sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Santo Agostinho, O Mendigo de Milão

A propósito de felicidade...

Passando por uma rua de Milão, apercebi-me de um pobre mendigo, já bêbado, creio eu, mas brincando e alegre: e gemi e falei com os [meus] amigos que estavam comigo sobre as muitas dores da nossa insanidade; porque com todos os nossos esforços, nos quais então me ocupava, sob o impulso da cupidez arrastava a minha carga de infelicidade, e aumentando-a ao prolongá-la, não queríamos mais nada senão alcançar a alegria segura, na qual o mendigo já nos havia precedido, e que talvez nunca alcançássemos.

Santo Agostinho, Confissões, VI, 9:
“transiens per quemdam vicum Mediolanensem, animadverti pauperem mendicum, jam credo saturum, jocantem atque lætantem: et ingemui, et locutus sum cum amicis qui mecum erant, multos dolores insaniarum nostrarum; quia omnibus talibus conatibus nostris, qualibus tunc laborabam, sub stimulis cupiditatum trahens infelicitatis meæ sarcinam, et trahendo exaggerans, nihil vellemus aliud nisi ad securam lætitiam pervenire, quo nos mendicus ille jam præcessisset, nunquam fortasse illuc venturos!”

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A Consciência Infeliz e a morte de Deus segundo Hegel

A propósito da morte de Deus:


"A Consciência Infeliz é o destino trágico da certeza do si que aspira a ser absoluto. É a consciência da perda de todo o ser essencial na sua certeza de si-mesmo, e da perda até mesmo deste conhecimento sobre si-mesmo: a perda tanto da substância como do Si, esta é a dor que se expressa a si mesma através da frase dura: Deus está morto."

Hegel, A Fenomenologia do Espírito, §752

O que é o concreto?

A propósito do "concreto"...

Bem, é mais fácil alguém admitir que o Universo é um conceito meramente abstracto, na medida em que não podemos realmente delimitá-lo, do que admitir que uma pedra é abstracta. Mas o que queremos dizer com abstracto? O que distingue o abstracto do concreto? Parece que o concreto é aquilo que podemos tocar, ver, cheirar... O abstracto parece ser aquilo que se caracteriza por ser simplesmente intelectual. 

Segundo a distinção anterior, uma pedra é concreta porque pode ser tocada. Na verdade, o ser concreto parece residir em ser algo de único, algo isolável. Posso apontar para uma pedra, tocar-lhe, e mostrá-la a alguém se me perguntar o que ela é. Já o conceito de pedra parece ser abstracto. Não posso realmente mostrar o conceito de pedra a alguém. Depois, o concreto não é repetível: esta pedra é esta pedra. O conceito de pedra repete-se em cada uma das pedras. Cada pedra é uma pedra. 

Infelizmente, aquilo que é concreto parece ser único, não transmissível. Não posso dizer uma pedra, posso apenas utilizar a linguagem, e isso significa que houve a mediação do conceito. O conceito, por ser repetível, por ser universal, permite a linguagem. Posso dizer a alguém que hoje vi uma pedra. Mas a pedra concreta, essa não a posso comunicar. Posso apenas mostrá-la se a levar comigo. 

Por outro lado, o abstracto parece ser universal de uma forma estranha, porque parece óbvio que por vezes ambos utilizamos a mesma palavra mas queremos dizer coisas diferentes. A minha representação pode ser diferente da tua. De tal modo que podemos, a dada altura, perceber que não estávamos a falar da mesma coisa. Portanto, não é imediatamente óbvio que quando se diz "pedra" duas pessoas tenham o mesmo conceito em mente - e na verdade, a palavra pedra pode ser utilizada em contextos muito diferentes. Com conceitos como "liberdade", "bem", "belo", isto torna-se mais evidente. E o conceito só pode ser expresso, não pode ser mostrado, ao contrário da pedra que é concreta.

Mas, de algum modo, fala-se de conceitos abstractos e concretos. Deve dizer-se que esta utilização dos termos é indevida. Não há, em rigor, conceitos concretos. Mas quando se diz que um conceito é concreto queremos dizer que podemos mostrar um exemplo do tipo de entes que esse conceito delimita. Posso exemplificar o conceito de pedra mostrando uma pedra. Mas já não posso exemplificar o meu conceito de "justiça". 

Esta forma de distinguir concreto e abstracto é muito pouco clara, porque eu também posso mostrar actos justos, situações justas, acontecimentos justos, finais de histórias justos... Então por vezes pretende-se distinguir concreto e abstracto dizendo que o concreto é aquilo que é evidente: posso mostrar uma pedra e ninguém fica na dúvida se é uma pedra, mas se mostrar um acontecimento justo, não raramente há quem discorde e diga que o meu exemplo é um mau exemplo, ou que o caso que apresentei não é um caso justo... Tudo isto está envolto em confusão, porque se a pessoa diz que o meu caso não é um exemplo de justiça, então é porque já tem, de algum modo, o conceito de justiça. Da mesma forma, uma pessoa que nunca tivesse visto pedras e só soubesse que aquela pedra que eu mostrei é uma pedra, poderia ter muitas dúvidas em decidir se um calhau é uma pedra, ou se a carapaça de uma tartaruga ou um osso também são pedras... E poderia não perceber que outra pedra completamente diferente também é pedra.

Mas deixemos isto de parte...

Como dissemos, parece que as coisas que podemos tocar são concretas porque "sabemos" o que são e não temos dúvida quanto a serem qualquer coisa de único, identificável. O concreto parece ser aquilo que temos à nossa frente e que não nos enganaríamos em ser isso aí aquilo de que falamos. Mas aprofundemos a nossa análise.

Tomemos um qualquer ente "próximo", como uma pessoa: a Maria. Nada parece mais conhecido e, nessa medida, mais concreto do que um ente querido. Se tentarmos ver o que é essa pessoa, temos que recorrer a determinações. Podemos perceber que o conceito que temos dessa pessoa corresponde a uma representação. Muito bem, mas essa representação é uma unidade - enquanto tal, é uma totalidade compósita. O que quer que digamos dela, trata-se de uma determinação, ou conjunto de determinações. Acontece, porém, que cada determinação é, pode definição, repetível. Não há nenhuma determinação da Maria que seja apenas da Maria. Percebemos que, então, a Maria é um cruzamento de determinações, cada uma delas repetível. Na verdade, cada uma das determinações da Maria é diferente da Maria. A Maria pode ser sensual. Ser sensual não é ser Maria, mas a Maria é sensual. E muitas outras mulheres podem ser sensuais. Assim, se tentarmos ver a que é que corresponde o meu conceito da Maria, este corresponde a uma representação insusceptível de ser correspondida a algo que não seja outra coisa que não ela. Ou seja, a Maria escapa-se-nos entre os dedos. Temos um conjunto de determinações, as quais são, todas elas, infinitamente repetíveis e de modo nenhum "concretas". Portanto, o conceito de Maria é, afinal, um conceito vazio e, na verdade, irrealizado. Mas se eu supor que esta dificuldade se deve à natureza das pessoas, poderia fazer o mesmo exercício com uma pedra, ou com um meteoro. 

Na verdade, se me pusessem à frente a Maria e outro ente com TODAS as determinações da Maria, eu não tinha nenhuma forma de as distinguir - e na verdade, nem teria nenhuma razão para dizer que não seriam DUAS Marias... Portanto, eu posso pensar que conheço muito bem a minha mãe. Já nem está em causa eu poder pensar que a conheço bem e afinal não conhecer. Eu posso conhecer a minha mãe muito bem. Mas não seria capaz de a distinguir de uma cópia perfeita. Porque o que eu sei dela é que ela é um conjunto de determinações. Apesar disso, a minha mãe é para mim muito mais do que isso, e na verdade não é nada disso. Quando falo da minha mãe, não me quero referir às determinações. Quero-me referir à minha mãe - precisamente àquilo que, se eu for analisar, não sei o que é. Mas enquanto a minha mãe é minha mãe, não admito que seja um aquilo. E tudo isto porque faz parte daquilo que para mim a minha mãe é a determinação ser amada por mim. E isto é uma determinação que faz toda a diferença... Nomeadamente, esbate as outras determinações e torna-as pouco importantes. Mas isto já é um outro assunto, também muito complexo, a saber, a distinção entre horizontes temático e prático. 

