A
propósito de máquinas, autómatos e de uns estranhos entes chamados seres
humanos...
"τὸν γὰρ
ὡς ἀληθῶς ἀγαθὸν καὶ ἔμφρονα πάσας οἰόμεθα τὰς τύχας εὐσχημόνως φέρειν καὶ ἐκ τῶν
ὑπαρχόντων ἀεὶ τὰ κάλλιστα πράττειν". Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1101a1-3: "Pensamos por isso que aquele que for verdadeiramente bom e avisado suportará toda a espécie de fortuna dignamente e a partir do que dispõe agirá sempre da melhor maneira".
O
filme de Martin Scorsese A invenção de Hugo, ou simplesmente Hugo, baseado no livro de Brian Selznic,
A
invenção de Hugo Cabret, foi para mim uma descoberta impressionante.
Com
Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Asa Butterfield, Chloë Grace Moretz, … o
próprio Scorsese participa por breves segundos…
Não
me interessam os efeitos especiais. Interessa-me a estória. E neste filme os
efeitos especiais são aplicados para realçar aspectos que embelezam o que se
está a contar. Como um sublinhado.
É
o relato de um trecho da vida de um rapaz, Hugo Cabret, que vive dentro das
paredes de uma estação de comboios. Esse é o seu horizonte de familiaridade, o
seu lar. Mas algo impede Hugo de se confundir com as paredes que habita e que,
de certa forma, lhe oferecem alguma segurança. Perpassa-o um constante receio
de ser descoberto, de ser arrancado ao seu mundo, das paredes da gare.
Hugo
cuida dos relógios e de um curioso
autómato que está com ele. E tudo tem uma história, um passado, um caminho que
abriu a situação em que Hugo agora se encontra. O que nos chega como situação
presente é envolvida pelo lastro do que passou em flashback. Este recurso, a
analepse, traz ao espectador o fio condutor que explica o carinho que Hugo tem
pelo autómato, a preocupação com
que se dedica a cuidar dele, a procurar dar-lhe arranjo para que possa,
finalmente, cumprir aquilo para que foi feito. Mas algo falta no autómato:
algumas peças cuja especificidade torna raras e difíceis de encontrar; uma
chave em forma de coração. Note-se o pormenor importante: em forma de coração.
O coração é o lugar onde se sediam as afecções, onde bate a pulsação da vida,
onde o mundo vibra e se deixa sentir, onde as paixões arrebatam e por vezes
capturam os indivíduos. E é uma chave em forma de coração que falta, que é de
facto a chave para resolver a dificuldade de pôr em marcha o autómato.
Um autómato. O autómato tem uma finalidade, houve
um propósito que presidiu à sua construção. Posto em movimento ele cumprirá
aquilo para que foi feito, confundindo-se com isso. Nenhuma distância entre o
autómato e o propósito da sua existência lhe levantará um problema existencial.
O propósito estava na mente do seu criador, de quem o fez. O autómato limita-se
a cumprir, a executar. Com os humanos que surgem na tela as coisas são
diferentes. O inspector da gare, o velho que vende velharias mecânicas, a neta do velho, Hugo – enfim, cada um
enfrenta as dificuldades que são as da sua vida e que, de algum modo, notificam
de que com eles essa identificação, de que falámos relativamente ao autómato e
à sua finalidade, não ocorre. Cada um tem uma ocupação que o identifica perante
o espectador, mas essa ocupação não os resume, não os absorve totalmente. Não
diz tudo. O inspector ama a rapariga que vende flores, e tem uma perna que
ficou na guerra e cuja ausência ele sofre como uma incapacidade. O velho parece
distante da sua loja de velharias, está ali como um autómato. Mas precisamente,
nesse estar ali como um autómato evidencia-se a distância que há entre o humano
(que se sente para ali esquecido pela sua própria vida, que está jogado fora,
como um resto, vivendo e respirando como um autómato) e o autómato, que no seu
movimento automatizado cumpre precisamente o exacto fim para que ali está.
