A
propósito de tempo...
No
filme "o feitiço do tempo", Phil Connors é uma personagem arrogante
que fica retida no dia 2 de Fevereiro... Por volta das seis da manhã acorda,
invariavelmente, no mesmo dia.
No
início do filme, Phil é uma personagem com qual poucos de nós quereríamos ter
algo que ver. Insensível, convencido, snob, Phil repele quem com ele convive.
Pensa apenas no seu umbigo e está-se nas tintas para os outros.
Retido
no mesmo dia, acordando vezes sem conta no mesmo dia, Phil começa a acordar
para a vida. O primeiro embate é chocante. O tempo surge-lhe como incomodativo
e sente-se intempestivo, escorraçado, como se o dia em que ficou preso não
fosse o seu habitat.
De
início reage mal. Chega a suicidar-se. Mas nem a morte o salva da situação em
que se encontra. A sua única esperança - suicidar-se - não é mais uma esperança
e isso é para si o supremo desespero. "A sua vontade própria é
destruir-se, mas é o que ela não pode fazer, e a sua própria impotência é uma
segunda forma da sua destruição, na qual o desespero pela segunda vez erra o
seu alvo, na destruição do eu."[i]
Esse
desespero de não “poder libertar-se” não se mostra inicialmente senão como
repulsa perante algo que vem de fora: a repetição incessante do mesmo dia.
Curiosamente, a repetição do mesmo dia não implica necessariamente a repetição
do mesmo em absoluto. Há variações, ele pode variar o que faz.
Enquanto
ele tinha confiança na vida, ou melhor, no curso habitual da vida, essa
confiança não deixava que se levantasse o problema do desespero. A vida corria
e ele corria ao sabor da vida, sem que surgisse qualquer necessidade óbvia de
questionar o modo como a sua vida era levada, precisamente por ele mesmo.
O
que vem ao de cima então, quando Phil se encontra preso na sua vida –
efectivamente, num dia da sua vida – é que há um problema nisso mesmo que é o
levar em diante a vida. Precisamente, há muitas formas, muitos modos, muitas
maneiras de estar na vida. Percebe-se então que quando a confiança na vida se
quebrou, a sua esperança virou-se para a própria morte. O desespero para com a
vida tornou-se desespero para consigo mesmo: a morte, o fim de tudo, tornou-se
a sua esperança. O desespero cresceu então ainda mais quando nem sequer pôde
morrer. Mas este desespero tem uma diferença que não é meramente quantitativa:
é um desespero inevitável – sendo a única esperança, e não sendo possível, o
desespero é total.
Então
Phil percebe uma coisa muito importante: perante o mal extremo e inevitável há
ainda várias atitudes que são possíveis. Tal como, apesar de viver o mesmo dia
vezes sem conta pode ainda viver cada repetição de uma maneira diferente,
também, apesar de ser inevitável o encontro com a sua própria vida e consigo
mesmo, pode relacionar-se de várias maneiras possíveis consigo e com a sua
vida. A sua vida e ele próprio para si mesmo, são algo com o qual se pode relacionar. E é esta distância de si à sua
vida que lhe permite tomar a sua vida nas próprias mãos.
Phil
percebe então que, já que tem que viver e não tem outra forma de estar senão
vivendo, deve fazer com que cada momento conte. É o que se empenha em fazer:
que cada momento seja decisivo. As suas decisões vêm a partir de agora de toda
uma diferente forma de ver a vida e de se compreender a si mesmo na vida. A
vida já não é apenas qualquer coisa garantida, adiável. Não pode adiar a sua
vida porque não pode passar em diante sem viver o dia. O dia em que está é a
vida que tem, e de repente aquilo que verdadeiramente interessa torna-se-lhe
urgente. Diferente das urgências vagamente cómodas e adquiridas pela forma do
curso da vida – as urgências que agora o confrontam impõem-se-lhe pela
necessidade urgente de viver a sua vida.
Esta
urgência é simbolizada no facto de perceber que estava apaixonado pela rapariga
que o acompanhava na sua profissão. Mas mais importante do que isso, percebeu
que a sua vida é um cuidar permanente, um cuidar de si mesmo que não pode ser
trocado ou despedido. Isso não significa, como ele pensava antes, que devesse
levar uma vida egoísta e egocêntrica. No mundo e na vida, Phil é inevitavelmente
na vida e no mundo com outros.