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A esquizofrenia da justificação...

A propósito de diálogos...



Bayle_ Mas devo acreditar seriamente que este é o melhor dos mundos possíveis?

Leibniz_ Mas é claro! Se não fosse, Deus teria escolhido outro!

Céptico_ Mas por que carga d'água é que sabemos que o mundo existe?

Descartes_ Porque Deus não nos iludiria!

Céptico 1_ Mas afinal o que é Deus?

Crente_ Bem, não sabemos.

Céptico 1_ Mas não é mais fácil admitir simplesmente o conhecimento objectivo?

Céptico 2_ Bem, isso é o que o homem comum, todos nós, faz efectivamente! Pelo menos, quando não está a escrever filosofia.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Não sabemos o que é um erro...

A propósito do erro...

Reconheço que erro quando estou num ponto em que já não estou em erro. Quando sei que errei, suponho que não erro ao identificar o erro. Enquanto erro suponho que não estou em erro. Pois quando reconheço o erro, como foi dito, suponho que não erro nesse reconhecimento. De tal modo que, quando estou no erro, quando reconheço o erro e quando não estou em erro - em todos estes casos, julgo não estar em erro. Vemos o erro sempre como qualquer coisa de passado. Qualquer coisa que já foi. Do ponto de vista em que olhamos para o erro julgamos ter já corrigido o errado, de tal modo que supomos estar certos ao apontar o erro. Mas é quando estamos em erro que não vemos que estamos em erro. Se, no entanto, estávamos em erro e agora não estamos, se umas vezes erramos e outras acertamos e se enquanto erramos não sabemos que erramos, e enquanto acertamos julgamos que acertamos tanto quanto o pensamos quando erramos, o que é que impede que erremos quando julgamos sobre os momentos de erro e de não erro?

domingo, 25 de novembro de 2012

Leituras de Fenomenologia

A propósito da consciência... Gewissen:

"[O Si] não é universal no conteúdo do acto, pois este, devido à sua especificidade, é intrinsecamente um caso particular: é na forma do acto que a universalidade reside."
Hegel, Fenomenologia do Espírito, §654

Não é neste ou naquele acto que reside a universalidade, ou seja, um acto particular, na medida em que é particular, aquilo que nele está em causa, não é passível de reconhecimento em forma de dever.

Tendemos a compreender isto como naqueles casos em que podemos dizer que há excepções. Aí negamos que o reconhecimento e a validação do acto resida na sua forma. Ou melhor, supomos que aí negamos a forma como dever ao dizermos que, por exemplo, não se pode afirmar que roubar é errado em geral. Pensamos que, ao dizer que há situações em que é um dever roubar estamos a dizer que cada caso é um caso, e que é precisamente na especificidade de cada caso que reside a validade ou o reconhecimento desta. Mas esta compreensão é equívoca.

Na verdade, nenhum reconhecimento de um dever pode residir num caso particular enquanto caso particular. O significado do acto não reside em nada de específico, nada de concreto, nada de puramente contido num caso. Mesmo quando dizemos que roubar pode ser um dever, estamos ainda a referir o caso particular a um significado, estamos, por exemplo, a dizer que, em certos casos roubar não é roubar, mas outra coisa. E este significado é formal.

Se de facto cada caso fosse um caso para nós não haveria nada nele que nos permitisse um reconhecimento, uma validade. O caso nem seria, de facto, um caso. Mas, encurtando a análise, mesmo superficialmente, nada do que é feito, analisado pelo seu conteúdo apenas, admitindo que isso seria possível, conteria alguma coisa como um dever. Pura e simplesmente não haveria nada a dizer do que se faz senão que foi feito.

O que eu posso dizer é que cada caso deve ser avaliado. E é formalmente que um caso é universal. Na sua forma ele pode ser reconhecido pelos outros como procedendo de uma convicção de uma consciência.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Leituras da Fenomenologia do Espírito

A propósito do Iluminismo:


No Iluminismo, a consciência regressa à certeza sensível porque todas as formas de consciência além da certeza sensível se mostraram inválidas. Esta prova é, de facto, uma prova negativa, mas a razão não é aqui capaz de outra prova, pois a verdade positiva da certeza sensível é, justamente, o conceito como objecto para a consciência. A sua verdade positiva é o ser-para-si própria imediato: cada consciência encontra a certeza absoluta de que ela mesma é, a certeza absoluta de que existem outras coisas fora dela mesma, e de que o seu ser natural é, tal como o das outras coisas, absoluto. Nesta forma de consciência que é essencialmente inteligência a razão regrediu à certeza sensível, tomando esta certeza como resultado assegurado na própria certeza que ela é imediatamente. Na verdade, tudo para o Iluminismo se compreende num mesmo sentido, isto é, como coisa real. No imediato da coisa real a consciência assegura-se da sua essência, e desse modo compreende-se a si-mesma e a tudo o que ela não é dessa mesma forma: como coisa real.

O apego ao mundo

A propósito do mundo...


“Assim é a morte em si mesma. É preciso que primeiro a sofras, antes que o espírito que vivifica possa vir. Quando, por vezes, um ou mais dias, me sinto cansado, abatido, incapaz de um esforço e – não se pode dizer? – quase aniquilado, suspiro para mim mesmo: «Oh! Dai a vida; eu preciso da vida!»; ou quando, quase ultrapassado nas minhas forças, me parece que já não posso mais; ou quando, por um certo tempo, me pareceu que estava votado ao fracasso e que me afundava no desencorajamento, então eu suspiro para mim mesmo: «A vida! Dai a vida!» Mas daí não resulta que o Cristianismo acredite que seja disso que eu preciso. Suponha que ele tem um ponto de vista diferente e que diz: «Não, morre por completo primeiro; o teu mal é estares apegado egoisticamente à vida, a essa vida a que tu chamas um tormento, um fardo: morre por completo!»”

Kierkegaard, Para um exame de consciência recomendado aos contemporâneos, XII, 418

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Leituras da Fenomenologia do Espírito

A propósito do Iluminismo (Die Aufklärung)


Ora, a Inteligência toma-se por universal e afirma que todo o sujeito é razoável. Mas ao envolver-se em lutas contra aquilo a que chama superstição, então ela só pode estar a atacar-se a si mesma. A sua essência, segundo o que ela mesma é explicitamente para si mesma, deve conter o “outro” em si mesma. 
Quando ela luta contra o “outro” é contra ela mesma que ela luta, porque ela é também esse outro. Ela não tem mais nada para atacar, excepto a sua própria negatividade. Isto mostra que ela é negatividade absoluta. Ou seja, quando afirma que todos possuímos uma razoabilidade universalmente distribuída, e depois se lança no combate contra formas em que não se reconhece a si mesma, a Inteligência deveria reconhecer que a universalidade da razoabilidade é isto e aquilo, outra coisa ou ela mesma. Afinal, somos todos razoáveis, mas isso não impossibilita todas as formas de não razoabilidade contra as quais a Inteligência se digladia. Que permaneçam formas contra as quais a Inteligência luta deveria mostrar-lhe que ela não diz nada quando afirma que a razoabilidade é universal. Nessa afirmação de universalidade a Inteligência não põe nada de novo, e por isso mesmo o conceito de razoabilidade não corresponde a nada que ela possa apontar. Na verdade, não só com isso não põe nada de novo, como não explica nada daquilo que já havia: a disparidade entre os indivíduos. 
Não há nenhum esclarecimento novo senão mais uma forma de consciência, que é a própria Inteligência, que assim se vem juntar à imensa diversidade de formas que existiriam mesmo que ela não reivindicasse a universalidade da sua própria forma.
Aquilo que é novo na Inteligência é precisamente a sua forma enquanto ela é consciência em si e para si. E, enquanto tal, ela é também um modo da consciência de si, e um modo racional, é o espírito mais característico da Cultura...

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O mundo e a cebola: polícias e cidadãos

A propósito de coisas do tempo...


