Filosofia, mas relativamente às quais o termo grego era neutro); nós julgamos conhecer as coisas porque o nosso ponto de vista está de tal modo constituído que desde sempre tem o poder de dar sentido; somos capazes de sentido, e isso significa que primeiramente temos esta capacidade - ou seja, não é imediatamente que perguntamos pelo sentido das coisas, pelo contrário, o sentido delas aparece-nos como estando aí; o ponto de vista natural assume as coisas, bem como o seu sentido, como dado; e é muito difícil perceber que aquilo que aparece constituído desde início como sentido das coisas possa ser apenas uma possibilidade entre outras: é isto, no entanto, que podemos perceber se pensarmos sobre a sensação de estranheza que sentimos quando viajamos para uma cultura completamente diferente da nossa, onde toda a nossa normalidade se torna, de repente, uma possibilidade longínqua, e uma outra se coloca à nossa frente.
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