Os relógios. Assim que comecei a ver o filme e a
sua incidência nos relógios, nas máquinas, nos mecanismos, veio-me à cabeça a
expressão deus ex machina. Esta
expressão latina surgiu como tradução de expressões gregas que surgem em alguns
textos, nomeadamente, sobre as tragédias. Os tragediógrafos usavam por vezes um
artifício estranho ao drama para
resolver a peça: um deus, preso por uma corda, descia em cena e atava
(literalmente) as pontas soltas da trama. Ao engenho pelo qual se faziam descer
os deuses chamava-se μηχανή [mekhané]. Um exemplo de intervenção deste género é
uma variante do êxodo da peça Ifigénia
Áulida[i],
no qual Artémis interfere trocando Ifigénia por uma serva – e assim salvando a
primeira. Aristóteles pronuncia-se contra este tipo de artifício na Poética[ii]. A
expressão grega usada é ἀπὸ μηχανῆς [θεός], isto é, [o deus] do artifício. Ou, como o escreve Menander[iii]: ἀπὸ
μηχανῆς θεὸς ἐπεφάνης, isto é, o deus surgido do artifício. Este deus externo à peça intervinha para provocar
acontecimentos que não estavam justificados pelos acontecimentos em si mesmos.
Em muitos casos esse deus surgia, de facto, de um artifício: desse engenho
mecânico que o fazia descer em palco – por isso tratava-se literalmente de um
deus que chegava através de um mecanismo. Ora, o termo μηχανή é o antepassado
de termos actuais como mecânica e máquina ou maquinar. A forma como esta expressão, deus ex machina, está relacionada com o filme é, portanto,
equívoca.
Primeiro:
o filme insiste em presentear o espectador com belas imagens de mecanismos
complexos, que funcionam pautadamente, reforçando a ideia de ritmo, sequencialidade
e causalidade. Ora, Aristóteles pretende, precisamente, afirmar que numa
estória os acontecimentos internos devem justificar o desenlace – na verdade,
cada acontecimento deverá estar justificado pelo antecedente, com a necessária
excepção dos acontecimentos que são narrados ou apresentados sob a condição de
acontecimentos passados (analepse), ou nos que são apresentados como futuros
(prolepse). Portanto, o filme, ao insistir nas ideias de regularidade,
mecanicidade, causalidade – parece estar a concordar com o Estagirista no
sentido: o movimento de cada peça provoca o movimento da próxima e assim
sucessivamente, desta forma funcionam os relógios e os mecanismos em geral.
Depois:
ao longo do filme avolumam-se os mistérios e temos a sensação de que será realmente
necessária a intervenção de um deus ex
machina para atar todas as pontas soltas. Que relação haverá entre Hugo, o
pai, o velho da loja, o autómato?
As máquinas e
os autómatos.
O termo máquina perdeu um sentido
importante que estava presente no grego. Mas que ainda está presente no verbo maquinar. Quando maquinamos, desenvolvemos artifícios, artimanhas: criamos engenhos,
engenhocas. Intervimos no mundo de forma a tornar disponíveis possibilidades que
estavam indisponíveis. É essa a função de uma alavanca, de uma máquina afinal:
abrir novas possibilidades. Portanto, o decisivo é inventar; a máquina é uma invenção, um fruto artificial da
capacidade de maquinação humana. Ora, o filme mostra-nos esta faceta das
máquinas, da maquinação: a possibilitação da concretização de sonhos. O
espectador é levado a reconhecer a figura de Melier, um realizador proscrito,
na figura do melancólico velho da loja de velharias. Noutros tempos, este velho
foi esse realizador. Devemos aqui notar que na palavra realizador se move a acção de realizar.