No dia-a-dia há tantas camadas sobre as coisas, tantas camadas a dificultar a apreensão - que as tentativas para apreender o que está obstruído são invariavelmente compreendidas como sendo chatas, excessivas e irrelevantes. Se se tentar apurar o que está muito fundo, as pessoas chateiam-se. Por diversas razões. Muitas vezes, o próprio que está a escavar se cansa.

Vejamos um exemplo:

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Um Governo leva a cabo medidas tão impopulares que os próprios polícias desejam fazer greve e fazem manifestações. Toda a população está descontente.

É marcada uma greve geral...
No dia da greve, durante uma manifestação dos cidadãos contra as medidas do Governo instala-se a violência.

As pessoas que estão na manifestação atiram pedras e fogo aos polícias. Atiram muitas pedras. Os polícias suportam a situação durante mais de uma hora...

Até que é dada a ordem e os polícias avançam sobre a população. Avançam e perseguem ao longo das ruas adjacentes...

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Nisto dos polícias contra os cidadãos verifica-se aquilo que Kierkegaard dizia: o mundo julga o cristianismo como uma bebedeira, o cristianismo julga o mundo como uma bebedeira. 
Falar em polícias e em cidadãos corresponde a um modo de ver as coisas. Outro modo é falar de cidadãos em geral - que também os polícias são (mas não enquanto polícias, relembra-nos o ponto de vista anterior). Então o que há de verdade em cada uma destas palavras, "polícia" e "cidadão"? Porque não se tratam só de palavras.
Os polícias foram apedrejados, mas enquanto cidadãos sofrem com a austeridade tanto quanto (talvez não "tanto", porque de facto têm emprego) o resto, tanto quanto os que estão à sua frente.
Enquanto autoridade não se deve apedrejar a polícia - rejeitar a autoridade seria o quê? Enquanto há um cidadão por debaixo do polícia também não deve ser apedrejado.
Atingir o polícia, não é atingir os responsáveis. O polícia só cumpre ordens.
Enquanto o polícia defende um estado de coisas injusto, vencê-lo é necessário para atingir o Estado. Vencer este estado de coisas justifica apedrejar quem o defende.
O polícia é também cidadão: quando bate esquece-se de quem era antes de entrar ao serviço; quando bate já não é uma consciência. Quando bate ele é um instrumento. Mas isso não o desresponsabiliza (ele bem pode usar essa desculpa para si mesmo), mas perante nós, ele DEVE TER CONSCIÊNCIA. Se o polícia bate quando o cidadão está a exigir justiça, a justiça que o próprio cidadão que também é polícia reconhece - nesse momento o polícia é uma máscara, o cidadão que também é polícia é um hipócrita.
Se a luta é justa, então o cidadão que também é polícia não se deve apresentar ao serviço. Tudo o que decorrer de ele se apresentar ao serviço é já uma perversão da consciência.

E há ainda uma outra forma de ver as coisas: há polícias e há humanos.
Enquanto há polícias têm o dever de manter a ordem, o homem sofre violência pelo seu próprio bem, em nome da sua segurança. O polícia é o braço seguro do Estado que confina o homem protegendo-o contra a natureza, contra os seus iguais, e mesmo contra si mesmo.
Mas o homem é humano e, como tal, ser aprisionado não lhe retira a sua natureza. A polícia é o homem que exerce sobre os homens a autoridade do Estado em forma de força. O polícia é a força do Estado, e neste sentido, ele bate quando o Estado bate. É o Estado que age, em nome dos homens.
O homem que é polícia é também humano. Não gosta de apanhar. Chateia-se se lhe atiram pedras. Mas é o Estado que legitima, que justifica a defesa da autoridade agredida. A agressão à autoridade é crime.
Mas o homem que é polícia tem o ser polícia como uma possibilidade. Quando ele simplesmente cumpre a autoridade que é a do Estado, ele despiu-se de si mesmo enquanto homem. Não há autenticidade nisto, porque o humano é com possibilidades. Não bater é tão possível como bater. Cumprir ordens é tão possível como não as cumprir. O homem que é humano é anterior ao homem que é polícia, porque aquele que é polícia também é humano. E ao contrário daquilo que ele julga quando diz "Só cumpri ordens.", não deixou de ser humano quando vestiu a farda.
Deve um polícia ser julgado por crimes cometidos que foram ordenados por um superior? Deve. Mas a questão nem é essa:

O homem que é polícia também tem uma consciência, porque é sempre humano - e, enquanto é sempre sendo humano sabe por isso o que é correcto, se o perguntar a si mesmo sem abafar a resposta com máscaras (ex. polícia, cidadão, homem). Bater ou não bater? Esta pergunta já está obscurecida, porque o cidadão olha para o polícia, o polícia olha para o cidadão, e nem o polícia percebe que podia estar do outro lado, nem o cidadão percebe que podia ser polícia. Nenhum dos dois percebe que é humano antes de mais nada. Pode-se perguntar o que diz a lei sobre o que se passou. Pode-se perguntar o que diz o Governo. Pode-se perguntar o que diz o agredido. Pode-se perguntar o que dizem os que agrediram. E parece que todos foram, de um lado e do outro, agredidos.

Provavelmente ambos os lados não estão completamente certos, e é possível que não haja um meio termo mais certo - porque ocorra aqui um obscurecimento anterior daquilo que está em causa. É possível que os polícias estejam certos (em nome de serem polícias) e errados (em nome de representarem a justiça dos cidadãos), e os cidadãos certos (em nome de serem violentados) e errados (em nome de estarem sujeitos à lei), porque talvez ambos estejam a ver mal.


terça-feira, 13 de novembro de 2012

O senso comum enquanto forma do ponto de vista

A propósito de senso comum...


O senso comum é uma forma, ou melhor, uma estrutura que enforma o ponto de vista do humano...

Como forma que é pode ser ou não explícita para o ponto de vista. Na maioria das vezes, não é explícita. A sua eficácia (a sua pretensão de eficácia) sustenta-se precisamente da sua transparência. Mostra-se como doação das coisas elas mesmas, como se não houvesse mediação. O senso comum diz: a realidade é "isto". Ora, isto significa que o que aquilo que o senso comum é, não é esta ou aquela crença.

Nas aldeias do Tibete é senso comum que não se mata um animal que pode ser o nosso avô. Numa tribo de África é senso comum que o homem não tem nada que trabalhar. Numa tribo da Indonésia é senso comum que emprestamos a nossa mulher ao nosso vizinho que vem ajudar na horta. Numa tribo da ilha vizinha o desporto "nacional" é caçar seres humanos das outras tribos. Nas ilhas Fidgi é senso comum que devemos matar os nossos pais quando eles ficam debilitados. Em Portugal é senso comum que o homem e a mulher são iguais, que os idosos devem continuar a viver, e que não se devem caçar seres humanos. Numa tribo de filósofos é senso comum que se deve sempre fazer 3 ou 4 perguntas antes de concluir se o céu é azul ou roxo...

Como aquela peça de teatro em que o protagonista logo na primeira página descobre que vai morrer, e depois, ao longo do resto da peça, está sempre a perceber que vai "mesmo" morrer, e percebendo isso, de cada vez percebe que até aquele momento ainda não se tinha compenetrado "verdadeiramente" disso... nós somos assim. Os filósofos também têm o seu senso comum. O caso mais evidente é o apelo à dúvida, que é uma tradição entre os filósofos, mas que nenhum de nós faz realmente. Temos por dado que a dúvida já foi colocada por outros antes de nós e superada. Seguem-se tendências, tal como na moda. Os filósofos seguem modas, como é evidente. E o afã de estar actualizado até faz com que os termos de cada vez se uniformizem com a corrente do tempo, sob a pretensão de que já são familiares. Mas se se tentar dizer o que são realmente, respondem-nos com definições, conceitos vagos. Falamos de causa e efeito: mas o que é realmente a causalidade? Alguma vez alguém a viu? Temos o conceito, mas se forem como eu, ninguém sabe o que lhe corresponde. E assim falamos assim como se estivéssemos muito mais esclarecidos do que o agricultor analfabeto quando utilizamos conceitos como "erro", "causalidade", "verdade", "realidade"... e se nos apertarem muito dizemos o que a verdade é em Leibniz, em Descartes, em Aquino, em Platão e entretanto libertamo-nos da responsabilidade de dizer o que sabemos nós ser a verdade. Porque o mais provável é que não saibamos a que é que correspondem os nossos conceitos de verdade, realidade ou erro. Mas claro que o senso comum filosófico logo dirá: "o quê?, então não vês que o erro é quando percebes que te enganas?"