A
preciosidade da vida revela-se-lhe. E nesta revelação revela-se-lhe ainda a
preciosidade dos outros e do trato com os outros. O modo como leva a sua vida
alterou-se: quer que cada momento conte, conte com tudo, fazendo das tripas
coração, tornando cada instante excelente: o melhor que podia ser. E percebe
que, pelo menos para si, isso implica fazer coisas pelos outros: coisas que ele
sabe que são o seu destino, como coisas que só ele pode fazer.
Inicialmente,
esta forma de ver o mundo e a vida é ainda atabalhoada e sente-se capaz de ser
tudo. Chegou mesmo a salvar um senhor de uma morte inesperada por engasgamento…
Como sabia que isso iria acontecer pôde chegar a tempo de o salvar. Assim como
podia ajudar muitas pessoas pois em todas as vezes que viveu o mesmo dia
encontrou muita gente a precisar de ajuda, de ajuda que ele podia dar. Mas ser o
melhor que se pode ser não significa ser omnipotente. É o que vem a compreender
de forma aguda quando tenta ajudar um sem-abrigo que acaba por morrer no
hospital. Os próximos dias (as próximas repetições do mesmo dia) são então
passados a tentar salvar esse sem-abrigo. Mas a morte revela-se-lhe a
possibilidade inadiável: tentou de tudo, mas o sem abrigo morreu sempre… Até
que compreendeu que não tinha um poder ilimitado, não dispunha de
possibilidades ilimitadas: na verdade não só não podia salvar ninguém da
própria morte (em sentido absoluto), como não estava nas suas mãos definir o
que estava disponível para usar nesse dia a que estava confinado.
Até
aqui Phil já fizera um percurso imenso: no início pensava que tudo estava bem
na sua vida; quando ficou preso no mesmo dia pensou que tudo estava mal na sua
vida; pensou então que uma vez que por mais que tentasse não sairia daquele
dia, nada valia a pena, nem sequer viver, pois nada na vida mudaria isso de
estar preso ali, naquele dia, naquela vila, para sempre; se tudo iria dar no
mesmo resultado, se tudo teria um resultado idêntico, tudo era igual, tudo era
nada, e nada valia a pena; ao descobrir que nem a morte o salvaria da sua vida,
o desespero levou-o a descobrir que, se estava limitado àquilo que lhe calhara
em sorte, então o que mais valia era dar o melhor uso possível às
possibilidades que estavam disponíveis naquele dia, naquela vila, com aquelas
pessoas; finalmente percebeu que ele não controlava aquilo que lhe era
oferecido, que não podia de facto mudar o quinhão de vida que lhe restava, mas
que podia fazer com isso a excelência. Ser excelente em cada decisão, em cada
momento, com cada possibilidade que tinha – esse foi o rasgo de iluminação que,
como um relâmpago, o envolveu.
“Tu
que existes exposto ao que os dias te trazem, o que é ser/ Alguém? O que é não
ser Ninguém? O humano é o sonho de/ uma sombra./ Mas quando chega o esplendor
dispensado por um deus, há/ uma luz brilhante entre os homens e a vida torna-se
doce.”[ii] O ser humano está exposto
ao que os dias lhe trazem, e perante esta inevitabilidade tem a consistência de
um sonho de uma sombra. Não é que o humano seja uma sombra: é o sonho de uma
sombra. Um sonho, um projecto, algo que ainda não é, algo que sempre ainda não
é o que tem para ser. Mas, de vez em quando, um esplendor que ele não controla
ilumina tudo: a sombra, claro está, torna-se mais consistente, mais sólida.
Quando há mais sol também as sombras são mais espessas: pelo contraste. Contudo,
parece que assim se fica sem margem de manobra, que tudo está fora das nossas
possibilidades. O que Phil compreendeu foi que, apesar de estar inevitavelmente
exposto ao que a vida lhe trazia, o que interessava era a identificação e a
constituição de uma postura perante a vida que lhe permitisse não ser dominado
por isso e que, resignando-se ao inevitável, não fugisse disso, mas abraçasse
com todas as forças o projecto de fazer da sua vida o melhor possível.
Phil
tornou-se assim um ser humano consciente das suas decisões – já não
passivamente exposto à procura do prazer e à fuga do sofrimento, mas
activamente empenhado em viver na justa medida da sua excelência.
