quarta-feira, 4 de julho de 2012

A Torinói ló

A propósito de O Cavalo de Turim... uma breve análise filosófica...

Declaração de intenção

Nesta breve análise não se pretende comentar a obra enquanto aglomerado de várias técnicas, excepto na medida em que possa servir a análise filosófica...


Breve análise Filosófica de O Cavalo de Turim, de Béla Tarr

Este é um filme diferente: diferente dos filmes comerciais. Claramente europeu pelo estilo lento, compassado, compenetrado. O seu motivo é evidentemente filosófico e não procura admirar facilmente nem agradar imediatamente. Aliás, tem um travo repulsivo que inquieta e incomoda, como uma pedra no sapato da qual nos queremos desfazer... Este filme exige-nos um cuidado suplementar: nem tudo o que incomoda é mau, e este filme não é com toda a certeza mau. Mais: vale a pena ver, vale a pena suportar as mais de 2h30 min. para alcançar o final. Este é um filme de final, porque é um filme filosófico, e por isso tem de facto algo a dizer que só é realmente dito quando o final vem sobre todo o filme dando-lhe um fim.

Cuidado: este filme é muito, mas mesmo muito inquietante. O filme é chato. É provável que cada um pense uma dúzia de vezes em abandonar a sala. Como tudo na vida, tem camadas de sentido; como tudo na vida há desistentes e resistentes. E este é, com certeza, um aspecto do filme que não é irrelevante: é deliberada essa busca pelo que inquieta vagamente. Pelo contrário: alguns dos filósofos mais contundentes que conhecemos são simultaneamente os mais penetrantes, incisivos, reveladores... O ferrão acutilante do filósofo é proverbial e remonta a Sócrates, mas Nietzsche não ficou conhecido por ser bonacheirão. Acontece com os filósofos o que se passa em geral: o que ferre é isolado, reprimido, expelido. Este filme não baterá recordes de bilheteira.

O filme tem narrador e começa por contar, de forma mais ou menos atabalhoada, a estória famosa do enlouquecimento de Nietzsche. Numa rua onde um cavalo era chicoteado Nietzsche intercede pelo animal e cai doente. "Não se sabe que fim levou o cavalo". De facto, do cavalo a história não reza mais do este pouco. Ao contrário, sabemos o que se passou com Nietzsche: os anos que viveu, quem cuidou dele, quando morreu. Mas o filme não reza sobre o filósofo, apenas sobre o cavalo.


O que é que é inquietante no filme???

O filme não é inquietante pelo sangue ou pela violência das imagens. Pelo contrário.
Começa com uma narração, sem imagens. Surge o cavalo, já a caminho, com o cocheiro. O som é introduzido, o trote... Os primeiros minutos revelam o mote: a duração dos planos, a permanência das cenas, a repetição das imagens, dos sons... a música circular, o contínuo retorno das mesmas coisas num devir interminável. O som é estranhamente repetitivo, maquinal. A sua característica principal é a ausência da voz: a voz humana é parca, quase não participa no filme, o discurso explícito não existe, quase.
Tudo isso é inquietante e parece ter sido concebido para fatigar, ou melhor: para enfastiar. Perturba. Aparentemente, é um filme calmo, que não nos incomodaria, mas incomoda, não porque nos agrida com cores vibrantes ou imagens pungentes. É a envolvência criada pela música, pelos sons que estão e pelos que não estão. A humanidade parece faltar no filme. O cavalo dá o título e o início do filme. Os homens faltam. Tudo isto se avoluma ao longo do filme: a ausência de humanidade, a falta de discussões, de conversas, de palavra. No início era a palavra, do narrador, que nos introduzia o cavalo, o episódio com Nietzsche. Mas a palavra é o que mais falta neste filme.
O filme continua, dia a dia. Vemos cada dia por si, isolado explicitamente. Cada dia oferece as mesmas cenas, a mesma andança, as mesmas tarefas. Tudo tão automático como o tempo e o clima. Há a insinuação do tédio: de circunstância. Presos dentro de casa, olham pela janela o movimento da tempestade lá fora. A tempestade, o vento avassalador é constante, omnipresente. O mesmo. É sempre o mesmo. A mesma borrasca, o mesmo assobiar lá fora, a mesma rotina das personagens e o tempo que quase nada de novo traz. As excepções confirmam o que é regra. Aparece um vizinho, caminhante na tempestade, muito semelhante à imagem que possuímos do cínico Diógenes (aquele que em plena luz do dia acendia uma lanterna e procurava o humano - ver Diógenes Laércio, A vida e o pensamento dos filósofos ilustres, VI, 41). Aparece ainda um grupo de ciganos. Ambas as aparências ganham contornos de fantasmas pelo contraste com o resto do filme. O visitante porque fala. Os ciganos porque são animados, radiantes, vivos...
Tudo no filme exala rotina, repetição, cinzento. A tela sempre em tons de cinzento. É um ambiente desolador. Desumano, agreste. Ou, talvez, humano, demasiado humano.
O filme inquieta sobretudo porque não há nada de concreto a inquietar-nos. Não são as palavras ditas, as imagens violentas, nada disso. É inquietante, sobretudo, pelo que não tem. Não é a tempestade que inquieta, mas a falta de movimento apesar dela. Não é o que é dito, mas a falta de coisas ditas. Não é o que fazem as personagens, mas o facto de não parecerem estar a fazer nada: nada mais que viverem a sua vida repetitiva. O filme não tem as características que tem por vaidade experimentalista, como se pretendesse explorar uma maneira de fazer filme nova. Não. A cor que não tem, o movimento que lhe falta, a luz ausente, a alegria morta, a música repetitiva não são irrelevantes para a mensagem do filme. Essas características reforçam aquilo que se quer fazer sobressair: a monotonia.