Melier no passado viu no cinema uma máquina de realizar sonhos. O seu ímpeto, a
sua força anímica, por sua vez, influenciou outros espíritos, inclusivamente pai
de Hugo. E também aqui vemos uma sucessão de acontecimentos que surgem uns dos
outros: Melier influenciou Cabret, o qual influenciou o próprio filho…
As
máquinas são criação que criam possibilidades. São dispensadoras de aberturas
e, nesse sentido estão intimamente ligadas à inventibilidade humana. Ao
contrário do que tendemos a perceber pelo termo mecânica, na verdade a mecânica dos sonhos tem muito de
criatividade. De possibilidades de realização. As máquinas criadas pelos seres
humanos podem ser de diversos tipos: os relógios levam os humanos a deixarem-se
controlar por elas; outras, como as máquinas de filmar, são possibilidades de
realizar os sonhos que se têm; algumas são autómatos. Os autómatos
antropomórficos, como aquele de que Hugo cuida, imitam desempenhos humanos.
Este autómato que é peça fundamental do filme imita um actividade específica:
faz desenhos. Imita uma das actividades mais conotadas com a criatividade. Mas
o vigor do termo autómato está no ser
capaz de funcionar por si só: por isso é automatizado, move-se a si mesmo.
Contudo, um novo equívoco se esconde aqui: o autómato, tal como os sonhos,
precisa de ser cuidado, tratado. É o trabalho humano que faz o autómato, e sem
cuidado humano, sem amor humano, até os autómatos fenecem, perdem peças,
degradam-se e deixam de cumprir a função para que foram feitos.
As máquinas,
os autómatos e os humanos. Ao contrário das máquinas e dos autómatos, o
humano não coincide com o sentido do seu estar aqui. Mas Hugo tem uma teoria
sobre o assunto. O mundo é como uma máquina: vem sem peças a mais; cada peça é
necessária para o grande propósito de tudo; ninguém está a mais no mundo, todos
são parte de uma grande máquina. Esta é uma ideia antiga e, na verdade,
recorrente – na qual todos gostariam de acreditar. O filme, por seu lado,
mostra aqui e ali que o humano é, sobretudo, heterogéneo face ao mundo. Ao
contrário do autómato. O autómato executando o propósito para que foi feito
fará o que estava destinado a fazer, sem dúvidas ou dificuldades. O desenho que
faz é imediatamente percebido como obra, não do autómato, mas do seu criador.
Quando o autómato, depois de arranjado e posto a funcionar com a chave em forma
de coração, desenha, Hugo sabe, como toda a gente, que o criador do autómato é
o autor de tal desenho. Porque só um ser heterogéneo pode ter uma necessidade
de sentido; só um ser para quem o sentido pode ser um problema pode dar
sentido; só um ser que, da forma mais radical, não é mundo pode intervir no
mundo. O autómato não intervém, faz o que faz: não intervém. É para Hugo que o
sentido das coisas urge. A urgência fá-lo mover-se, questionar-se, fazer das
tripas coração. É Hugo que vê uma semelhança fundamental entre os autómatos e
as pessoas: quando não são capazes de cumprir o que têm para ser, é porque
estão quebradas; tal como o seu autómato, também Melier, o velho, está
quebrado. Também Melier precisa de concerto, na sua vida faltam peças – tal como
na vida do inspector da gare faltava a peça fundamental que era a rapariga que
vendia flores.
Em
última análise, podemos dizer que é Hugo que vê no autómato quebrado a imagem
de um ser humano encalhado. O autómato segue sempre sendo o que é. Não existe
verdadeiramente. Porque no autómato não há nenhuma distância de si ao mundo, de
si a si, não há verdadeiramente nenhum “si”. Só o humano é uma dobra, uma
reflexão de si sobre si: uma distância que é tudo, e que por isso mesmo pode
ser nada quando falta a peça decisiva, quando falta a chave em forma de coração que é a verdadeira chave do coração de
cada um. Seja a rapariga que vende flores, o maquinar, o realizar filmes,
enfim: a chave é o sonho, ou melhor, é a possibilidade de realizar sonhos, ou
melhor ainda, é a realização do sonho que a cada um orienta. Porque cada um
anda aí pelo mundo, não como um autómato, mas como quem anseia realizar-se.