Pitágoras
disse uma vez: "Ὁ βίος βραχὺς, ἡ δὲ τέχνη μακρὴ” – ou seja:
a vida é curta, a técnica é longa. De
facto, a vida é curta, tão curta que a tendência inicial é vivê-la o mais
depressa possível, sem paragens, sem jamais questionar o que seja viver. O ser
curta dificulta a constituição daquilo que Pitágoras chama τέχνη [tekhné]. Este
termo grego foi traduzido para o latino ars,
ou seja, arte. O que está aí em
causa, na τέχνη, na ars, é um
saber-fazer adequado a cada região da produção e do manuseamento: o sapateiro
sabe uma arte na qual pode ser mais ou menos exímio. Neste sentido, há também
uma τέχνη da vida. O problema parece ser então a curteza da vida. É o próprio ser curta da vida que na maioria das
vezes impede a constituição de um olhar técnico
sobre a vida: na sua curteza, a vida impele o vivente a correr de uma ocupação
para outra. Mas este carácter, a curteza
da vida, responsável pela correria, é também a maior razão que se tem para que
se pare para pensar como deve ser vivido esse tempo que nos é dispensado. Contudo,
Pitágoras realça precisamente que pode acontecer que a vida seja demasiado
curta para que uma τέχνη adequada possa ser desenvolvida. Pode acontecer que o
tempo necessário para saber viver adequadamente extravase a curteza da vida
humana.
O
que aconteceu a Phil representa o que acontece com todos nós: tal como ele só
em casos extremos (aliás, muitas vezes só tarde de mais) paramos para pensar;
corremos na vida sem pensarmos no significa de facto viver; temos um tempo de
vida limitado que não depende de nós e nesse tempo estamos expostos ao que o
dia que é a vida nos traz; isso incomoda-nos e tentamos fugir de enfrentar essa
realidade; primeiro fugimos simplesmente não abrindo os olhos para ver o que
todos os dias se manifesta; depois, quando a vida encalha, fugimos de forma
extrema, maldizemos a vida e no limite confiamos no suicídio. Contudo, Phil foi
confrontado com algo que não acontece connosco: viver diversas vezes a mesma
situação até acertar. É que connosco, como diz Pitágora, a oportunidade é estreita (“ὁ δὲ καιρὸς ὀξὺς”). Não temos segundas
hipóteses: vivemos uma vida curta que nos impele a correr nela, a corrê-la, a
consumi-la, e em cada trago vai-se um momento irrecuperável onde jamais
voltaremos para tentarmos outra vez. É que só se vive uma vez cada momento que,
na maioria das vezes, vem até nós a correr, na nossa pressa de viver a vida que
é curta. Por isso a experiência é difícil,
escorregadia, perigosa (“ἡ δὲ πεῖρα σφαλερὴ”) e a escolha tão difícil (“ἡ δὲ κρίσις
χαλεπή”)[iii].
É
que todos nós somos capazes de perceber que a compreensão final de Phil é a
mais correcta, provavelmente a mais adequada. Mas também percebemos que essa
maneira de ter a vida só é possível mediante uma decisão nossa, uma decisão
que, precisamente, é difícil de tomar. A autenticidade é difícil.
[i] Vide KIERKEGAARD, Søren. O Desespero Humano, Martin Claret, São Paulo,
2002, trad. Alex Martins, p. 24.
[ii] Vide PÍNDARO. Odes. Quetzal, Lisboa, 2010, trad. António C. Caeiro, p. 64.
[iii] Vide Hp. Aph. 1.1.
Sensacional esse post, parabéns pela sutileza da análise. Acabei de assistir o filme. Ele é fantástico, sem dúvida. O mais impressionante foi a mudança de 'estado de espírito" de Phil. Ele acabou percebendo o quanto seu mundo era voltado para a si mesmo, e quanto era egoísta e egocêntrico. Foi então que ele foi 'iluminado'. Descobriu que a essência da vida: o Amor. Ele descobriu o amor pelo próximo, altruísta. Percebeu que ele poderia fazer diferença ajudando pessoas que ele não conhecia como se fossem as pessoas mais importantes do mundo. Descobriu a arte, a poesia, a música.
ResponderEliminarPhil percebeu que para amar não era tentar ser perfeito, com frases e atitudes calculadas. Era fazer dos momentos simples, grandes.
Esse filme sem dúvida é uma lição de vida.