O cavalo

É o cavalo que fica doente. Não mais comerá. Não come e recusa-se a trabalhar. Mas é com ele que a filha do cocheiro demonstra afabilidade. A pouca humanidade que há no filme, há-a para com o cavalo. Da parte da filha do cocheiro, não da parte do cocheiro. O filme chama-se O cavalo de Turim, e de facto apetece perguntar onde está o homem? neste filme.

O visitante

A dada altura um viajante visita a família. Ver O viajante e sua sombra, de Nietzsche. A maioria vê mal e atende pouco ao que está mais perto (O viajante e sua sombra, §6)
É difícil de ver aquilo que está mais perto. Poucos o alcançam. O viajante chega à casa e pede uma garrafa de palinka. Ocorre a única conversação digna do nome em todo o filme. 
Quase só o visitante fala. Em modos de filósofo. É o cocheiro que lhe dá o mote ao perguntar por que não fora ele à cidade... A cidade, diz o viajante, foi destruída. O vento a destruiu. Eles a destruíram. Como? Está em ruínas. A cidade em ruínas representa a ruína da civilização. Diz o viajante que chegou à conclusão de que Deus não existe. Mais: não existe bem nem mal (cf. Para além do bem e do mal).
O viajante lembra o louco d' A Gaia Ciência que no meio da multidão procurava Deus e o declarou morto. Matámo-lo... vocês e eu! Somos nós todos, nós é que somos os seus assassinos! A questão que se impõe é: Para onde vamos nós? (A Gaia Ciência, §125). O viajante do filme mostra-se consciente. Capaz de tomar atenção, observar o que está mais perto mas nos escapa na maioria das vezes. O que é o mais difícil de tudo? Aquilo que pensas ser o mais fácil: ver com os próprios olhos o que está à tua frente (Goethe, Xenien aus dem Nachlass, 45).
O viajante visita e fala, traz notícias e opiniões, traz para o cenário o que estava expulso dele: o discorrer, o discurso expresso. Fala dos bons, dos nobres, tema tão caro a Nietzsche... os quais, cientes de que não havia nem bem nem mal, se deixaram convencer por eles... Quem são estes eles? Os mesmos que destruíram tudo (não, não foi o vento)...
Talvez tudo seja demasiado humano: falta que o humano se supere. Neste aspecto unem-se Diógenes e o louco de Nietzsche. Ambos em pleno dia buscam: um, o humano; o outro, Deus. E nada encontram. Não porque o cenário desolador não seja, de facto, humano, mas precisamente porque é demasiado humano...



Não há cidade

O viajante revelou que a cidade estava destruída. Tal como o louco de Nietzsche revelara que Deus não existe.
Já perto do final há um momento crucial, de mudança: é dia, mas cai a escuridão; a luz vai-se e não se consegue fazer com que volte. Os candeeiros não acendem, o lume apaga-se, as brasas morrem. Trevas.
No dia seguinte, parece que tudo se repetirá: o mesmo acordar, a mesma ida ao poço... mas não. O poço está destruído, não oferece água.
Primeiro a escuridão, depois a falta de água. É o habitável que se faz inóspito. O inóspito que se mostra aí onde não era conhecido, onde era ignorado. O cocheiro ordena que se vá para outro sítio. Juntam as coisas, os utensílios. Montam a carga, vão buscar o cavalo e partem... mas regressam... Lembre-se: não há cidade. Para onde ir não há. O caminho não existe...