Conclusão.
O autómato, uma vez concluído, está feito. Está aí todo, com todas as suas
peças: cumpre a sua função. Quebrado ou não quebrado, está feito e acabado. O
humano encontra-se sempre inacabado. Não tem uma função imediata, sem distância
relativamente ao seu existir: existir é para o humano cumprir-se no sentido em
que não está ainda realizado. Falta-lhe algo. Radicalmente. Mas há uma certa
semelhança entre o humano e os autómatos: ambos podem estar quebrados. O
humano, contudo, tem um relacionamento específico com o seu modo de estar
quebrado ou em concerto com a vida. Um relacionamento que, mais uma vez, o
distingue dos autómatos.
Quando
o filme termina todas as pontas foram unidas sem recurso a um deus ex machina. No desenlace
reconhecemos o que até aí representava dificuldades. O que parecia caótico
era-o apenas por ignorância nossa. O final é feliz, a mensagem é optimista –
mas não de um optimismo pobre. Pelo contrário. Este é um filme profundo sobre o
sentido da vida, sobre a força que é preciso ter-se para acreditar. É um filme sobre
a resistência sem a qual não se pode fazer vigorar nenhum sentido. Hugo
mostra-nos que o sentido é uma obra, talvez a mais fundamental, porque sem resistência
para isso, e sem coragem para o fazer eclodir, nada mais chega alguma vez a
importar. É um filme que mostra que o questionamento pelo sentido da existência
é o mais importante porque está sempre lá, mesmo quando não vem à tona, mesmo
quando somos esquecidos pelos nossos pensamentos. Porque só se esquece a
pergunta pelo sentido da existência quando a existência parece ter sentido: e é
aqui que Hugo nos faz questionar se não nos faltará uma peça, se não nos
estaremos a deixar ficar para trás na ânsia de ir para a frente.
A invenção de
Hugo
– ou a maquinação/máquina de Hugo, recuperando o sentido grego – é um filme
sobre a possibilidade de tornar disponível o indisponível, o inexistente em
existente, o sonho em vida. Porque inventar é criar dispositivos, é
disponibilizar aberturas de realização de si mesmo: é a possibilidade de ser; é
inventar-se a si mesmo. A invenção de Hugo, afinal, é a sua própria vida. Daí o
cuidado que essa invenção lhe exige: "mais
valia um minuto na vida, que cem anos de vida.”[iv]
O filme é delicioso.
[ii]
Cf. Poética, 1454a 28 – 1454b 8. Um
dos exemplos dados por Aristóteles é provavelmente o episódio relativo a Ifigénia Áulida – o texto grego é
debatido pelos entendidos: a hipótese que granjeia mais concordância parece ser
a de que Aristóteles se referia à Ilíada
(ἐν τῇ Ἰλιάδι), II, 155ss. (neste passo Hera incita Atenas a intervir junto de
Ulisses no sentido de que este retenha os marinheiros, convocando-os a não
regressar a casa e a permanecerem na guerra contra Tróia); no entanto, Else
sugere que a referência é a Ifigénia
Áulida (ἐν τῇ <ἐν> Αὐλίδι) – vide ELSE, Gerald F., Aristotle’s
Poetics: The Argument, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 19632,
p. 472. De qualquer forma, tratam-se de exemplos em que um deus intervém na
trama. No caso relativo a Ifigénia essa intervenção acontece propriamente no
desenlace de uma tragédia.
[iii]
Vide Menander, Θεοφορουμένη,
Fr. 5.
[iv]
Citado de Raul Brandão, Húmus,
frenesi, Lisboa, 2000, Dezembro 5, p. 66.
Muito bom! Amei a sua interpretação do filme, e seu blog me ajudou muito. Muito obrigada.
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