Hegel, Virtude e Retórica

A propósito de virtude no nosso tempo...

"Mas, [ao contrário da virtude do mundo antigo], a virtude que estamos a considerar tem o seu ser fora da substância espiritual, é uma virtude irreal, uma virtude apenas de imaginação e de nome, à qual falta o conteúdo substancial. O vazio da sua retórica ao denunciar o "modo do mundo" seria revelado, de uma vez por todas, se o significado das suas belas afirmações tivesse de ser determinado. No entanto, assume-se que este significado é alguma coisa de familiar. A solicitação de um esclarecimento sobre o que seja este significado familiar daria de caras com um jorro de frases ou com um apelo ao coração, o qual diz internamente esse significado - o que nos leva a admitir que a retórica da virtude é, de facto, incapaz de dizer qual é esse significado. A fatuidade desta retórica parece, de uma forma inconsciente, ter-se tornado uma certeza para a cultura do nosso tempo, uma vez que todo o interesse na totalidade dessa retórica, e a forma como é usada para puxar pelo nosso ego, desapareceu - esta perda de interesse expressa-se no facto de que ela já só produz um sentimento de aborrecimento."

Hegel, Fenomenologia do Espírito, §390

domingo, 11 de novembro de 2012

O que é que se opõe ao senso-comum???

A propósito de uma discussão que se teve... O que é o senso-comum e qual o seu oposto?

Este artigo resultou de uma discussão no Facebook

O senso comum não me parece ser o contrário do non sense, ou do senso incomum (se bem que se teria que perguntar o que é isto, se uma simples determinação estatística de algo com uma estrutura igual à do senso comum, ou se tem uma estrutura própria, mas isso é outra questão). A oposição ter-se-á que encontrar em determinações opostas - e não apenas na mera exclusão. O senso comum parece ter uma estrutura de conformação, antecipação, homogeneização que em tudo me parece opor-se ao conceito de espanto, admiração. Espanto com aquilo que, precisamente, na maioria das vezes, é comummente tido como dado.

O espantar-se de que falo não tem que ver com o espanto do senso comum... O senso comum espanta-se quando um cão aparece com seis patas, uma tartaruga com duas cabeças, quando, como diz Aristóteles, uma antecipação falha... O espanto de que falo, de que fala Sócrates, Platão, Leibniz, etc., tem que ver com o espantar-se disso mesmo que é regular. O espanto com isso que se mostra como dado, como “isto”, como o que é, como facto. Não é o espanto com uma orelha descomunal, mas o espanto com o haver orelhas. O espanto que a vida seja uma possibilidade - que aquilo que habitualmente se tem por ser um "isto", como diz Hegel, possa ser afinal algo de que não se faz a mínima ideia... Falo de um espanto que é justamente o oposto do senso comum.

O senso comum é o domínio do necessário, do que já se sabe. É o reino do se impessoal: é-se assim, faz-se assado, decide-se, vive-se no é assim. O olhar funde-se nas coisas. Esquece o acto de "ver", dilui-se no visto. Tanto assim que, por vezes, as próprias coisas se fundem na paisagem. Não vemos as coisas que estão lá todos os dias. Passamos por um caminho 10 vezes e deixamos de o ver. Quando algo se altera, quando a antecipação não é cumprida, a visão natural espanta-se, admira-se. "Pois nada espantaria mais um geómetra do que uma diagonal que se tornasse comensurável" (Arist., Met. 983a). Mas este espanto é um espanto aparente, porque o sujeito não se espanta com nada daquilo que tem por fixo.

O olhar natural não se compreende a si mesmo como possibilidade, e dificilmente compreende os pontos de vista diferentes do dele como possibilidades - senão, talvez, como possibilidades exóticas, esdrúxulas, abstrusas. Nós somos assim, todos. O senso comum não é um casaco que trazemos vestido até entrarmos para o curso de Filosofia. Não é algo que tenhamos despido simplesmente. Ninguém pense que está totalmente livre do senso comum, pois então estará mais exposto a ser envolvido nele. Se alguém julga ter-se posto totalmente fora do senso comum, então é provável que se tenha afundado demasiado nele para poder enxergar onde de facto está.

Qualquer coisa estranha num primeiro momento facilmente pode ser integrada. “Primeiro estranha-se, depois entranha-se” – disse Fernando Pessoa. Pode-se fazer Filosofia num completo senso comum. O senso comum diz: “isto é assim”. Mas se formos viver para o Afeganistão percebemos que muito do que tínhamos como “é o que há”, afinal era apenas uma possibilidade entre muitas. Tudo o que temos por certo poderia não ser assim. De facto, por que diabo hão-de ser as coisas como parecem ser?

Podemos espantar-nos, não com o que quebra a regularidade, mas com a regularidade. Mas mais do que isso: podemos espantar-nos de o nosso ponto de vista ser ele próprio apenas uma possibilidade. Podemos espantar-nos de pensarmos desta maneira que pensamos. O espanto, enquanto há espanto, é precisamente a suspensão do senso comum.

Não me parece que existam "teses do senso comum"... O senso comum não é um conjunto determinado de teses. O que em Portugal é senso comum, não o é no Afeganistão. O senso comum é uma estrutura, com certas determinações (categorias) específicas bem determinadas. Qualquer tese se pode tornar do senso comum. Poderia acontecer que o senso comum acreditasse que não existe matéria: como de facto acontece em algumas comunidades Orientais... o facto de uma tese, como a de Berkeley, ou qualquer outra, não ser senso comum é puramente acidental e poderia realmente ser de senso comum. Tudo poderia ser senso comum, mesmo aquilo que agora julgamos o mais estranho, e se pensamos de forma diferente, isso só significa que estamos no senso comum. Em Portugal achamos normal beijar um boneco de plástico no Natal, nas Igrejas e Capelas. Um hindu julgará tal gesto um pouco estranho. Mas nós achamos igualmente estranho que ele vá a templos ler papéis com frases sobre o destino. Um monge budista espantar-se-á tanto com os ritos cristãos, como um monge cristão com os ritos budistas. Um pensa que o outro é estranho. E podemos pensar em povos que têm modos de vida realmente exóticos. E eles pensariam o mesmo do nosso modo de vida. É esta a essência do senso comum: há um “é assim” normal, e há pessoas que se comportam de modo estranho, certamente devido às suas crenças absurdas. O senso comum dita: “isto é normal”, e logo julga: “que coisa tão estranha dormir em camas de pregos, ou furar os lábios, ou ir à missa, ou viver a correr, ou viver a andar, ou…”.

E qualquer coisa parva poderia ser facilmente integrada. Uma coisa muito parva agora é uma coisa que amanhã nos pode parecer normal. Até uma certa altura histórica era normal casar de vermelho, porque o vermelho significa fecundidade. Mas de repente, porque uma rainha casou de branco, passou a ser normal casar-se da forma que antes era parva. Agora todas as noivas se querem casar de branco, e se alguma se casar de vermelho é porque é estranha. De resto, o próprio senso comum pode tornar-se num constante desejo de inovação, numa aparente rejeição do senso comum. O senso comum é uma forma do ponto de vista em que se está, de tal forma que configura, de modo transparente, a perspectiva. Este ser transparente é uma determinação do senso comum. Por isso, de facto, o senso comum não se opõe à ciência, muito menos se opõe ao verdadeiro, nem sequer ao absurdo.


Antes de ser comum casar-se de vestido branco, era normal casar-se de vestido vermelho. Aquilo que chamamos absurdo é, como é bom de ver, chamado absurdo a partir do senso comum - ou seja, faz parte da sua estrutura. É de senso comum que há coisas parvas, como por exemplo eu, vivendo em Portugal, ir para a Escola vestido de kilt. Repito: o senso comum é uma “forma”, no sentido técnico do termo.

