A doença que a todos acomete... paradoxo? talvez não.
Do Riso e da Loucura
Autor:
(Pseudo-)Hipócrates
1ª edição,
Lisboa, Julho de 2009: Padrões Culturais Editora
Tradução:
Largebooks; Prefácio: José Manuel Jara
Do Riso e da Loucura trata-se
de um conjunto de textos, escritos como se fossem cartas, uma dirigida a
Hipócrates, sete enviadas por Hipócrates.
Este
pequeno livro é mais profundo do que aparenta à primeira vista. O pretexto para
a redacção das cartas é a suposta doença (νόσος) de Demócrito. A descrição dos
sinais de doença envolve indícios preocupantes de loucura (μανία) e melancolia
(μελαγχολία): Demócrito esquece-se de “tudo e até dele mesmo”, “permanece agora
acordado noite e dia, descobrindo em qualquer coisa grande ou pequena motivo
para rir, e julgando que a vida não tem qualquer valor”. “Levanta-se
frequentemente à noite, e sozinho parece cantar suavemente”.
Enfim,
Demócrito dá sinais de misantropia, alienação, apatia, sarcasmo. O Senado da
cidade Abdera decide por isso solicitar auxílio ao grande Hipócrates, conhecido
pela sua perícia no tratamento adequado das más-disposições. Os abderitas temem
por aquele que dá renome à cidade e por isso querem o seu sábio saudável. Na verdade, suspeitam que Demócrito tenha
enlouquecido devido à sua grande sabedoria e receiam que a sua demência se
espalhe a toda a cidade.
Curiosamente,
Hipócrates não fica convencido acerca da doença de Demócrito. Todavia,
Hipócrates não menospreza o mal-estar que poderá estar na origem do comportamento
dessituado de Demócrito, pelo contrário, coloca a hipótese de tal mal-estar se
justificar precisamente por aquilo que o sábio julga saber. A questão é,
portanto, averiguar em que medida aquilo que Demócrito julga saber tem
legitimidade: tratar-se-á de sabedoria ou de loucura? É que, ao contrário do
que supõe o Senado de Abdera, a excelência nunca é prejudicial, “o excesso de
virtude nada tem de pernicioso”. Portanto, Hipócrates passa a considerar um
cenário possível segundo aquilo que lhe parece – esse cenário é a possibilidade
de a enfermidade de Demócrito ser uma ilusão nos olhos dos abderitas.
A loucura
do sábio pode muito bem ser um equívoco nos olhos de quem, padecendo de falta
de sabedoria julga a alheia como supérflua. Pode muito bem ser o caso de que os
abderitas sejam maioritariamente loucos, ou pelo menos de alguma forma doentes
sem o saberem. O ponto é então descortinar de que lado está a razão.
A
hipótese considerada é importantíssima: pode acontecer que “o mundo inteiro
esteja doente sem o saber”; se esse é o caso, então, na sua insensatez, na sua
loucura, os homens vulgares não estão devidamente enraizados em chão seguro que
lhes permita deter um ponto de vista adequado sobre o que de facto seja a
loucura ou a virtude. Por outras palavras, supõem colher frutos maduros onde há
podridão, colhem tormentos onde suspeitam haver boa fortuna, parecendo-lhe que
o mar amaina lançam-se em águas tumultuosas. Estão perdidos e pensam saber quem
são. Portanto, se a hipótese lançada por Hipócrates estiver correcta, Demócrito
pode muito bem não estar louco: serão os seus concidadãos que, na incapacidade
de identificar aquilo que de facto é o caso, tomam o sábio por louco; “condenam
aquele que lhes seria de maior proveito”.
Estará,
então, Demócrito louco? Ou estarão os abderitas equivocados? A dúvida é ainda
mais irónica pelo facto de o adjectivo “abderita” ser usado na Antiguidade, em
sentido pejorativo, como sinónimo de limitado,
ingénuo, parvo, estupido. Assim,
trata-se de saber se é Demócrito o louco, ou se são os loucos que são incapazes
de reconhecer a sabedoria. Mas se o mundo inteiro está doente, o que é que distinguirá
a loucura corrente dos abderitas relativamente à situação de Demócrito?
Demócrito poderá não estar doente nem louco da maneira que os abderitas
supunham, mas isso significa que ele está são, ou apenas que não está mais louco ou doente que os restantes?
Na
verdade há uma diferença no ponto de vista de Demócrito: a desocultação do
aspecto louco da vida quotidiana do homem vulgar. Demócrito está ciente da
necessidade de adquirir uma recta técnica de viver que permita ao humano viver
na justa medida das suas possibilidades de ser. Mas a “verdade exacta, ninguém
a conhece, ninguém a testemunha”. Com estas palavras Demócrito deixa em aberto
o caminho da procura que é sempre tempo de fazer, porque nunca se está na posse
definitiva.
O
livro editado em português indica Hipócrates como seu autor, mas na verdade é
mais provável que estas cartas tenham sido redigidas por Pangetus. De qualquer
modo, com toda a probabilidade, não pertencem a Hipócrates, nem ao seu tempo.
Escrito nos inícios do Império Romano, é habitual chamar ao seu autor
Pseudo-Hipócrates. Infelizmente, a versão portuguesa parece ter sido feita a
partir da tradução francesa de Yves Hersant, Sur le Rire et la Folie, Rivages,
1989. A selecção não contém todos os escritos relevantes do Corpus
Hippocraticum sobre a loucura ou a melancolia, mas apenas as cartas
relativas ao caso de Demócrito. Além disso não contém a carta do próprio
Demócrito.
Para
ler o texto grego e comparar com uma tradução francesa (segundo edição de
Littré), clique AQUI.
1- a versão portuguesa (BRASILEIRA -HEDRA) não indica Hipócrates como autor, por isso vem entre colchetes na capa: [Hipócrates], e isso é explicado no prefácio
ResponderEliminar2 - contém a carta de Demócrito - carta 18 p.63
Obrigado pelo seu comentário.
EliminarComo é indicado, o texto presente refere-se à edição de Lisboa, Portugal, que me parece resultar da selecção e tradução de Hersant.