quarta-feira, 21 de março de 2012

Ésquilo, fragmento 353 Nauck

A propósito de morte...

ὡς οὐ δικαίως θάνατον ἔχθουσιν βροτοί, / ὅσπερ μέγιστον ῥῦμα τῶν πολλῶν κακῶν » Ésquilo, frag. 353 Nauck 

Tradução: "Então não justamente odeiam a morte os homens mortais, pois é a maior defesa dos seus muitos males".

Esta sentença pode significar simplesmente que os homens odeiam sem razão a morte: não fazem justiça à morte ao odiarem-na pois ela é a maior defesa contra os muitos males dos mortais; a morte é a defesa suprema contra os males que podem acometer os mortais; quando a travessia se torna insuportável o humano encontra na morte a sua última esperança de poder acabar com tudo isso.

Nesta explicação faz todo o sentido o fragmento 90 Nauck: βίου πονηροῦ θάνατος εὐκλεέστερος - "a morte tem melhor reputação que uma vida penosa". De uma vida de dificuldades, de trabalhos, laboriosa (πονηρός pode significar ou não, já em Ésquilo, , perversa) há menos relatos favoráveis que da morte: fala-se melhor da morte que de uma vida penosa.

O fragmento 90 explica o fragmento 353. Há menos mal a dizer da morte que de uma vida sofredora, em que toda a espécie de males assola o humano enquanto a atravessa. Compreende-se, então, que a morte seja a maior defesa contra uma vida de dificuldades, seja a maior defesa contra os muitos males que se abatem sobre os humanos

Há outra forma de ler o fragmento 353. A maioria dos homens receia a morte, e este receio leva-os a precaver-se contra os males. Deve entender-se que males são tanto os seus vícios próprios, como as calamidades que de fora sobre eles se despenham. Os mortais, na fuga da morte, evitam os males que, afinal, são morte. Portanto, se os mortais levam uma vida de algum modo boa, à morte o devem. Devido à morte vivem uma vida digna. Note-se que a questão não está em aumentar o tempo de vida em dias, por assim dizer contabilisticamente, mas em fazer valer cada dia de vida (no sentido em que se pode dizer, com Raul Brandão, que mais vale um minuto na vida, que cem anos de vida).

Finalmente, há ainda (pelo menos) uma terceira leitura possível e que é a seguinte. O ser mortal é-o porque é para a morte, a morte não é um acidente, não é uma característica que um dia se lhe virá a juntar. Não. A morte é, no ser do que pode morrer, a sua mais íntima e definidora forma. A forma da vida que, em si mesma, é de tal maneira que pode sempre morrer não pode cortar a morte do seu ser. O seu ser é, precisamente, capaz de morte. Esta permanência da morte nos mortais espicaça-os a cada momento para a certeza dessa possibilidade: acabar. Acabar não é uma possibilidade qualquer, não é uma possibilidade que se possa, por exemplo, protelar indefinidamente: mas também não é isso que está aqui em causa. Simplesmente, isso mostra que a morte não é uma possibilidade como as outras possibilidades que diariamente se abrem. Na travessia da vida a possibilidade da morte está sempre aberta, de antemão disponível. Contudo, nem sempre se mostra como tal. De qualquer forma, quer se mostre quer não se mostre, a morte é a possibilidade sempre possível, certa e inalienável.

A possibilidade da impossibilidade de todas as possibilidades é a morte e, enquanto tal, a morte é a possibilidade que em cada momento nos mantém no fio da navalha: os imortais não têm momentos críticos, a sua existência não passa por momentos decisivos, pois só um ser que pode morrer pode encontrar-se na urgência de ter que decidir-se. Por conseguinte, não há razão para se odiar a morte, pois é ela que lança o mortal no gume afiado do ter de ser ele mesmo: uma urgência que, na verdade é vital. O fazer propriamente vida (abrir, criar, escolher possibilidades, separar o trigo do joio, fazer florescer o momento oportuno) é qualquer coisa que, em última análise, é colhida da permanente acção da morte, da urgência que há em ser vida.

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