O senso comum não é igual em todo o lado. Com toda a certeza que há pessoas para quem o senso comum é: que as transfusões de sangue são pecaminosas... O senso comum não é isto ou aquilo. Nem é aquilo em que todos os ocidentais acreditam, nem aquilo em que todos os chineses acreditam, nem aquilo em que todos os humanos acreditam... O senso comum não é esta ou aquela tese, mas também não é uma espécie de eleição, do tipo: “ora vamos lá ver em que é que mais gente acredita”. De resto, se se tentar determinar o senso comum como aquilo em que todos acreditam, vai-se ver que não há nada disso...

O senso comum é uma "forma". Não há nenhuma tese que se oponha ao senso comum, enquanto senso comum... O senso comum com certeza diz que a tese de Berkeley se opõe ao senso comum. Mas o senso comum amanhã pode dizer exactamente o contrário. Aliás, o senso comum chega mesmo a afirmar com todas as suas garras que não quer ser senso comum (como já se mencionou). Pode-se ser contra o senso comum por senso comum. Pode-se querer ser diferente como toda a gente quer ser diferente. Aliás, uma pessoa pode ter um conjunto de crenças em que mais ninguém acredita e estar totalmente no senso comum.

Note-se que: precisamente o que não interessa é O QUÊ que o senso comum pensa ser senso comum. Note-se que: o que interessa é perceber que o senso comum é FORMAL.

O próprio “overthinking”, pensar demaisiado, ou, como se diz, racionalizar, é apenas uma manifestação do senso comum. É uma moda. Se se quiser ver como o overthinking pode ser uma moda comum, basta ler os diálogos platónicos, por exemplo, Protágoras ou Hípias Maior, ou, mais explicitamente, o Eutidemo. Mas também a Confissão Pública de Kierkegaard ou o Johannes Clímaco ou De Omnibus Dubitandum Est. O filósofo pode fazer filosofia como se faz filosofia. Vai na corrente do seu tempo. Pensa como é do seu tempo pensar. E pensa mesmo que nisso reside a autenticidade do pensar-se. Como se fosse preciso abrir o jornal filosófico do dia para saber como se há-de pensar. Todos conhecemos filósofos assim. E são, realmente, os mais lidos, mais conhecidos, mais defendidos: porque, precisamente, dizem o que se diz. Tem-se o "não necessariamente" na ponta da língua, como igualmente é moda ter na ponta da língua que "devemos ser nós próprios", e às tantas repetições a propriedade dos termos perdeu-se num dizer comum que todos assumem dado e ninguém perde tempo a apurar: fazem overthinking, mas de facto nem se apropriaram ainda dos seus fundamentos. O senso comum é uma forma de compreender tudo sem se ter apropriado disso (independentemente de se estar certo ou errado, porque aqui estar certo ou errado, na medida em que falta apropriação, nada significa). O senso comum é a forma do já decidido, do que se compreende em comum, do "é assim que as coisas são". É formal: as coisas são assim como são, porque delas se fala assim - sendo que esta estrutura é precisamente o que não se mostra, porque sendo uma forma, o senso comum é transparente, ou seja, apresenta-se como mostrando as coisas como elas são, como se o ponto de vista não fosse um ponto de vista e aquilo que se tem não fosse uma perspectiva, mas si as coisas elas mesmas. Como se tudo já tivesse sido apropriado, quando na verdade o senso comum nunca disso se apropriou porque nunca sentiu necessidade disso (como Platão bem analisa, por exemplo, no Alcibíades Maior - ver a partir de 109d). O senso comum apresenta como prova do que diz aquilo que, justamente, pretende provar ao dizer: "então vê lá se fazes desaparecer a bengala se te der com ela". Ou seja, se lhe pedimos que prove isso que diz ele limita-se a apontar para isto, pois a sua tese é exactamente a de que isso é auto-evidente.

O senso comum é, repito, formal, um εἶδος. E por isto as possibilidades que encontro para seus opostos são: o θαυμάζειν (espantar-se, admirar-se); ou então a ἐπιστήμη, no sentido aristotélico do termo (mas traduzir isto por ciência desvirtua completamente a coisa ela mesma porque pensamos na nossa ciência, e não naquele ponto de vista que Aristóteles tão bem determinou e concluiu que nós absolutamente NÃO temos). Mas há um aspecto a reter: o que nós podemos com certeza fazer é espantar-nos. Portanto, de entre aquilo que podemos supor estar nas nossas possibilidades, o contrário do senso-comum é o espantar-se. A ἐπιστήμη é algo que, pelo menos por enquanto, não podemos saber a que é que corresponde. Podemos estabelecer o conceito, mas não preenchê-lo.





sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Nós mesmos e a pretensão constitutiva do nosso ponto de vista

A propósito de nós mesmos e das coisas...


"E, de facto, ignoramo-nos a nós mesmos envolvidos sob a geração do esquecimento, e sob a confusão das formas de vida incapacitantes-de-razão; entretanto, julgamos conhecer muitas coisas, das quais estamos ignorantes, por possuirmos já em nós princípios das razões das coisas."

Proclus (ou Proclo), Comentário a Alcibíades


Este pequeno trecho é pleno de determinações. Deixemos aqui apenas o mais claro. Claro do ponto de vista de Proclus, pois, como é claro, nada disto é claro para o ponto de vista natural.


1.º - Ignoramo-nos a nós mesmos e isso parece dever-se a duas razões, ou pelo menos a duas;

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2.º - Ignoramo-nos porque:  - nos encontramos envolvidos, dominados - porque nos encontramos a lidar sob a geração do esquecimento, do ocultamento (o termo grego que consta aqui é λήθη: o contrário do termo grego para verdadeiro, ἀλήθης - em grego, a verdade é ἁλήθεια, desocultamento);
  - nos encontramos sob as formas de vida incapacitantes de razão (o ἄλογον, 'álogon', é o que é incapaz de dar sentido; tem-se sempre a tentação de traduzir por irracional - este assunto não pode ser aqui devidamente esclarecido); note-se que Proclus não está a dizer que estamos a ser dominados por animais que, por qualquer razão ignorada por nós, nos obrigam a ser ignorantes; não; as formas de vida são aquelas em que de cada vez estamos constituídos enquanto viventes; nós somos nessas formas, somos dessa forma, nós somos assim: as formas de vida nas quais nos encontramos desde logo a ser o que somos são de tal modo que devem ser categorizadas como confusão;

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3.º - Enquanto nos ignoramos a nós mesmos - ao mesmo tempo que estamos ocultos de nós mesmos -, estamos convencidos de que conhecemos muitas coisas, coisas que, na verdade, ignoramos; e isto deve-se a um motivo concreto, ou pelo menos a um motivo;

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4.º - Julgamos conhecer muitas coisas porque:- em nós estão já desde sempre os princípios (ἐνυπάρχοντας) dos sentidos (λόγους; λόγος, lógos - este termo não pode simplesmente ser compreendido como razão ou racional, pois isso implica uma série de determinações que foram sendo adquiridas pelo termo ao longo da história da Filosofia, mas relativamente às quais o termo grego era neutro); nós julgamos conhecer as coisas porque o nosso ponto de vista está de tal modo constituído que desde sempre tem o poder de dar sentido; somos capazes de sentido, e isso significa que primeiramente temos esta capacidade - ou seja, não é imediatamente que perguntamos pelo sentido das coisas, pelo contrário, o sentido delas aparece-nos como estando ; o ponto de vista natural assume as coisas, bem como o seu sentido, como dado; e é muito difícil perceber que aquilo que aparece constituído desde início como sentido das coisas possa ser apenas uma possibilidade entre outras: é isto, no entanto, que podemos perceber se pensarmos sobre a sensação de estranheza que sentimos quando viajamos para uma cultura completamente diferente da nossa, onde toda a nossa normalidade se torna, de repente, uma possibilidade longínqua, e uma outra se coloca à nossa frente.




quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A liberdade humana como liberdade da mente


A propósito da Ética, de Spinoza...