Todos julgavam saber há muito tempo o que é o bem e o mal para o homem. Mas, afinal, ninguém sabe ainda o que são o bem e o mal... (Assim falava Zaratustra, Nietzsche).



O final e o fim

Começou o filme com a narração já referida. Seguimos depois o cavalo e o cocheiro até a casa. Uma casa de pedra, pobre, onde a ruína se insinua e é indício do fim.

O cavalo não come. O cocheiro, por sua vez, é sôfrego. Come em correria, por fome, a sua batata ainda a escaldar, lambendo os dedos. 

Tudo é sempre o mesmo. Mas há algo que começa no início do filme e que vai cavando fundo. O bicho da madeira não labuta mais. Há 58 anos que o cocheiro ouvia o seu labor que agora não se ouve. A filha pergunta-lhe porquê: ele não sabe.

Quando o poço cede, interrompe-se o curso da normalidade. De forma pouco clara, de início, mas gradualmente notória. 

Não podem mais ficar ali. Sem água falta o lar: a disponibilidade de água é uma marca, uma condição de civilização. Partem com o cavalo, mas voltam... Não há onde ir, não há ninguém para os acolher. Não têm por onde fugir.

O cocheiro come a sua batata mais lentamente e pela primeira vez não a devora completamente: sobra batata.

Cai a escuridão. A filha pergunta ao cocheiro o que é aquilo, o que é aquela escuridão: ele não sabe. Diógenes e o louco de que fala Nietzsche acendiam uma lanterna para poderem ver melhor, para trazer à vista da escuridão à força do clareamento da chama. Agora, falham todas as chamas: os candeeiros que não se deixam acender, o lume que não arde, as brasas que se apagam. Mas o cocheiro não sabe. Há no espírito duro uma falta de amanhã assustadora. Falta-lhe o arcabouço da estupefacção.

No dia seguinte não há mais repetição. A tempestade parou. A batata não será comida, o cocheiro não revela fome. Esse sintoma do qual o cavalo foi o primeiro paciente afecta agora o cocheiro que insiste com a filha: come, tens de comer, como esta tanto insistira com o cavalo: come, tens de comer.

Mas nem o cavalo, nem o cocheiro, nem a filha comeram. 

A tempestade que foi o fundo do filme, no final termina. O fim da tempestade não dá cabimento à situação deplorável da família do cocheiro. Poder-se-ia pensar que, com o fim da tempestade viria a bonança, mas não. O fim da tempestade coincidiu com o fim de algo muito mais fundamental.

Não se sabe onde iam buscar as forças para sobreviver. Mas faziam a sua rotina com a precisão de um relógio. Maquinalmente. Desapercebidamente. A clausura parecia até ser a razão de tão deplorável situação envolver o dia-a-dia daquela família. Como se, terminada a tempestade, pudessem vir aí os tempos de vacas gordas. Como se o filme estivesse a dizer que o humano está sujeito às condições naturais que o vergam e forçam a enclausurar-se. Mas não, não é isso que o filme nos diz.

Precisamente quando a tempestade acaba, acabaram também as forças do cocheiro e da filha. Foram-se. Não nos é dito, nem sugerido, de forma concreta, exactamente porquê. Não era preciso. A normalidade era ela mesma suficiente. Por que não se vislumbra nas suas vidas um raio de alegria, um fio de luz, um ponto de cor. Tudo cinzento, amorfo, indiferentemente humano, tão só humano. A infinita capacidade humana para se deixar embeber de normalidade. O regular, o mecânico por todo o lado. Uma quase fusão do humano com o seu ambiente, com o cinzento. Duas máquinas poderiam substituí-los. E, no entanto, a heterogeneidade humana é radical, insuperável. Estamos sempre à espera do momento em que cocheiro e filha quebrariam os laços da regularidade. Acabaram por ser os próprios laços a partirem-se - no momento em que a tempestade os deixava. Fica a melancolia, o tédio. Já não de circunstância: a circunstância findou, ficou a melancolia.

Que fariam eles agora? A pergunta é muito mais profunda do que parece. O que ela deixa ser questionado é o fundo humano. O que há para fazer com a vida? Qual é o caminho? Há forças para ser criador? A pergunta só pode interpelar cada um. Não é uma questão de rebanho, nem para o rebanho. É um problema de solidão, para o indivíduo. Mas por isso mesmo toca a cidade e a condição de possibilidade do seu salvamento.












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