Neste artigo pretende-se responder simultaneamente a duas perguntas:
  1.ª - por que razão chamou Spinoza Ética a um livro que parece dedicar-se a tudo menos a ética? De facto, o livro começa com considerações acerca de Deus, continua dedicando-se à natureza e às ilusões do ponto de vista humano. Tudo parece indicar que nenhuma ética se poderia erigir a partir daquilo que o autor nos propõe;
  2.ª - de que forma, se há alguma, se pode falar de uma liberdade humana em Spinoza?

Parece-me que a noção de liberdade humana (“Libertate Humana”) explica a razão pela qual o livro se chama Ética. Ética (porque está para além do bem e do mal em sentido moral), demonstrada segundo a ordem geométrica, porque tem que ver com o comportamento próprio do indivíduo em relação a si mesmo, aos outros, ao mundo e a Deus. Quer dizer que as considerações acerca da natureza e de Deus não poderiam ser esquecidas, uma vez que aquilo que seja a natureza e aquilo que seja Deus está directamente conectado com a ética. As considerações éticas só se podem fazer dentro da compreensão daquilo que realmente é Deus, a natureza e o homem. Portanto a ética, para Spinoza  não é um item isolado. Aquilo que ele tinha a dizer sobre isso só poderia ser dito no âmbito de considerações mais gerais sobre a natureza. De algum modo, isso mostra uma certa compreensão do próprio ser humano – o qual não é algo ao lado da natureza, como se se pudesse escrever um tratado sobre a natureza e depois um sobre a ética. Compreende-se assim que comece com Deus e acabe com a liberdade humana (e com Deus como ponto de fuga dessa liberdade). O sábio conhece-se a si mesmo, à natureza e a Deus, e vive de acordo com esse conhecimento.

É nesse sentido que compreendo, desde logo, o prefácio da 4ª parte:
“Pois uma vez que desejamos formar uma ideia de homem como modelo da natureza humana de modo a tê-la em vista, ser-nos-á útil conservar esses vocábulos no sentido que estabeleci.” ( Nam quia ideam hominis tanquam naturæ humanæ exemplar, quod intueamur, formare cupimus, nobis ex usu erit, hæc eadem vocabula eo, quo dixi, sensu retinere.) Isto é, os termos bom e mau devem ser usados enquanto referidos ao homem, enquanto algo é útil à natureza do sujeito (e então é bom), ou enquanto é prejudicial à conservação e ao poder do sujeito (e então é mau). Mas estes qualificativos expressam exclusivamente estados mentais do sujeito, modos do seu pensamento.

Segue nas definições 1 & 2: “Por bom compreendo o que sabemos com certeza ser útil para nós.” Isto é, para chegar perto do modelo de natureza humana que pusemos à nossa frente (Cf., por exemplo, Apêndice à 4ª parte, 8: bom é aquilo que nos preserva e permite gozar uma vida racional). O conhecimento do bom pertence à nossa actividade, a sua força reside na nossa própria natureza – e também está limitada pela nossa natureza. Assim, a força do sujeito pode ser inferior à força exercida pela causa exterior: o homem pode, por isso, ser tido por perfeito ou imperfeito conforme se aproxima ou não desse modelo (cf., por exemplo, prefácio à 4ª parte).

A definição 8 diz: “Per virtutem, & potentiam idem intelligo, hoc est (per Prop. 7 p. 3) virtus, quatenus ad hominem refertur, est ipsa hominis essentia, seu natura, quatenus potestatem habet, quædam efficiendi, quæ per solas ipsius naturæ leges possunt intelligi.”
(Por virtude e potência (possibilidade, poder de) compreendo o mesmo, isto é, a virtude, enquanto referida ao homem, é a própria essência do homem, ou a [sua] natureza, enquanto tem a possibilidade de (poder de), levar a cabo certas coisas, as quais apenas pelas próprias leis da sua natureza se podem compreender.) Cf. IV, 28.

A virtude própria do homem consiste na possibilidade de levar a cabo coisas que se podem compreender através das leis da sua natureza. Isto é, delineia-se já aqui a noção de actividade: a virtude é a própria felicidade (cf. V, 42). Mas quando o sujeito é apenas causa parcial (a sua acção não pode ser compreendida senão recorrendo a causas exteriores ao sujeito), então ele é agido e não é ele que propriamente age (cf. IV, 2).

Esta contraposição que Spinoza estabelece entre ser passivo e ser activo parece-me corresponder a um novo conceito de liberdade – já não compreendida numa vontade livre de causas.
Spinoza delimita a actividade do homem por oposição à passividade.

A proposta de Spinoza é, então, tornarmo-nos senhores de nós próprios – não completamente livres de causas (o que é impossível). Estar sob o domínio das paixões é discordar da própria natureza (cf. IV, 32-35). Seguir a Razão é concordar com a própria natureza. A própria discórdia no indivíduo, bem como entre indivíduos, não é natural – pois não está na sua natureza. É enquanto se deixam dominar por factores exteriores que os homens discordam, quer de si mesmos, quer em relação a outros. Entregues à Razão concordariam com eles mesmos e entre eles.

A desocultação das inclinações permite ao homem esforçar-se por superar a sua dependência em relação ao que lhe é exterior. Cf. V, 3, corolário: “Quanto mais um afecto é conhecido, maior é o controlo que temos sobre ele”. Conhecer que tudo é necessário dá ao homem um maior controlo sobre as afecções.

Cf. V, 10. Se não estivermos sob ataque das afecções podemos conformar-nos à ordem do intelectuo. Mas o ataque das afecções não é qualquer coisa que se possa, simplesmente, suspender. O humano deve-lhes resistir, contudo não pode deixar de ser parte da natureza e, na natureza, ele é constantemente bombardeado por coisas que o afectam. Só o conhecimento das causas, o conhecimento daquilo que me move me permite distanciar do movimento para me assenhorear do caminho a seguir. Este aspecto irá ficar mais claro à frente.

Spinoza introduzirá a ideia de Deus e o amor a Deus como algo a que o homem se pode lançar activamente – e nisto parece constituir a liberdade autêntica, isto é, liberdade humana, por oposição à liberdade ilusória que, afinal, apenas impede a compreensão. A liberdade humana é qualquer coisa que se pode consumar maximamente apenas no amor a Deus, porque Deus é aquilo que se pode amar autenticamente. Tudo o mais que se ama sem conhecimento adequado apenas nos domina, não nos realiza. Na verdade, aquele que se conhece a si mesmo sabe que apenas pode amar autenticamente a Deus.

Independentemente da colocação da ideia de amor a Deus, parece-me que para compreender a noção de liberdade humana se deve atentar no que Spinoza diz sobre a ideia que um homem pode colocar como seu modelo: modelo que é o seu fim, mas também a sua medida. O humano coloca uma ideia de ser homem como fito da sua actividade e é em relação a essa imagem que ele se pode reconhecer como perfeito ou imperfeito. O homem mede-se pela sua execução disso que é a sua medida. Trata-se da identificação de uma estrutura fundamental do humano, que já é feita no Génesis, e que na Ética é recolocada: o humano como espelho/imagem.

Esta estrutura é origem de ilusões, mas é também o que permite identificar a possibilidade mais própria do humano (no caso, Deus, o amor a Deus).

Spinoza está a dizer que estamos habitualmente conformados com uma ideia de liberdade que, não só é aparente, como não podemos saber o que fosse de facto, porque não é nada de possível ou concebível. Poderíamos dizer que é um conceito irrealizado. O homem não pode deixar de estar na natureza. Só a natureza como um todo, só Deus não tem nenhuma causa, só Deus pode ser compreendido a partir apenas de si mesmo (a sua essência compreende a sua existência – isto não só significa que não pode deixar de ser, como também que todas as coisas que são, são instanciação, modo, atributo de Deus). Deus tudo contém, tudo sustem, é tudo, desde sempre. Deus é tudo o que há. Deus é toda a natureza. Na natureza tudo é eterno e necessário, nada de novo vem a ser sob o sol. O pensamento e a matéria são dois dos atributos de Deus. Mas há apenas uma substância. Sendo que tudo é Deus, e Deus é causa de si mesmo, na verdade tudo é necessário, o que é o mesmo que dizer que tudo é espontâneo. Não há uma razão outra para que o que é seja o que é, senão o poder infinito de Deus se expressar como tem necessariamente de se expressar. Deus é pura actividade, é tudo o que existe, e tudo o que existe existe desde sempre e para sempre. Não há verdadeiro começo, não há verdadeira criação na natureza. Há modos da substância. Quando o homem pensa que é livre apenas pensa algo que não sabe a que corresponde: o que seria ser a sua própria causa em sentido absoluto, o que seria ser completamente espontâneo? Afinal, isso seria ser Deus, mas não seria ainda ser livre no sentido em que o homem pensa que é livre. O que é mais espontâneo é precisamente o que é mais necessário. Portanto, a liberdade que cada um pensa que tem é pura ilusão. Mas mais do que isso: não se sabe minimamente o que seria, se fosse possível. A vontade humana é um modo do pensamento. O intelectuo é ter pensamento, é pensar, é ter ideias. Não há nada de livre nisso. Uma volição, tal como um estado mental, existe apenas na medida em que tem uma causa (cf. I, 32; II, 48).

Tudo o que acontece é necessário. Também o homem nada faz que não esteja necessitado pelas condições prévias, internas e externas. Mas o humano possui uma característica que o distingue – não no sentido em que lhe atribui algo que não seja da natureza, mas algo que lhe é próprio. Ao poder conhecer as causas do seu comportamento, o homem pode assumir um comportamento relativamente a essas causas. Não que isso seja fácil.

Como disse Ovídio, video meliora proboque, deteriora sequor, muitas vezes vemos o melhor e fazemos o pior (Cf. Prefácio à parte IV; e IV, 4: é impossível ao homem não ser parte da natureza, é impossível agir sempre de tal maneira que seja sempre a causa total das suas acções, ou seja, que as mudanças que opera possam ser sempre compreendidas apenas a partir da sua própria natureza). É mais fácil ser movido pela opinião do que pela razão (cf. IV, 17, nota a 14-17).

Mas o humano, ao conhecer-se a si mesmo, e ao conhecer as suas afecções, as paixões, as inclinações que de cada vez o afectam pode procurar agir de acordo com a sua própria natureza. Pode agir em função do melhor dos bens (cf. IV, 65). Nada disto significa que o humano se torne livre – o que há é apenas liberdade humana: a liberdade que convém à natureza humana. Não é mais nem menos perfeito enquanto coisa – mas pode compreender-se como mais ou menos perfeito em relação ao modelo. Não há de facto nenhuma causa final, mas o seu modelo é algo em vista do qual ele se compreende (não que isso seja um fim da natureza, ou um fim que Deus espere do humano, ou um fim que traga uma qualquer espécie de recompensa; não, o modelo, o fim é qualquer coisa a que o homem se vota, qualquer coisa que o homem ama, sem ter outra coisa, qualquer recompensa que seja, em vista). Isso nunca significa que o homem, ao determinar-se, se torne outra coisa, ou que, ao determinar-se, escape da ordem das causas. Entretanto, uma atitude possível face ao inevitável é a própria aceitação disso. Aceitar o inevitável parece não ser nada de extraordinário. Tendemos a considerar que quem aceitou o inevitável o fez porque não tinha opção, e desvalorizamos isso. Contudo, o inevitável é precisamente o mais difícil de aceitar. E o facto de que é inevitável não o torna mais fácil de aceitar, bem pelo contrário. Resistir perante o necessário é muito difícil. Tão difícil que a maioria das pessoas simplesmente desvirtua aquilo que é necessário e considera-o alternativo. Assim se tende a compreender uma tempestade como um castigo divino: como algo que bem poderia não ter ocorrido, se certas condições não tivessem ocorrido, mas nesta compreensão projecta-se sobre a ocorrência dessas condições um carácter condicional que elas mesmas não têm. Dizemos que se nos tivéssemos comportado bem perante Deus, Deus não nos teria castigado. Da mesma forma, dizemos que se não tivéssemos deixado a porta aberta o gato não teria fugido. E com isto entendemos que poderíamos ter agido de forma diferente, que a tempestade poderia não ter vindo, que o gato poderia não ter fugido. É muito difícil aceitar que tudo o que acontece, acontece por necessidade. Tão difícil que usamos mesmo o argumento de que: se tudo é necessário, então não vale a pena fazer nada - como se isto pudesse provar que as coisas não são como são por necessidade.

O sábio não pensa assim. Segundo Spinoza, a sabedoria consiste em aceitar o necessário – sem que esta aceitação seja menos necessária naquele que aceitou o necessário. Também este, ao aceitar o necessário, expressa uma necessidade. Querer fugir da necessidade é desejar o impossível, e desejar o impossível é algo que ninguém realmente deseja, se de facto se conhece e sabe o que lhe é impossível. Como diz Spinoza, ninguém fica triste pelo facto do bebé ser bebé enquanto é tempo de ser bebé, apesar de enquanto for bebé não saber falar nem agir racionalmente, porque toda a gente sabe que é necessário passar por essa fase. Mas é difícil ser sábio e aceitar a necessidade das coisas. Porque aceitar a sua necessidade é aceitar a sua espontaneidade. É aceitar que ordem e caos são o mesmo. Que o sentido de tudo é não haver sentido em nada.

Temos de reconhecer a honestidade de Spinoza. Neste artigo não pretendemos apresentar qualquer crítica. Pretendemos apenas mostrar o seu pensamento. Teríamos algumas críticas a fazer. Mas queremos, sobretudo, realçar que ele se move em terreno muito movediço, perigoso, íngreme. Foi fundo na compreensão das coisas e da própria natureza humana. É difícil encontrar um filósofo, e muito mais difícil encontrar um não filósofo, capaz de ser tão honesto. 

Spinoza redefine a noção de liberdade como liberdade humana, fundada na mente humana, na razão, na capacidade de compreender os processos da necessidade. A liberdade humana é compreensão das causas e é actividade. Ao compreender as causas que actuam sobre mim posso comportar-me relativamente a elas – por exemplo, perceber que a liberdade que julgava possuir ao seguir um apetite não é verdadeira liberdade permite-me não seguir esse apetite. Este é um poder que eu ganho. Poder é aquilo que eu, se me conhecer realmente, sei que quero. E só aquilo que eu sei que seguramente me traz uma vantagem deve ser considerado um bem. Devo libertar-me, por isso, daquilo que parece inicialmente um bem, mas que não o é. Compreender permite-me identificar os meus desejos mais autênticos e seguir por esse caminho, o caminho da minha natureza.

Dizer que alguém actua por virtude significa que o sujeito em causa vive conduzido pela razão, procurando a sua própria vantagem – mas esta vantagem deve ter sido esclarecida pelo próprio, tendo em conta a natureza do humano e a natureza das coisas. Dada a natureza do humano, há coisas que não representam nenhuma vantagem.

Há homens que se suicidam, com certeza procurando nisso uma vantagem – mas essa vantagem foi um erro de perspectiva, porque nada na natureza do homem o atrai para aí uma vez que nenhuma vantagem real lhe advém do suicídio. Se o homem perceber que não são as coisas que o atraem, mas que é ele que quer preservar-se, quer incrementar o seu poder, as suas possibilidades, então pode-se libertar da acção das causas exteriores. Por muito difícil que isso seja, e é de facto muito difícil. Mas isso pode ser conseguido pela força da natureza do sujeito – quanto maior for esta, mais o sujeito se poderá libertar. Quanto mais se libertar, mais poder tem. Assim, no limite, o que estabelece a condição da liberdade humana é a força do sujeito, o seu poder, não a força da causa exterior. Temos inclinações, mas algumas são prejudiciais, e apesar de serem fortes e muitas vezes nos dominarem, isso apenas significa que o nosso poder é mais reduzido que o poder das inclinações prejudiciais. Estas inclinações são provocadas por causas exteriores. O vinho é uma causa exterior. Mas não é o vinho que realmente me puxa. É a minha inclinação que me move. E saber dominar esta inclinação não é nada fácil. O sábio sabe que pela força da razão nós pode seguir sempre o melhor dos bens apresentados, segundo a natureza humana, não segundo as causas exteriores. Deseja grandes coisas, deseja as melhores e segue as melhores. Ser livre é, afinal, meditar na vida (cf. IV, 65-67).

A liberdade humana não é qualquer coisa com a qual o humano nasceu (cf. IV, 68): nem se nasce com a liberdade de não se ser necessitado, pois esta é apenas uma ilusão; nem se nasce com a liberdade autêntica de compreender tudo a partir da razão, pois esta é uma tarefa do humano. O homem livre é aquele que se esforça por se entregar a ser conduzido pela sua própria razão – ou seja, aquele que age de tal modo que, tanto quanto possível, as suas acções possam ser compreendidas a partir da sua própria natureza, e não a partir de causas externas. Nada disto significa que há duas naturezas, uma humana, outra natural – nem que o humano evolui para ser outra coisa que ele mesmo não era de início. Tornar-se livre não é tornar-se Deus, não é deixar de estar na natureza. Não é deixar de ser humano. Pelo contrário, é ser humano. É, na verdade, realizar um modelo de humano.

Penso que é por isso que o livro se chama Ética. Porque tem um percurso que indica um caminho. Faz a análise de diversas possibilidades. Identifica a possibilidade mais própria do humano tendo em conta os seus desejos mais próprios, tendo em conta a sua própria estrutura. Afinal, se o humano é uma imagem, como diz no Doença para a morte, Kierkegaard, não é a mesma coisa ser à imagem de uma vaca ou à imagem de Deus.

Mas o mais importante de toda a Ética parece-me ser, precisamente, a última proposição (e respectivo escólio). A liberdade autêntica como liberdade da mente (Mentis Libertate) não pode estar dependente, se ela é alguma coisa, de determinações exteriores, de tal modo que a própria felicidade não pode ser compreendida, se ela tem algum sentido, como consequência ou recompensa. A liberdade e a felicidade são o mesmo, sendo a felicidade a perfeição da liberdade. Por isso mesmo, nos termos de Spinoza, são o mesmo. Essa igualdade corresponde à paz da mente, ao estar de acordo consigo, com a natureza, com Deus. Claro que, qualquer coisa como isto raramente se encontra e é muito difícil – Spinoza (Sed omnia præclara tam difficilia, quam rara sunt) lembra-me Simónides (PMG 542: ἄνδρ' ἀγαθὸν μὲν ἀλαθέως γενέσθαι χαλεπὸν, para um homem tornar-se verdadeiramente bom é difícil).

A liberdade é felicidade; a felicidade é um género de conhecimento; ser feliz é ser livre, porque ser feliz é compreender e compreender é ser livre. Coloco aqui a tradução inglesa: “Happiness is not •the reward of virtue; it •is virtue.[…] The more the mind enjoys this divine love = happiness, the more it understands (by 32), that is (by the corollary to 3) the greater its power over the affects, and (by 38) the less it is acted on by bad affects. So because the mind enjoys this divine love or happiness, it has the power to restrain lusts. And because human power to restrain the affects consists only in the intellect, no-one enjoys happiness because he has restrained the affects. Instead, the power to restrain lusts arises from happiness itself.” A felicidade só pode ser concebida como uma recompensa se o exercício da liberdade, se o exercício do poder de agir for concebido como um fardo. A maior parte das pessoas pensa assim: que limitar o poder dos seus apetites é um fardo, e por isso considera que, para agir segundo a moral, deve existir um qualquer prémio. Mas, segundo Spinoza,  a felicidade consiste no próprio poder de ser causa das próprias acções - nisto o homem pode ser imagem de Deus. Aumentar este poder é a própria felicidade.


O problema parece ser, então, que, dada a compreensão que Spinoza tem de Deus, da Natureza e do Homem, podemos sempre perguntar: afinal, para quê tudo isto, para quê uma ética? O próprio Spinoza respondeu que estas perguntas derivam de um erro de perspectiva. Na medida em que não há um para quê que enforme o humano, o homem não se deve compreender como um para quê, como se fosse mais um utensílio que pode ser usado com um fim. A ilusão consiste em pensar que Deus criou o Homem com um fim. Para Spinoza, pensar que, não havendo um fim, não havendo imortalidade da alma, nem recompensa nem castigo no depois-da-morte, isso significa que todas as possibilidades são igualmente válidas, corresponde a um absurdo: é como pensar que, uma vez que não há vida depois da morte, então é igual comer saudavelmente ou beber veneno. Esta objecção é um absurdo que nem merece resposta (V, 41, Scholium).


A única crítica que farei aqui é esta: mas, sendo assim, não poderemos de facto perguntar-nos por que não beber o veneno?

terça-feira, 6 de novembro de 2012

O erro...

A propósito da infinita revisibilidade do ponto de vista natural...

Sócrates para Alcibíades (110c)
Também quando eras criança julgavas conhecer, assim parece, o justo e o injusto.

ὤιου ἄρα ἐπίστασθαι καὶ παῖς ὤν, ὡς ἔοικε, τὰ δίκαια καὶ τὰ ἄδικα.


Fazemos aqui tão simplesmente um apontamento: Sócrates realça aqui dois aspectos (entre outros) fundamentais que constituem o ponto de vista humano natural. 

1.º: não fazemos a mínima ideia do que seja o "erro";

2.º: estamos completamente convencidos de que sabemos isso.


A criança está convencida de que sabe o que é justo e injusto. Está convencida de que o sabe. Mas, se ela estiver errada, será que está em condições de o perceber?

Estarmos errados é condição suficiente para percebermos o erro em que estamos?

Não; na verdade, podemos estar perante o erro mais colossal e não o vermos.

Esta determinação do nosso ponto de vista é responsável por uma outra: a infinita revisibilidade do nosso ponto de vista.

Sabemos que já corrigimos o nosso ponto de vista várias vezes; estamos cientes de que já errámos muitas vezes. Mas permanecemos cegos para o facto de nos encontrarmos exactamente nas mesmas circunstâncias formais em que nos encontrávamos antes: simplesmente, podemos estar errados ainda e sempre...

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Kant, comentando o terramoto de Lisboa...






"O Homem não nasceu para construir cabanas eternas neste palco de vaidades”






Um tópico da antropologia de Kant

A propósito de Melancolia em Kant:


"O temperamento melancólico: aqui predomina um descontento vital. Mas não é este o aspecto fundamental do temperamento melancólico, caracterizado por lhe serem caras e duradouras as impressões afectivas. A melancolia deriva desse descontento vital, o qual se deriva, por sua vez, de quão profundamente batem as impressões no seu ânimo. Por isso se fala de melancolia profunda, pela intensidade das suas sensações. Concede a tudo uma importância desmedida."

Kant, Antropologia prática (segundo o manuscrito de Mrongovius)


"Aquele que está disposto na melancolia (não o melancólico; porque isto significa um estado e não a mera inclinação para um estado) dá a todas as coisas que dizem respeito a si mesmo uma grande importância, encontra em cada coisa razão para a ansiedade, e começa por dirigir a sua atenção para as dificuldades, ao contrário do que tem carácter sanguíneo que começa pela esperança do sucesso dos que querem subir; por isso aquele pensa também profundamente e este apenas superficialmente. Dificilmente promete alguma coisa: porque cumprir a palavra é para ele algo de sério, mas o poder cumpri-la é duvidoso. Não que tudo isso suceda por razões morais (pois aqui se fala de motivos sensíveis), mas por causa dele mesmo. A contrariedade afecta-o inconvenientemente, e por isso mesmo se faz ansioso, desconfiado e duvidoso, caracterizado também por uma incapacidade para a alegria. - Aliás, esse estado de espírito, quando é habitual, torna-se oposto, pelo menos quanto a encontrar estímulos para isso, ao dos Filantropos, que é mais próprio dos temperamentos sanguíneos: porque quem está privado da alegria em si [como é o caso dos que têm disposição melancólica], dificilmente a concede a outro."

Kant, Antropologia em termos pragmáticos, 288 (ed. da Academia, VII)
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